– “Então a culpa não foi minha?!”
Ela o disse em voz alta como para ter a confirmação de que estava livre
de anos passados boiando num limbo de ignorância em relação à sua
culpa pelo final daquela relação que ainda habitava, como uma espécie de zumbi,
suas noites e madrugadas insones.
Então a culpa não foi sua!
Ficou tão acostumada a conviver com
ela, como com uma espécie de tatuagem gravada no seu braço, uma âncora que a prendia ao fundo de um mar de águas
paradas.
De repente, sem a culpa a que se acostumou a dar bom dia e boa noite a
cada dia e a cada noite, de repente o que seria da sua vida?
Como se arrancassem a sua
tatuagem-âncora deixando um buraco no lugar da culpa, o que colocar no lugar do buraco? O barco, livre da âncora,
não saberia para onde navegar.
Como preencher o espaço que ele deixou e por anos foi
devidamente preenchido pela tatuagem da culpa, que se fixava em sua pele como
uma anti-máscara de carnaval que nunca mais ela tirou e que, aparentemente,
ninguém notou que estava ali, e que ela foi deixando ficar, por longos
fevereiros, chuvosos abris, manhãs de setembros?
Agora estaria livre da angústia do toque do telefone. Em cada toque, a
esperança de que fosse uma ligação dele, o coração disparando e o latejar da veia no pescoço. Nunca uma ligação dele. Ou melhor, houve
duas, mas antes não houvesse porque havia sido algo puramente
formal. Foram dois Natais e...
“- Alô! Sou eu!”
Quantas palavras poderiam ter sido ditas em vez daquela
economia terrível de sílabas: “Oi,
quanto tempo, quanta saudade, ainda se lembra de mim? Tenho pensado tanto em
você.” Mas, em vez disso, três simples palavras que, na falta de coisa
melhor, ela bebeu como um vinho guardado por anos. Mas, apesar da
saudade e tudo que não conseguiria resumir em mil páginas, restava algum orgulho misturado com a culpa já que, naquele
tempo dos dois telefonemas natalinos, ainda tinha certeza de que foi a
culpada.
O vinho da sua voz sabia a vinagre e ela o chamou pelo sobrenome,
como já vira alguns amigos fazerem. Sentiu que assim estabelecia um
distanciamento, mas isso soou falso. Não disse que rasgou suas fotos num acesso de desespero, que era aquilo ou rasgar o peito.
Naquele tempo dos dois telefonemas, ela ainda achava que foi a
responsável pelo amor na lata de lixo, como pelas fotos na lixeira para
onde também foram parar os cartões de aniversário e os postais de Paris em uma
viagem em que ela não estava, mas que ele descrevia nos versos dos cartões o
quanto fizera falta a sua presença em um passeio solitário ao lado do Sena.
“- Estou ligando para desejar Feliz
Natal!”
Respirou fundo como a querer que o ar preenchesse um vazio imenso no seu peito onde antes havia uma massa informe da
onipresente culpa, companheira tão permanente que
muitas vezes ela até se esquecia da sua imanência.
Naquelas horinhas de sossego, como lembrava Guimarães Rosa, ela chegava a ser um pouquinho feliz, até
ligava o som, punha um disco de Cássia Eller e chegava mesmo a dançar sozinha
no apartamento tomando uma taça de Campari.
Mas, de vez em
quando, Ney cantava Cartola e punha tudo a perder e a massa
em seu peito a fazia consciente de que ainda continuava ali.
Respirou mais fundo ainda. Não imaginava que cabia tanto ar naquele
buraco. Abriu as cortinas e sentiu-se como Cabíria reparando em uma nova e
estranha luz a ferir-lhe os olhos. A luz iria varrer as
sombras escondidas nos desvãos do
assoalho, sob os móveis, revelando restos
minúsculos e flutuantes de solidão.
O dragão com quem dividia o apartamento saiu de
vez. Precisava de mais ar e o dragão lhe
deixava apenas o mínimo para sua sobrevivência. De repente, havia mais espaço para ela. Sobrava-lhe o apartamento
inteiro, a cidade
inteira, o mundo inteiro.
Afinal, após tanto tempo, descobriu as razões que ele não
lhe revelara, então, sobre fim do romance. As razões chegaram através de uma carta
dele a uma amiga que guardara esse tempo todo o segredo. Grandessíssima amiga!
E as razões mesquinhas contidas ali mostravam a covardia dele, deixando-a tanto tempo a se culpar. Ao preservá-la da
verdade, ele se mantivera protegido pelas memórias felizes,
atirando-a aos chacais da dúvida e da culpa.
Então foi por uma razão tão banal! Ela chegou a sorrir, perplexa. Nada de
incompatibilidades intelectuais ou conflitos de visões de mundo ou desvios de condutas ou traições de
sentimentos, mas uma mera e simples banalidade.
Não poderia se deixar afundar por uma coisa assim. Sentia-se grande demais para aquilo.
Não poderia se deixar afundar por uma coisa assim. Sentia-se grande demais para aquilo.
Depois que o dragão e os chacais subitamente desapareceram, a selva da
cidade deixava de ser ameaça e se transformava em uma sedutora promessa.
- Essa pele é
nova, cidade. Arranhe devagar!
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