“O Passado é Obstinado!”
Em torno da frase acima se desenrola a trama do excepcional
livro “Novembro de 63”, obra de quase 730 páginas do mestre do terror Stephen
King, que acabei de devorar.
Quem gosta do estilo do autor vai encontrar quase tudo que
ele aborda nas suas obras. Digo quase tudo porque não estarão aqui monstros
perigosos ou psicopatas assustadores que fizeram a fama do
mestre e deliciaram os leitores dos livros de King. No entanto, há uma pitada
saborosa para os fãs do universo do autor: parte da obra se passa na cidadezinha de Derry, cenário de medonhas cenas descritas por King, inclusive com a citação
de um certo palhaço matador de crianças.
Aqui o universo é outro e tem como base a Teoria do Caos, segundo a qual uma pequena variação nas condições em determinado ponto de um
sistema dinâmico pode ter consequências de proporções inimagináveis. Em termos
mais gerais e que tornaram famosa a teoria, o bater de asas de uma borboleta na
China pode provocar um furacão no México.
Nosso protagonista é Jake Epping, professor de uma pequena
cidade do Maine (cenário de quase todos os livros de King), uma
pessoa comum que é convencido por um amigo a voltar no tempo para
impedir o assassinato do ex-presidente John Kennedy. Segundo esse amigo, muitas das piores coisas que ocorreram no mundo se deram em razão da morte de
JFK.
Aqui, se você quer realmente apreciar uma boa história, vai
ter que lançar mão do que é conhecido como: “Suspensão voluntária de
descrença”, que tem esse nome porque se requer de um leitor ou espectador
aceitar como verdadeiras as premissas de uma obra de ficção, mesmo que elas
sejam fantásticas. Aceita-se a suspensão do julgamento em troca da premissa do entretenimento.
Você precisa então aceitar a premissa do livro que é a existência de um portal
misterioso que leva Jake, nosso herói, do ano de 2010 até 1958, cinco anos
antes da morte do ex-presidente Kennedy. Jake terá como missão abortar esse
crime, mudar o
passado e, por consequência, o futuro.
Mas as coisas não serão fáceis quando ele descobre que o
passado não quer ser mudado e assim Jake encontra uma série de dificuldades Quanto mais mudanças possivelmente forem geradas, mais problemas Jake
terá para conseguir alterar o passado. Assim, tempos como verdadeiro
antagonista neste inspirado livro, não um indivíduo monstruoso ou um
psicopata assassino. O inimigo é o passado em si.
Apesar de Stephen King ter imensa facilidade em criar
histórias, descrever cenários, situações e personagens, fiquei com a sensação
de que o livro é excessivamente caudaloso. Demora pra chegar ao clímax, mas compensa quando após cinco anos de aventuras,
nosso herói finalmente chega a Dallas, se aproxima do infame Lee Oswald, o assassino de Kennedy.
Mas não se esqueça: O Passado é Obstinado!
Durante a leitura, eu me perguntava como o autor
resolveria o seguinte dilema: se ele não impedisse o assassinato de JFK, toda a
trama seria em vão e anti-climática; mas se salvasse Kennedy da morte, como
explicar que vivemos num futuro em que o presidente morreu de fato? A solução
desse dilema é um primor de elegância. King demonstra mais uma vez porque é o
mestre.
Uma passagem do livro me deixou especialmente emocionado:
“Na Carolina do Norte, parei para abastecer num posto e
depois dei a volta para usar o banheiro. Havia duas portas e três placas.
HOMENS estava escrito com letras cuidadosamente pintadas com estêncil numa das
portas, DAMAS na outra.
A terceira placa era uma seta numa vara. Apontava a encosta
coberta de mato atrás do posto. Dizia DE COR. Curioso, andei pelo caminho, com cuidado para
contornar alguns pontos onde as folhas oleosas do sumagre-venenoso, num verde
fugindo para o marrom, eram inconfundíveis. Torci para que os papais e mamães
que pudessem levar os filhos até aquelas instalações lá embaixo soubessem
identificar o que eram aqueles arbustos problemáticos, porque no final dos anos
cinquenta a maioria das crianças usava calças curtas.
Não havia nenhuma instalação. O que encontrei no fim do
caminho foi um riachinho estreito com uma tábua atravessada em cima, sobre dois
suportes de concreto dilapidado. O homem que precisasse urinar podia apenas
ficar à margem, baixar o zíper e deixar sair. A mulher poderia se segurar num
arbusto (supondo que não fosse urtiga nem sumagre-venenoso) e se agachar. A
tábua era onde a gente se sentava se tivesse de cagar. Talvez sob chuva
torrencial.
Se lhe dei a ideia de que 1958 era perfeito como um seriado
de televisão, basta lembrar o caminho, ok? Aquele ladeado de sumagre-venenoso.
E a tábua sobre o riacho.”.
Não fosse por ser um grande escritor, eu teria extrema
simpatia por Stephen King pela sua incansável crítica a Donald Trump, seu apoio
a Obama e sua coragem quando defendeu um dos meus escritores favoritos, o
premiadíssimo Salman Rushdie, britânico de origem indiana, quando ele foi
perseguido com ordem de assassinato pelos aiatolás do Irã quando publicou Os
Versos Satânicos.
Rushdie escreveu diversos livros maravilhosos e li todos,
mas ao ler sua biografia, que descreve seu sofrimento durante mais de uma
década escondido para não ser morto, proibido de viajar em quase todas as
companhias aérea e com livros boicotados, quando vários intelectuais, editoras
e políticos de todo o mundo lhe viraram as costas, quando ele precisava
urgentemente publicar seus livros para conseguir se sustentar, vejo que veio exatamente
de Stephen King, um autor que ele nem conhecia, uma ajuda fundamental. Rushdie
narra o episódio na sua biografia.
“À época da publicação de Os Versos Satânicos, foi a
colaboração dos escritores que possibilitou sua comercialização nas grandes
redes de livrarias. Stephen King entrou em contato com as editoras e as ameaçou
dizendo que, se o meu livro não fosse comercializado, seus títulos também não
seriam. King ainda os advertiu dizendo que outros autores fariam o mesmo, e Os
versos satânicos foi então distribuído nas redes.”
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