28.5.08

A Harpa e o Berimbau


Faço uma pausa na coluna Culpa com Feriados Diferentes para mudar um pouco de assunto. É que creio que muito papel e tinta já foram gastos ultimamente ecoando as declarações do coordenador da Faculdade de Medicina sobre o QI dos baianos. Por obrigação e vício, leio compulsivamente diversos jornais, revistas e blogs diariamente. Em vão, procurei uma voz dissonante, mas pelo visto todos são unânimes em condenar o coordenador pelas suas declarações. E como toda unanimidade me cheira mal, achei que faltava algo nas análises.

Freio de arrumação! Pondo as coisas em perspectiva, o homem falou um monte de asneiras, mas o que se pode tirar de proveito dessas declarações racistas? Entre as bobagens que ele disse, sobre muitas se poderiam refletir.

Ninguém lembrou de que o foco da questão está no baixo índice que os estudantes de Medicina conseguiram no ex-Provão. Houve ou não boicote ao teste? Se sim, a análise é uma; se não, é outra. Considerando que não houve boicote e as notas foram baixas pela deficiência do ensino, o problema estaria na faculdade ou nos alunos?

Mas as coisas não são tão simples. A melhor declaração que li nesse episódio foi do diretor da Faculdade de Medicina. Ele disse que a fala do coordenador machucam, mas não matam. Diferentemente do estado precário da faculdade e do hospital universitário, que matam pacientes por falta de condições e formam profissionais sem preparo, que acabarão matando adiante.

Além disso, a UFBA tem um histórico de desvio de dinheiro e o próprio Ministério Público investiga as fraudes. Reportagens mostram equipamentos caríssimos de medicina nuclear encaixotados há anos por falta de técnicos para instalá-los, alas desativadas do Hospital das Clínicas, médicos e professores mal remunerados, com carga horária excessiva e uma fortuna mal empregada. E todo mundo só fala do berimbau.

O baiano adora falar bem se si mesmo. A maioria deles tem muitas certezas absolutas e poucas dúvidas instigantes. Quem quiser irritar um baiano basta questionar a tal baianidade, essa ficção. A Bahia não é melhor ou pior do que nenhum lugar. Adoramos nos julgar melhores do que os outros. Nossas praias seriam melhores; nossos casarões, mais bonitos; nossas mulheres, mais fogosas. Nosso carnaval é o melhor do mundo...Isso em psicanálise chama-se complexo de inferioridade recalcado. O sujeito se sente, no fundo, inferior, e cria uma capa de superioridade como artifício para esconder a inferioridade. Como aqueles homens que batem nas mulheres, mas não conseguem enfrentar outro homem.

O que deveria estar-se discutindo é a precariedade da Faculdade de Medicina. Aquele coordenador, com suas declarações racistas, jogou um pouco de luz sobre o problema, mas garanto que se fosse uma declaração politicamente correta e indignada sobre o estado da faculdade, apontando suas mazelas e seu péssimo ensino, ninguém gastaria um parágrafo para ecoar o assunto. Como ele falou de QI e berimbau, todo mundo se julga ofendido.

A Bahia já deu ao Brasil inúmeros nomes de valor, mas isso não é um privilégio nosso. Todos os estados deram nomes importantes ao Brasil. Nesse quesito, como em quase todos os outros, somos praticamente iguais. Estão sempre listando Ruy Barbosa, Castro Alves, Milton Santos, Glauber Rocha, Gregório de Matos, Anísio Teixeira....a lista é infinita. A primeira coisa que me chama a atenção nessas listas é que a maioria dos juristas, escritores ou educadores citados já morreu. Seríamos hoje capazes de formar figuras como essas? Nossa educação atual é melhor do que era?

Outra coisa que me chama atenção nas listas é a enorme quantidade de músicos citados pelos defensores do QI baiano: Caetano, Gil, Gal, Bethânia, João Gilberto....a lista não termina nunca. Mas pergunto: quantos médicos há nessa lista? Quantos físicos? Quantos professores? Quantos engenheiros? Quantos arquitetos? Quantos sanitaristas? A Bahia é celeiro de músicos e escritores como João Ubaldo e Jorge Amado...mas o foco não era a Faculdade de Medicina? Como saímos do estetoscópio e viemos parar em João Gilberto?

Ocorre que, como em outras coisas, também somos mestres em desviar o foco da questão. Um Estado que privilegia de tal maneira a carnavalização de tudo, que até uma parada evangélica tem como atração um trio elétrico tocando arrocha godspell, não pode reclamar quando comparam um berimbau a uma harpa. O problema não está no QI de um percussionista ou de um harpista, mas na incrível inversão de valores que se vê aqui. Quem quiser aprender harpa ou piano não terá nem espaço nem apoio. Já um berimbau o sujeito aprende até porque não vai faltar uma roda de capoeira para ele se apresentar e ganhar uns trocadinhos. E ainda pode aparecer nas fotos e vídeos de propaganda das maravilhas da Bahia, o Estado com a segunda pior educação do Brasil.

A educação brasileira privilegia o ensino universitário e abandona as escolas públicas. Todos só têm olhos para o diploma. Prouni e cotas, corretamente, garantem acesso às universidades a uma classe historicamente mais pobre, mas e a educação de nível médio? Toda essa política educacional é um atraso só. E ainda vem falar de QI? É não querer enxergar o problema real.

Esse é um Estado carnavalizado, onde os cacetes armados brotam como cogumelos e atraem um público ávido por mexer os quadris, sedento por álcool e entretenimento. Esse é o ambiente ideal para um médico ou para um pagodeiro? Um bom estudante de medicina não deve ter tempo livre para desfrutar dessas folias. Já com o percussionista a história é outra.

Não importa se um guerreiro massai tem um QI igual ao de um neurociurgião suíço, mas sim refletir sobre um lugar em que um presidente semi-analfabeto, que se vangloria da sua pouca educação, é idolatrado. Num lugar desses, quem inclui Durval Lélis e Ivete Sangalo numa lista ao lado de Anísio Teixeira e Milton Santos é porque não sabe diferenciar nenhum deles. A chance de não conhecer os dois últimos pode não estar ligado à quantidade de QI, mas reflete bem a qualidade dele.

