A Mãe de todas as distopias
Acabei de ler NÓS, do escritor russo Ievguêni Zamiátin, considerado a mãe de todas as distopias na Literatura. A obra foi publicada nos anos 1920, precursora de todas as famosas distopias literárias: Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley), 1984 (George Orwell), Laranja Mecânica (Anthony Burgess), O Conto da Aia (Margaret Atwood) e Fahrenheit 451 (Ray Bradbury), além dos mais recentes Batlle Royalle, Jogos Vorazes e Divergente, todas tendo NÓS como fonte primordial. É curioso que todas as distopias posteriores geraram filmes impactantes, continuações e refilmagens, mas NÓS continua a ser pouco reconhecido.
A obra estava esgotada há anos no
Brasil, mas retornou pelas mãos da Editora Aleph, numa edição de luxo, que traz
duas leituras complementares: uma resenha de George Orwell de 1946 e a tocante
carta enviada pelo autor Zamiátin ao superpoderoso dirigente Stálin, pedindo
permissão para deixar a União Soviética por conta da perseguição política e
censura feroz.
Em NÓS temos, como nas distopias
seguintes, um governo totalitário, aqui chamado Estado Único, que, em nome do
bem estar geral, privou a população de toda liberdade, uma sociedade na qual a
inspiração é um tipo de epilepsia e a imaginação, uma doença que pode ser
erradicada com uma lobotomia. Temos
também aqui uma figura masculina central dominante: o “Benfeitor”, o “pai” do
futuro “Grande Irmão”, de 1984, e sob o jugo de quem todos estão
irremediavelmente presos.
Estamos no século 26 e não há
nenhuma liberdade de expressão nem privacidade. As casas são de vidro
transparente e as pessoas têm direito a apenas 1 hora por dia para assuntos
particulares, quando podem abaixar as persianas. Nessa única hora está incluído
o sexo, que deve ser requisitado através de um formulário. As pessoas não têm
filhos particulares e nem mesmo nome, mas números.
O protagonista, o engenheiro
D-503, está “feliz” com sua vida genérica até que uma mulher aparece na sua
vida, I-330, que o faz questionar tudo em que acreditava. Ao ver-se
completamente abalado por um novo sentimento, é diagnosticado por um médico como uma doença fatal:
“Você desenvolveu uma alma”.
A ideia tem referências na
expulsão do Jardim do Paraíso e George Orwell diz em sua resenha de NÓS: “O
princípio condutor do Estado é que felicidade e liberdade são incompatíveis. No
Éden, o homem era feliz, mas na sua loucura ele exigiu liberdade e foi expulso.
Agora o Estado Único restaurou sua felicidade ao retirar a liberdade”. Mas
então reaparece a mulher, qual uma nova Eva, para bagunçar tudo de novo.
O livro não chega a ser tão bom quanto as obras posteriores que incomodam muito pela contundência e mobilizam muito mais os leitores para os horrores das políticas totalitárias de Estado, mas aqui temos a relevância de tratar-se do primeiro livro distópico escrito, surgindo em plena ditadura soviética sob o tacão de Stálin e é incrível saber que Zamiátin que foi prisioneiro no regime czarista, voltou para o mesmo corredor da mesma prisão pelas mãos justamente dos bolcheviques, após a revolução.
NÓS merece ser lido quase como
uma obrigação moral de todos que valorizam a liberdade de pensamento na
Literatura. A obra, que tinha sido banida do seu país natal por mais de 60 anos,
só podendo ser publicada em outras línguas, apenas conseguiu o direito de
tradução em russo em 1988, graças à abertura promovida por Mikhail Gorbatchov.
Trata-se de um atestado sobre a importância da liberdade de pensamento crítico e o ofício de um escritor e é comovente ler na nova edição a carta-apelo de Zamiátin a Stálin: “Como escritor, ser privado de escrever é como uma sentença de morte. Não posso continuar meu trabalho pois nenhuma atividade criativa é possível numa atmosfera de perseguição sistemática que aumenta de intensidade ano após ano”.
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