26.11.22

O MINISTÉRIO DA FELICIDADE ABSOLUTA e O DEUS DAS PEQUENAS COISAS

O primeiro livro que li da autora e ativista indiana Arundhati Roy foi seu livro de estreia: O Deus das Pequenas Coisas que trata do amor proibido entre pessoas de castas diferentes na Índia. Fiquei tão encantado pela maneira sensível da autora contar a história, que a incluo nos meus livros favoritos da vida toda. A obra deu a Roy o privilégio de ser a primeira pessoa indiana a vencer o Man Booker Prize, a mais importante láurea literária do Reino Unido.

No seu segundo livro, O Ministério da Felicidade Absoluta, Arundhati Roy traça, 20 anos após o sucesso de O Deus das Pequenas Coisas, uma teia intrincada envolvendo Anjun, uma mulher transgênero muçulmana (uma hijra), uma criança abandonada que quer ser chamada de Saddam Hussein e uma jovem arquiteta perseguida pela sua luta pela libertação da Caxemira, entre vários outros personagens interessantíssimos numa ode aos excluídos da Índia, pungente retrato das discriminações e violações de direitos humanos em todos os possíveis e terríveis aspectos do seu país.

Se sua primeira obra, que é o maior best-seller indiano, levou a autora a responder a um processo por “obscenidade”, esse segundo livro lhe rendeu ameaças de morte por retratar criticamente o conflito na Caxemira. Um parlamentar indiano propôs que Roy fosse utilizada pelo exército como escudo humano. 

Em um dos trechos, repleto de dolorosa ironia, ela escreve: “Nada assustava mais aqueles assassinos do que a perspectiva de azar. Afinal, era para afastar o azar que os dedos a segurar espadas cortantes estavam cobertos de pedras da sorte e que os pulsos brandindo cassetetes de ferro estavam adornados com fios vermelhos amorosamente amarrados por mães zelosas”.

O livro reflete que num país com 300 milhões de deuses, a banalidade e naturalidade das doenças, da fome, corrupção, torturas, guerras civis, mendicância, acidentes de trem, filas gigantescas em hospitais imundos, cemitérios habitados por indigentes, vazamentos de gás, mutilações... são tão naturais que não chamam mais atenção, como uma paisagem que sempre esteve lá. Em outro trecho ela consegue trazer um pouco de humor negro, como quando diz: “Depois de uma festa, elas resolveram andar um pouco e tomar o ar fresco. Naquela época, havia algo como ar fresco na cidade”.

Talvez o leitor brasileiro menos informado sobre a conflituosa história da Índia, não aproveite tanto os capítulos em que a autora trata das guerras da Caxemira e os conflitos civis envolvendo indianos, muçulmanos paquistaneses e aguerridos caxemires, realmente com muitas informações que não estamos acostumados, mas é reconhecível por qualquer um o drama da discriminação sofrida pelas pessoas trans em praticamente todo o mundo: “Em urdu, a única língua que ela conhecia, todas as coisas – tapetes, roupas, livros, canetas, instrumentos musicais, tinham gênero. Tudo ou era masculino ou feminino. Tudo, menos seu bebê. Sim, ela sabia que havia uma palavra para os iguais a ele: 'hijra'. Duas palavras, na verdade: 'hijra' e 'kinnar'. Mas duas palavras não fazem uma língua”.

Surpreende também que apesar de tudo, a obra consiga ter tanto humor fino em meio aos horrores, um respiro para que o leitor consiga avançar pelas tragédias como em momentos em que descreve os hábitos das mulheres trans: “Ela aprendeu a se comunicar com a assinatura hijra de bater palmas com os dedos estendidos, como um tiro, e que podia significar qualquer coisa – sim, não, talvez, a piroca da sua irmã, você nasceu pelo cu. Só outra hijra era capaz de decodificar o que significava especificamente o estalo específico, naquele momento específico”.

1 comment:

Danielle Giron Valim said...

seus comentários sobre as obras são muito instigantes. a ponto de eu pensar como seria bom parar de trabalhar e viver lendo livros (especialmente se forem indicados por você). parabéns e obrigada por persistir. me ensina a fazer blog?