2.5.08

Culpa com Feriados Diferentes VI


Você conhece a Fonte Nova? Nela, até a interdição, cabiam 60 mil espectadores por jogo. Você acha isso uma multidão, não é? Esses números lhe parecem imensos quando você se vê naquele estádio lotado durante um jogo. Então agora imagine 25 Fontes Novas superlotadas ou então se imagine ali todo mês por dois anos. Ao seu lado estariam 1 milhão e quinhentos mil mulheres. Esses ao os números oficiais da quantidade de mulheres que abortam no Brasil por ano. O número real pode ser o dobro. Três milhões por ano. Oito mil e duzentas mulheres abortando a cada dia!

Porque estou falando disso numa coluna chamada Culpa com Feriados Diferentes? É que me bati com a seguinte manchete do Estadão: “Brasileira que aborta é católica, casada, trabalha e tem filho”.

No levantamento mais atualizado sobre o perfil da brasileira que aborta descobriu-se que a maioria é casada, já é mãe, trabalha fora, tem entre 20 e 29 anos, completou ao menos os oito anos do ensino fundamental. E, veja só: é católica!

Além disso, a decisão pela interrupção da gravidez é tomada com o parceiro. A maioria delas usa métodos caseiros, como chás misturados ao Cytotec. Só 2,5% das mulheres que abortaram ficaram grávidas ao terem uma relação eventual. O perfil traçado é incompleto, pois baseia-se nos registros das mulheres que chegaram aos serviços públicos com complicações após usarem métodos abortivos. Não inclui abortos feitos pelas mulheres de classes média e alta em clínicas e hospitais privados e aquelas que abortam sem complicações clínicas.

A Igreja Católica do Rio tem usados fetos de resina e vídeos durante missas e palestras. Vários fiéis chegaram a passar mal, com náuseas e vômitos, após assistir às imagens com cenas de aborto chocantes. Na igreja Santa Margarida, na Lagoa, o "feto" está dentro de um vidro com gel, como se tivesse na placenta, exposto no altar. O combate ao aborto é tema da campanha da fraternidade deste ano da CNBB. Ainda mais polêmica é a exibição de quatro vídeos com cenas reais de fetos sendo retirados de mulheres.

Se você digitar a palavra aborto no google imagens, encontrará milhares e terrivelmente chocantes fotos de fetos dilacerados, resultados de abortos. Essas obscenas fotos e vídeos são parte da uma violenta campanha dos católicos contra a descriminalização da prática. As Igrejas fazem crer que o aborto é uma decisão fácil para as mulheres. Não vou bater nessa tecla, pois é óbvio que é uma falácia. Mulher alguma toma essa decisão facilmente. Mas o que eu posso pensar quando os dados oficiais dizem que a maioria dessas mulheres se diz católica?

Eu não tenho paciência para isso. Estou tentando, sem sucesso, entender essa combinação contraditória: católica que aborta e ainda é católica. Como pode, se a igreja é contra, seu papa, seu bispo, seu padre são contra...

Um milhão e quinhentos mil abortos por ano. Apesar de aceito pelos especialistas, e pelo Ministério da Saúde, grupos religiosos questionam os números, dizendo que os dados do SUS não são confiáveis e que o índice seria mais baixo. A pesquisa, porém mostra o contrário, com indícios de que o número pode ser o dobro.

A Igreja poderia fazer um enorme serviço em vez de negar os números e a realidade. Se apenas não se metesse nesse assunto já estaria ajudando muito, mas, em vez disso, imputa uma culpa ainda maior na mente de mulheres ingênuas o bastante para se sentirem psicologicamente mais arrasadas do que já estão com o aborto em si. Como se ele já não fosse suficientemente doloroso. Aliás, a este propósito, fico arrasado por ter perdido, nas minhas muitas mudanças de casa, um cartão postal que comprei uma vez em Amsterdã com uma imagem ao mesmo tempo hilária e profundamente simbólica. Numa montagem, via-se o papa grávido. Na legenda: “Se os homens engravidassem o aborto seria um sacramento”.

Marx dizia que “A dominação do homem pelo homem começou com a dominação da mulher pelo homem” Por isso, como estamos lidando com uma dor das mulheres, tratamos de uma dor menos importante, menos relevante, menos dolorosa e os padres, bispos e papas, homens semi-castrados, podem meter o bedelho no assunto como se fosse um tema que afetasse a eles.


Em recente pesquisa nacional para saber a opinião do brasileiro sobre o direito da mulher ao aborto, a maioria foi contra. Não sei dizer quantos desses entrevistados eram homens, mas acredito que somente mulheres deveriam responder a uma questão dessas.

As mulheres são as vítimas principais nessa história, mas o papel de vítima, já dizia o educador Paulo Freire na sua Pedagogia do Oprimido, é um papel bastante ativo. Dá pena ser uma vítima. Mas também dá trabalho ser uma vítima. Longe de mim penalizar ainda mais mulheres que já sofrem com o aborto, mas o que posso dizer quando elas próprias, após este ato, ainda se dizem católicas? E ainda vão buscar o perdão nos templos de homens que a farão sentir ainda mais culpa!?

Quem quiser ler um livro excelente sobre o tema Mulheres, Sexualidade e A Igreja Católica, recomendo “Eunucos pelo Reino de Deus”, de Uta Ranke-Heinemann, considerada a maior teóloga do mundo e que perdeu sua cátedra na Universidade de Heidelberg quando publicou esse livro. Nas palavras de Leonardo Boff, na introdução da edição brasileira: “A igreja dos celibatários diz um não a praticamente tudo o que se refere à esfera do sexo, do prazer, da contracepção, do jogo difícil da sexualidade entre um homem e uma mulher.”

25.4.08

Culpa com Feriados Diferentes V


Esta é a quinta edição da coluna “Culpa com Feriados Diferentes”. Já espicacei nessas semanas meus amigos cristãos com provocações diversas aos seus ídolos sagrados, mas não fui honrado com uma defesa à altura da sua fé. Como as pessoas têm suas crenças atacados e não as defendem? E olhe que não tenho poupado munição. Onde estão os cristãos? Por que não se defendem de um franco atirador? Será que esta coluna tem textos tão inexpressivos que não merecem uma mísera réplica?.
Já citei na 1ª coluna desta série uma pesquisa realizada nos EUA pelo Gallup que mostra que entre 95% e 80% dos americanos votariam em uma mulher, um católico, um judeu, um negro, um mórmon ou um homossexual para presidente, mas menos de 50% votariam em um ateu.
Pois pesquisa recente encomendada pela VEJA, realizada pela CNT/Sensus, mostra que 84% dos brasileiros votariam em um negro para presidente, 57% dariam o voto a uma mulher, 32% aceitariam votar em um homossexual, mas apenas 13% votariam em um ateu. O levantamento mostra que, entre as minorias (racial, sexual, de gênero...), a mais rejeitada é a anti-religiosa.
A VEJA pergunta: faz sentido rejeitar alguém apenas por não acreditar em Deus? Eu acrescento: e faz sentido rejeitar um negro por ser negro, uma mulher por ser mulher ou um homossexual por ser homossexual? Faz sentido rejeitar alguém por ser o que é?

A historiadora paulista Eliane Moura Silva, especialista em religião, ela própria uma atéia, responde: "O brasileiro ainda entende o ateu como alguém sem caráter, sem ética, sem moral. É um entendimento que se espalha de modo homogêneo por todas as classes sociais.” Em suas aulas sobre ateísmo na Casa do Saber, instituição para intelectuais paulistas ricos, a platéia teve reação fortemente hostil às idéias ateístas.

A neurocientista Silvia Helena Cardoso, doutora em psicobiologia pela Universidade da Califórnia, publicou artigo num jornal de Campinas discutindo se os santos seriam esquizofrênicos, dada a freqüência com que tinham visões – ou alucinações. Recebeu tantas ameaças que abandonou o tema. O professor Antônio Flávio Pierucci, da USP, especialista em sociologia da religião, explica: "Os brasileiros não estão habituados a se confrontar com a realidade do ateu". Por isso os políticos dizem que ninguém é mais temente a Deus do que eles.

VEJA lembra que o Datafolha fez uma pesquisa sobre religiosidade do brasileiro quando Bento XVI esteve por aqui. A pesquisa relevou: 97% acreditam em Deus; 93% crêm que Jesus ressuscitou após a crucificação e 86% concordaram que Maria concebeu sendo virgem. “Com esses números explica-se porque o Brasil está entre os países mais crédulos do mundo. Isso numa era em que abundam descobertas científicas sobre a origem do universo e das espécies. Se a credulidade não se abala diante disso, é lícito questionar que nenhuma prova científica, por mais sólida e contundente, possa abalar a crença no divino.”

Duvido da consistência dessas respostas. Garanto que metade dos que dizem acreditar em Deus não crê em Adão, Eva, dilúvio ou outros dogmas bíblicos. Crer no que diz a Bíblia e no que provou Charles Darwin é como torcer ao mesmo tempo pelo Vasco e pelo Botafogo num jogo. É pior ainda, pois no caso da peleja de Deus X Darwin o empate é o único resultado impossível. Uma pessoa não pode ser criacionista e evolucionista ao mesmo tempo. Crer em Adão, Eva e também nos dinossauros não dá. Mas os cristãos não são exatamente modelos de coerência.

Para os ateus os crentes sempre fazem uma pergunta clichê: “Quem criou o universo?”. E sempre acham que fizerem “a pergunta destruidora”. Os ateus poderiam simplesmente devolver a pergunta com uma outra sob a mesma lógica: “Quem criou o criador?” O impasse é inevitável, mas a ausência de uma explicação natural não exige necessariamente uma explicação sobrenatural. Os religiosos se aproveitam de uma lacuna do conhecimento humano para preenchê-la com o pensamento mágico. A mágica fascina, mas só até descobrirmos o truque. E os truques vêm sendo descobertos e provados pela Ciência há tempos, mesmo sob severa oposição dos Houdinis e Mr. M. de batina.

Mas mesmo assim, acredite, a religião no Brasil está perdendo fôlego. De 1940 a 1970, menos de 1% dos brasileiros se assumiam sem religião. Mas de 1980 para cá esse índice saltou para 7,3%. Os sem-religião (ateus, agnósticos, secularistas, céticos ou aqueles com fé, mas sem-igreja) já são 12,5 milhões, o terceiro maior grupo, atrás apenas de católicos e evangélicos. Na Espanha, Alemanha e Inglaterra, menos da metade da população acredita em Deus. Na França, os crentes não chegam a 30%.

Segundo a pesquisa publicada pela VEJA, a Bahia é o terceiro estado com o maior número de não-religiosos. O Rio está em primeiro lugar. Salvador, entre as capitais, é a campeã nacional: 18% dos soteropolitanos não têm religião. A raiz do fenômeno que irriga a queda dos católicos proporcionalmente ao crescimento de evangélicos e de sem-religião está no fato de que os laços étnicos e culturais dos brasileiros estão se desfazendo como resultado da modernidade, do aumento da escolarização, da profissionalização e da mudança do antigo padrão dominante das famílias com pais quase sagrados de tão crentes e crédulos.
A literatura sobre ateísmo, nesse novo ambiente, tem feito grande sucesso, como é o caso dos best sellers "Deus, um Delírio", do biólogo Richard Dawkins; "Deus Não É Grande", do jornalista Christopher Hitchens, de "Carta a uma Nação Cristã", do filósofo Sam Harris, um manifesto em defesa do ateísmo e do Tratado de Ateologia, do filósofo francês Michel Onfray. Também foi recentemente lançado com grande furor “O Livro Negro do Cristianismo-Dois mil anos de crimes em nome de Deus”. Uma porrada no juízo em qualquer cristão! Não se lê qualquer desses livros impunemente. Ler todos eles e não balançar nas estruturas é coisa para santo.

17.4.08

Culpa com Feriados Diferentes IV


Na última coluna “Culpa Com Feriados Diferentes”, inspirado por Richard Dawkins, falava dos horrores do Velho Testamento. Minha querida colega Altenir adota na sua vida os “belos” preceitos ali escritos e desejaria me convencer a achá-los também belos, nem que eu tivesse que cavoucar nas entrelinhas. O pior da Bíblia é exatamente o excesso de entrelinhas onde cada um lê o que quer. Há quem veja beleza onde outros vêem saladas de interesse, para dizer o mínimo e ser bonzinho.

Os cristãos não percebem que os ensinamentos morais contidos nos Testamentos visavam apenas a um pequeno grupo específico. Quando os judeus se auto-intitularam: “o povo eleito”, e registravam essa definição em livros ditos sagrados, isso se inseria num contexto de dominação de povos vizinhos hostis em torno de um objetivo comum de unir tribos desgarradas. A expressão “Amai o teu próximo” então, significava naquele contexto apenas “amai outro judeu” e “Não matarás” significava apenas “Não matarás outro judeu”. Toda interpretação literal além dessa é ignorância histórica, como prova Richard Dawkins. Se as escrituras sagradas hoje são tidas como veículo de união de milhões de pessoas, elas tinham como objetivo inicial separar pessoas. Sua origem era mostrar que uns são melhores do que outros e estes outros (os não-eleitos) deveriam ser dominados, derrotados, assimilados e destruídos. Mas chega de Testamentos.

As igrejas, de modo geral, condenam o aborto e o preservativo. O Brasil é um Estado laico composto por muita gente facilmente sugestionável, como provam pesquisas recentes que mostram, por exemplo, que índices de aprovação da pena de morte crescem ou diminuem dependendo de um crime mais ou menos chocante divulgado pela mídia. Pois imagine o poder de inúmeros padres e pastores de cidades pequenas do país de impor políticas contra métodos de contracepção. Coitados dos prefeitos que queiram distribuir DIU ou pílulas do dia seguinte aos pobres dos seus municípios. Os padres têm um palanque permanente nas missas para convencer fiéis a não mais votos nesses políticos. Já é difícil lidar com essa realidade social desigual sem as igrejas para atrapalhar ainda mais. Você acha que os fiéis não são tão influenciáveis? É que talvez você não conheça a realidade dos grotões do Brasil ou nunca viu um Maracanã lotado encher sacos de dinheiro atendendo aos apelos do bispo Edir Macedo.

Alguns cristãos já usam a internet, essa terra de ninguém, para pregar falácias como o power point que teima em voltar para minha caixa de e-mails. Dawkins também fala sobre essa lenda urbana que usa o exemplo de Beethoven para pregar contra o aborto. Diz assim:“Sobre a interrupção da gravidez, quero sua opinião. O pai era sifilítico, a mãe tuberculosa. Das quatro crianças nascidas, a primeira era cega, a segunda morreu, a terceira era surda-muda e a quarta também era tuberculosa. O que você teria feito? Interromperia a gravidez? Então você teria assassinado Beethoven” Outras versões mudam o número de fílhos ou os tipos de doenças deles ou dos pais. Mas isso é mentira, pois Beethoven era o filho mais velho e nenhum dos seus pais tinha sífilis. A mãe de fato morreu de tuberculose, algo muito comum naquela época. Ahh...mas ainda não vi na internet ninguém lamentando o fato de a mãe de Hitler não tê-lo abortado. Pouparíamos assim milhões de vida inocentes no Holocausto, estou certo? Não duvido de que haja uma explicação cristã para Deus ter permitido o Holocausto. Ela só não precisa me convencer, não é? Como também não preciso acreditar no Coelhinho da Páscoa.

A Igreja Católica tem 5.120 santos. Rezar para eles aplaca os sofrimentos dos crentes ou seria mero efeito placebo? Richard Dawkins mostra que a milionária Fundação Católica Templeton gastou 2,5 milhões de dólares para tentar provar que rezas funcionam. O estudo envolveu 2 mil doentes e vários milhares de fiéis que oravam por esses enfermos. 1/3 dos doentes sabia que recebia preces, outro terço recebia orações sem saber e 1/3 não recebia reza alguma. O resultado foi uma surpresa: não houve variação na recuperação de quem recebia preces sem saber e de quem não as recebia. Mas os que sabiam estar recebendo orações sofreram mais complicações. A religião não explica isso, mas a ciência sim. E a psicologia humana tem nome para isso: “Ansiedade de desempenho”. Eles não se julgariam merecedores das preces ou imaginariam estar piores do que estavam para precisar de orações...enfim...2,5 milhões de dólares no lixo.

Citando Tertuliano: “Credo quia absurdum” ou “Creio porque é absurdo”. Os que argumentam em favor dos mistérios inatingíveis da fé estão sempre a reboque da ciência. Nossa tecnologia atual pareceria mágica para um homem das cavernas e um isqueiro faria de qualquer um deus na Idade da Pedra. Antes de inventarem o microscópio havia um universo de mistérios invisíveis aos olhos e as doenças, para a Igreja, eram frutos dos pecados, não dos estafilococos. Místicos exultam com os mistérios e querem que eles continuem misteriosos. Um dos efeitos negativos da religião é que ela nos ensina que é uma virtude satisfazer-se com o não-entendimento.

A esse respeito é sempre bom consultar a opinião do sabido do Santo Agostinho: “Existe uma forma de tentação cheia de perigos. É a doença da curiosidade. É ela que nos leva a tentar descobrir os segredos da natureza que estão além da nossa compreensão, que nada nos pode dar que nenhum homem deveria querer descobrir”. E para não dizerem que Dawkins fica só no santo católico, vejamos o que Lutero, pai do protestantismo, diz: “A razão é a maior inimiga da fé. Quem quiser ser cristão deve arrancar os olhos da razão. A razão deve ser destruída em todos os cristãos.”

Um crente é mais feliz do que um ateu? A religião traz consolo? É um seguro contra a dor da alma, um paliativo, um ópio? George Bernard Shaw achava que “O fato de um crente ser mais feliz que um cético não quer dizer mais do que um bêbado ser mais feliz do que um sóbrio”. Dizem que a religião reduz o estresse, mas a psicologia e o placebo fazem o mesmo com menos morticínios. Na verdade, na maior parte das vezes, a religião aumenta o estresse, como o estado permanente de culpa mórbida que sofrem judeus e cristãos.

Nós só somos bons porque Deus estaria nos fiscalizando? Ivan Karamazov, famoso personagem de Dostoievski, temia que se Deus não existisse tudo fosse permitido. Einstein achava que “Se as pessoas só são boas porque temem a punição e esperam a recompensa, então somos mesmo uns pobres coitados”. Voltaire dizia que Deus era um comediante a atuar para uma platéia assustada de mais para rir.

Quando criança eu achava muito errado Deus ver o que as pessoas fazem dentro no banheiro, uma grande bisbilhotice dele. Só tempos depois fui entender a ironia contida em Paranóia, música de Raul Seixas: “Quando esqueço a hora de dormir/ De repente chega o amanhecer/ Sinto uma culpa que eu no sei de quê/ Pergunto o quê que eu fiz?/ Meu coração não diz/ E eu sinto medo...// Minha mãe me disse um tempo atrás/ Onde você for Deus vai atrás/Deus vê sempre tudo que ‘cê faz...”

Mas aí o estrago já estava feito. Quanta culpa carreguei sob o olhar penetrante desse Super Big Brother...

Culpa com Feriados Diferentes III


Falarei sobre o maior best seller de ficção que a humanidade já produziu: o Antigo Testamento. Nas palavras do escritor americano Gore Vidal: “A partir de um texto bárbaro da Idade do Bronze, conhecido como Antigo Testamento, evoluíram três religiões anti-humanas — o judaísmo, o cristianismo e o islã”.

Vamos começar do começo, onde se começa melhor. Gênesis. Ali um certo Deus afogou todos os seres humanos, incluindo crianças e animais inocentes, salvando apenas uma família e um casal de cada espécie. Mas muitos dirão que não se interpreta mais a Bíblia em termos literais. Pois é exatamente disso que Richard Dawkins fala no seu livro: escolhemos os pedacinhos da Bíblia que levamos ao pé da letra e outros que dizemos alegóricos.

A Bíblia é um bandejão de conveniências. Milhões a levam muito a sério e há milhares de padres e pastores ensinando a história de Noé. Se isso não assusta mais, imagine o efeito que não criou nos séculos passados, onde a Igreja não tinha o contraponto da Ciência? De fato, segundo o Gallup, quase 50% do eleitorado dos EUA acredita piamente no dilúvio. Isso em pleno século XXI.

Pulemos para a história de Ló, em que outra vez somente uma família foi salva — agora do fogo dos céus. Veja o que disse este piedoso homem quando o povaréu de Sodoma se reuniu em frente à sua casa para que ele entregasse os anjos: “Traze-os para que deles abusemos” (Gên. 19). Ló ofereceu à massa, no lugar dos anjos, suas filhas virgens: “tratai-as como vos parecer”. Isso é apenas uma das mostras de apreço com que as mulheres são tratadas na Bíblia. Fogo e enxofre destruíram tudo, até mesmo as criancinhas e animais. Não se pode acusar Deus de falta de imaginação: primeiro água, depois fogo.

Vamos para Juízes capítulo 19 onde um levita e sua concubina se hospedam em uma casa quando os homens da cidade exigem que o dono entregue o hóspede para que “dele abusemos” (as mesmas palavras usadas em Sodoma). O que o velho oferece em troca? Acertou: sua própria filha virgem e a concubina do hóspede. Palavras do anfitrião: “Humilhai-as e fazei delas o que melhor vos agrade, porém a este homem não façais tamanha loucura”. Novamente a misoginia aterradora do Antigo Testamento. Mas se em Sodoma as filhas de Ló escaparam do estupro coletivo, aqui as duas mulheres não tiveram a mesma sorte. Foram abusadas toda a noite e na manhã seguinte. Quando o levita encontrou a concubina morta, num gesto espantoso, cortou o corpo em doze partes e espalhou-os por Israel. Se o objetivo era provocar uma guerra, e Deus tem um propósito para tudo, por causa disso morreram 60 mil homens.

Passemos a Abraão, o pai das três religiões monoteístas. Esse santo homem quando no Egito com a bela esposa Sara, para não correr riscos de morrer por ser casado com mulher tão bela, fazia-se passar por seu irmão. Pois não é que Sara foi parar no harém do faraó e Abraão ficou rico com isso? Deus, irritado com esse arranjo, enviou pragas sobre o faraó, mas sobre Abraão nem uma escabiose. O faraó, ao descobrir a farsa, os expulsa do Egito (Gên. 12). Mas os dois usam o mesmo golpe com Abimeleque. O resultado é o mesmíssimo: harém, grana, pragas, expulsão. Que coisa repetitiva...

Mas Abraão se superou no episódio de quase sacrifício do filho Isaac (para os muçulmanos o filho era Ismael). Diz-se que Deus é amor e que o propósito era testar a fé de Abraão, mas você já se colocou no lugar daquela criança? Já imaginou os traumas carregados para o resto da vida? Dawkins comenta que essa história de abuso infantil inaugurou a mesmíssima defesa usadas pelos nazistas em Nuremberg “Eu só estava cumprindo ordens superiores”.

Os textos “sagrados” não devem ser interpretados literalmente? Mas milhões de católicos, judeus e muçulmanos os interpretam ao pé da letra. Se é para interpretar a Bíblia como alegoria simbólica, seria símbolo de quê? Qual princípio moral se pode tirar de uma história de pavor como essa?

Gostou de Deus ter poupado Isaac? Mas saiba que ele não foi tão generoso com a filha de Jefté. Vá em Juízes, capítulo 11 e veja que destino teve a inocente criança. Ou vá em Números, capítulo 31 e veja Moisés repreendendo seus soldados por terem matado todos os homens midianitas, mas poupado as mulheres e crianças. Furioso, Moisés mandou que eles voltassem e matassem todos os garotos e mulheres, só poupando as meninas virgens. Imagine para quê? Não precisa imaginar, pois está escrito lá. “Deixai-as viver para vós outros”.

Poderia continuar indefinidamente, mas vou dar só mais dois exemplos. O que fez Josué (Cap. 6) após vencer em Jericó: “Tudo quanto havia na cidade eles destruíram totalmente ao fio da espada, desde o homem até a mulher, desde o menino até o velho, e até o boi, o gado miúdo e o jumento”. Até o pobre do jumento? Que mal fez o jumentinho? Bom, naquela época não tinham a Sociedade Protetora dos Animais. O que os heróis bíblicos fizeram não difere muito do que Sadam Houssein e os nazistas fizeram no Iraque e na Alemanha.

O que as pessoas que consideram o Antigo Testamento exemplo de retidão moral acham de Levítico? Ali está escrito que devem morrer quem amaldiçoa os pais, comete adultério, fornica com a madrasta ou enteada ou com alguém do mesmo sexo, trabalha no sábado....Blaise Pascal já dizia que os homens nunca fazem o mal tão plenamente e com tanto entusiasmo quando o fazem por convicção religiosa.

Sam Haris, autor de Carta a Uma Nação Cristã, afirma sobre o Antigo Testamento: “O perigo da fé religiosa é que ela permite os seres humanos normais colherem os frutos da loucura e considerá-los sagrados. Como cada nova geração aprende que as proposições religiosas não precisam ser justificadas, como todas as outras precisam, a civilização ainda está sitiada pelos exércitos dos irracionais. Estamos agora mesmo nos matando por causa de literatura da Antiguidade.”

Culpa com Feriados Diferentes II


Como comenta Richard Dawkins, em seu livro "Deus um Delírio", às religiões são dados, pelos governos, privilégios que nenhuma outra organização recebe. Por exemplo: a melhor forma de ser dispensado do serviço militar em tempos de guerra é se dizer religioso. Um filósofo moralmente brilhante, com tese de doutorado sobre os males da guerra não conseguirá ser dispensado por motivos de consciência, mas quem disser que sua religião impede que se lute numa guerra é dispensado, mesmo que não possua uma gota de sangue pacifista.

Outro exemplo de privilégios dados à religião. Nos Estados Unidos, a Suprema Corte autorizou rituais religiosos envolvendo a ayauasca (no Brasil: Santo Daime ou União do Vegetal), planta que contém a droga alucinógena ilegal dimetiltriptamina. Para a justiça, os adeptos não precisam provar que a droga aumenta a compreensão. Basta que eles acreditem nisso e pronto! Usem à vontade. Por outro lado, a mesma corte proibiu pacientes de AIDS e câncer que usavam a maconha para fins medicinais de continuar o tratamento. Mesmo com receita médica e estudos científicos provando que a erva é eficiente contra os fortes enjôos, comuns nesses pacientes.

Todas as religiões são isentas de impostos. Qualquer culto é uma lavanderia de dinheiro sujo. Além disso, aos sacerdotes são dados poderes para ditar normas sobre reprodução e sexualidade, mesmo eles não sendo nem de longe especialistas no assunto. A Igreja Católica, por exemplo, proíbe o aborto e o preservativo (mesmo que seja para evitar a AIDS – nesse caso tornando-se é cúmplice da disseminação da epidemia), mas não são poucos os católicos que simplesmente vivem como querem. É o catolicismo bandejão, onde os “fiéis” pegam o que gostam e descartam o que é inadequado aos seus interesses. Uma bela fachada com o recheio da hipocrisia. Afinal o sujeito é católico ou não é, com todos os ônus e bônus de sê-lo.

Contam que Alfred Hitchcock, cineasta famoso pela arte de assustar pessoas, estava uma vez dirigindo seu carro na Suíça quando de repente apontou pela janela do automóvel e disse: “Essa é a cena mais aterrorizante que já vi”. Era um padre conversando com um menininho, a mão dele sobre o ombro do garoto. Hitchcock pôs a cabeça para fora do carro e gritou: “Fuja, menininho. Salve sua vida!”.

Seria interessante para qualquer católico se informar um pouco sobre a quantidade de dinheiro que sua igreja já gastou para indenizar as vítimas da pedofilia católica. Até hoje, em acordos judiciais, já foram pagos para vítimas de padres sodomitas mais de 1 bilhão de dólares! Se esse dinheiro tivesse vindo da própria igreja já seria um escândalo, mas é dinheiro dos próprios fiéis, dos dízimos, das contribuições e da isenção de impostos, neste caso todos pagam. Fiéis ou não.

Há centenas de casos documentados desse crime sob o manto da religião, mas um dos mais escandalosos talvez seja o que envolveu o cardeal católico de Boston, Bernard Law, que durante décadas escondeu inúmeros casos de padres pedófilos transferindo-os, seguidamente, de paróquias, tão logo as denúncias lhe chegavam, sem investigação ou punição, pelo contrário, premiando os padres pedófilos, colocando-os para cuidar de seminários com novos garotinhos (carne nova) para saciar sua pedofilia de batina. Após a imprensa divulgar e a promotoria americana abrir os processos, a Igreja fez, em 2002, um acordo milionário com 508 vítimas, pagou 660 milhões de dólares em indenizações e o cardeal Law, em vez de punido, foi promovido. Hoje ele é secretário especial do Papa. Para quem quiser saber mais sobre o fato recomendo o filme Por Trás da Fé, de 2005, no qual Christopher Plummer interpreta o cardeal Law.

Quem quiser ver outro filme sobre a “bondade” da Igreja Católica, recomendo Em Nome de Deus, de 2004 que mostra a vida terrível das internas dos Lares de Madalena, conventos católicos na Irlanda onde milhares de meninas pobres, órfãs ou retardadas trabalhavam sem descanso, sem pagamento e sob abusos físicos, sexuais e psicológicos. Somente em 1996 essa barbaridade acabou. Ou você pensava que eu estava falando de uma prática da Idade Média?

Uma das defesas que se faz da figura de Deus é dizer que as religiões não o representam, mas que ele é puro amor. Só se for um amor sadomasoquista. O comediante americano George Carlin brinca, mas de um modo no fundo muito sério, quando diz: “A religião convenceu as pessoas de que existe um homem invisível — que mora no céu — que observa tudo o que você faz. Ele tem uma lista de dez coisas que não quer que você faça. E se você fizer alguma dessas dez coisas ele o mandará para um lugar especial, cheio de fogo e fumaça, e de tortura e angústia, para que você sofra e queime e sufoque e grite e chore para sempre, até o fim dos tempos...Mas Ele ama você.”

Em seu livro O Evangelho Segundo Jesus Cristo, o prêmio Nobel José Saramago faz um maravilhoso libelo contra Deus. Em suas mais de 400 páginas é difícil selecionar trecho mais brilhante. Selecionei parte de um diálogo fascinante entre Deus e Jesus. Ali o Pai insiste que o filho aceite a crucificação “Que tu o beba [esse cálice] é a condição do meu poder e da tua glória” Jesus diz: “Não quero essa glória”, ao que Deus retruca: “Mas eu quero esse poder”. Assistindo a tudo o Diabo comenta: “É preciso ser-se Deus para gostar tanto de sangue”.

Não resisto à comparação com a frase usada por um adversário do jacobino Marrat, um dos “reis do Terror” da Revolução Francesa: “Deem um copo de sangue a este canibal que ele está com sede”.

Ainda em Saramago, o Diabo tenta uma barganha com Deus para poupar a vida de Cristo a quem se afeiçoara: ao que Deus responde indignado: “Quero-te pior do que és agora. Porque esse Bem que eu sou não existiria sem esse Mal que tu és. Um Bem que tivesse que existir sem ti seria inconcebível, a um tal ponto que nem eu posso imagina-lo, enfim, se tu acabas, eu acabo, para que eu seja o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal, se o Diabo não vive como o Diabo, Deus não vive como Deus”. Não podia dar em outra coisa. Prêmio Nobel na cabeça!

Há quem encare o livro de Saramago como intensamente simbólico, mas mera obra de ficção. Pode até ser, mas em seguida falarei sobre a maior peça de ficção de todos os tempos. O Antigo Testamento.

Culpa com Feriados Diferentes I


Inauguro hoje a coluna: “Culpa com Feriados Diferentes”. Pretendo nela falar de um só tema: Religião. Grande parte do que aqui for escrito deriva do meu absoluto encantamento por um livro que acabo de terminar a leitura: Deus, um Delírio, do geneticista Richard Dawkins, um ateu combativo, divertido e inteligentíssimo, cujos livros viram best sellers em todos os países em que são publicados.

A coluna é fruto dessa recente paixão. O próprio título é tirado de uma frase (citada no livro), da comediante Caty Ladman: “Todas as religiões são iguais. Basicamente é a mesma culpa, mas com feriados diferentes”.

Impressiona-me quando alguém tenta discutir religião. É que se decidiu que esse é um assunto sobre o qual não se pode criticar. Dawkins diz: “Minha linguagem só soa contundente e destemperada por causa da estranha convicção, quase universalmente aceita, de que a fé religiosa é dona de um privilégio único acima de qualquer crítica”.

A paixão religiosa se expressa contrária à ciência, mas a ciência não pode se manifestar contra a fé. Veja o que diz o renomado criacionista americano Kurt Wise: “Se todas as evidências do universo se voltarem contra o criacionismo, serei o primeiro a admiti-las, mas continuarei sendo criacionista, porque é isso que a Palavra de Deus parece indicar”. Se isso não for chamado de fundamentalismo religioso e mentalidade cega, não sei mais o que é. Esse suposto “cientista” está dizendo que mesmo que a ciência prove algo com 100% de certeza, ainda assim ele vai acreditar no contrário.

Dawkis imagina, como Jonh Lennon na canção, um mundo sem religião, sem ataques suicidas, sem homens-bomba, sem Cruzadas, sem caça às bruxas, sem Inquisição ou Holocausto, sem Israel x Palestinos, Sévios x Croatas x Muçulmanos, Irlanda do Norte, sem pogroms aos judeus, sem talibãs e açoites públicos, sem infibulação clitoriana, ou seja, sem religião.

Exemplo de fundamentalismo cristão: a música Imagine, de Lennon, é editada em inúmeras rádios católicas americanas, onde é expurgada a frase da canção “and no religion too”. Lembro que Lennon dizia “Deus é algo pelo qual o homem mede a sua dor”. Sempre cito essa frase quando alguém me alerta que na hora da dor não terá jeito, clamarei por Deus. Na hora da dor a gente chama qualquer coisa. O ser humano é programado para evitar o sofrimento. Por isso nas torturas se confessa tudo. Só fanáticos religiosos aguentam o sofrimento extremo sem capitular na fé ou, felizes, se explodem atados a bombas. Isso vai contra a natureza humana e essas pobres criaturas não são exemplos a serem seguidos. Apesar de muitos serem santificados ou brindados, no paraíso, com virgens às centenas.

Acusam-se, com razão, os muçulmanos de serem religiosos fanáticos, mas o país mais fundamentalista do mundo são os Estados Unidos. Dawkins denuncia que o status atual dos ateus naquele país é equivalente ao dos homossexuais nos anos 50. Uma pesquisa do Gallup de 1999 perguntou a chance de os americanos votarem em uma mulher (95% votariam), um católico (94%), um judeu (92%), um negro (92%), um mórmon (79%), um homossexual (79%), um ateu (49%)!

Robert Pirsig, autor de Zen e a Arte de Manutenção de Motocicleta sabiamente dizia: “Quando uma pessoa sofre um delírio se chama de insanidade. Quando muitas pessoas sofrem de um delírio, isso se chama religião”. E o físico e prêmio Nobel Steven Weinsberg comenta: “Algumas pessoas têm uma versão de Deus tão ampla e flexível que é inevitável que encontrem Deus onde quer que procurem. Como qualquer palavra, a palavra Deus pode ter o significado que quisermos. Se alguém quiser dizer que Deus é energia, poderá encontrar Deus, por exemplo, em um pedaço de carvão.”

O poeta Fernando Pessoa fala muito bem sobre essa abundância de personas divinas no trecho do belíssimo poema O Mistério das Coisas “...Se Deus é as flores e as árvores /E os montes e sol e o luar, / Então acredito nele, / Então acredito nele a toda a hora, / E a minha vida é toda uma oração e uma missa, / E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. /Mas se Deus é as árvores e as flores / E os montes e o luar e o sol, / Para que lhe chamo eu Deus? / Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; / Porque, se ele se fez, para eu o ver, /Sol e luar e flores e árvores e montes, / Se ele me aparece como sendo árvores e montes / E luar e sol e flores, /É que ele quer que eu o conheça / Como árvores e montes e flores e luar e sol. / E por isso eu obedeço-lhe, /.../ E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, / amo-o sem pensar nele, / E penso-o vendo e ouvindo, / E ando com ele a toda a hora.”

28.2.08

É O BICHO! É O BICHO!

Europa em 1995 não passava de um sonho, mas as coisas mais extraordinárias acontecem quando você não estava fazendo planos. Era mais ou menos isso que John Lennon chamada de vida....mas essa é outra história.

Lembro-me do telefonema e do convite: “Você quer ir à Europa comigo?”. Pensei que era uma brincadeira da minha amiga gaúcha milionária, cujo marido, grande fazendeiro de soja, não tinha interesses em outros continentes. Menos de um mês depois recebi um envelope contendo os bilhetes aéreos e todos os vouchers de uma viagem que incluía 10 países europeus em um roteiro de um mês.

Achei que estava sonhando e lhe telefonei tremendo. Expliquei que pensava ser a proposta uma brincadeira, que eu não poderia dar a ela aquela despesa etc. Ela disse que eu não precisaria me preocupar com nada pois era seu convidado e se eu pudesse pagar pelas minhas refeições estava tudo certo.

Argumentei que não poderia pedir férias para dali a menos de um mês pois elas já estavam marcadas para meses depois e que para antecipá-las precisava de uma justificativa do meu chefe. Expliquei a ele que ganhara a viagem de presente, mas nem precisei entrar em detalhes. Ele logo autorizou.

Já contei aqui episódios estranhos de viagens que fiz com amigos esquisitos, perdidos em Miame e no Bronx e um passeio inesquecível por uma ilha grega onde almocei com o pai de uma traficante que não falava nenhum idioma que eu conhecesse. Essa é uma daquelas.

Depois de percorrermos vários países numa excursão composta por muitas velhinhas de diversos países latino-americanos e alguns brasileiros, vi que meu dinheiro estava acabando. Comida na Europa é muito caro e eu tinha combinado com minha amiga que eu pagaria minhas refeições já que ela estava pagando tudo: hotéis, museus, passeios, passagens aéreas etc.
Eu acabara de comprar meu primeiro apartamento e estava duríssimo de grana. E ainda tinha que economizar ao máximo em comida para gastar o pouco dinheiro que me restava em caríssimas ligações internacionais para o Brasil onde havia ficado uma fonte dispendiosa de emoções, aflições e desejos que, por sorte ou azar, eu conhecera um mês antes da viagem. Um romantismo quase literário ter que escolher entre gastar o dinheiro com comida ou cartões telefônicos já que em 1995 ainda não sonhavam com celulares.

Estava eu nesse dilema quando descobri uma forma de comer de graça. Primeiro foi esconder os pãezinhos, frios, frutas e geléias dos cafés da manhã para devorar mais tarde. Os hotéis têm vigilantes para isso já que não é permitido. Acho que desconfiam especialmente dos brasileiros. Muitas vezes não consegui levar meu farnelzinho.

Mas fiz amizade com a maior parte dos passageiros do ônibus da excursão e a amizade com as coroas do grupo permitiu que eu bolasse uma outra estratégia. Nos almoços ou jantares em grupo eu sempre pedia o prato mais barato, normalmente uma pizza ou uma salada, e quando a comida de todos chegava, eu comia de tudo e pagava só a minha pequena porção. As coroas achavam lindo como eu comia e falava, falava e comia. Elas nem desconfiavam de que eu estava era duro.

Mas nem assim o dinheiro sobrava, pois as ligações me dilapidavam e comecei a vender as minhas coisas. Primeiro a máquina fotográfica novinha, depois os poucos presentes que comprei pelo caminho. Fui me desfazendo de tudo para gastar com telefonemas.

Até que após Atenas, Bruxelas, Londres, Paris, Amsterdã, Zurique, Frankfurt, Colônia e Verona chegamos a Florença. E meu dinheiro estava no fim. Ainda passaríamos por Veneza, Roma, Pisa, Nápoles, Nice, Barcelona, Madri...o que fazer? Eu jamais pediria dinheiro a minha amiga. Eu tinha que me virar para comer, afinal eu era um homem ou um rato?

Chegamos a Florença numa noite muito quente e na manhã seguinte fizemos um passeio lindo, mas cansativo por museus, praças e catedrais. Quando fomos almoçar já eram quase 5 da tarde e meu estômago só tinha visto comida às 7 da manhã. Nem um sanduichezinho do hotel consegui roubar.

Descobrimos um restaurante. Lotado. Entramos numa imensa fila que parecia nunca se mover, a comida, caríssima, vinha em porções individuais que ficavam numa vitrine e eram cobertas por um filme de plástico. Comprei minha saladinha básica confiando que meus amigos pediriam pratos fartos que me alimentassem como sempre acontecia. Subimos três andares de escada para achar uma mesa vaga, pois todos os lugares estavam ocupados. Sentamos e devoramos a comida. Quando terminei de comer notei que meus colegas também comeram tudo. Não deixaram nada para mim. E eu ainda estava morrendo de fome e sem dinheiro.

Eu tinha que pensar rápido num modo de comer. A alternativa era descer 3 andares de escada, enfrentar aquela fila enorme, pedir uma comida caríssima, subir de novo 3 andares ou pedir dinheiro a minha amiga. Nenhuma dessas alternativas me agradava. Foi quando aquela mulher me salvou. Abençoadas sejam todas as portuguesas chamadas Gilda.

Ela estava sentada à mesa vizinha e resplandecendo sobre aquela mesa à sua frente uma linda, enorme e intocada lasanha. A mulher tinha afastado o prato para o lado. Percebi que ela não iria comê-la. Eu precisava comer aquela lasanha nem que fosse a última coisa que eu fosse fazer. Quase invoquei a memória de Scarlett O’Hara diante de uma Tara em ruínas: “....Eu jamais passarei fome!”. O que Scarlett estava disposta a fazer, eu não sei, mas eu precisava inventar algo. Não podia simplesmente pedir a comida à mulher desconhecida. Afinal eu ainda tinha um pouco de dignidade.

Eu tinha que comer aquela lasanha. Como sou uma pessoa sem muita vergonha, dei um jeito de perguntar:

– Com licença, a senhora é de Portugal?

Ela me olhou surpresa e respondeu com um sorriso:

–Sim. Sou portuguesa. – E, com o sotaque inconfundível perguntou: – Você é do Brasil?

Confirmei mantendo o sorriso faminto no rosto. Perguntei seu nome:

– Gilda.

– “Nunca houve uma mulher como Gilda” – Citei.

Seus olhos brilharam como se encontrasse outro fã do mesmo filme:

– Ahhh, tu também gostas da Rita Hayword? Meu nome é em homenagem ao personagem dela naquele filme.

Conhecimentos cinematográficos vêm a calhar em certos momentos

– Como te chamas? De que parte do Brasil tu vens? – Ela perguntou. Eu estava progredindo.

– Chamo-me Luiz. Sou da Bahia.

Ela bateu uma palminha e deu um gritinho

– Ahh, então tu és da Terra do Bicho!

Não entendi. Ela explicou, após cantarolar com sotaque português “É o Bicho/ É o Bicho/Crocodilo eu sou!”, que Ricardo Chaves fizera turnê por Portugal e essa música era sucesso por lá. Foi até jingle da campanha do candidato a presidente do país.

Então Gilda gostava de música baiana! Perguntei se também gostava de fado. Ela afirmou que obviamente gostava, pois era de Portugal. Então eu lhe disse:

–Vou cantar um fado para você !

– Vais cantar um fado para mim? – Ela não acreditou.

Antes que ela pensasse muito comecei a cantar baixinho o fado Estranha Forma de Vida, de Amália Rodrigues, convenientemente gravado por Caetano Veloso no disco Totalmente Demais e que eu sabia de cor e com sotaque português e tudo: “Foi por vontad’Deus / Que vivo nest’ansiedade/ Que todos os ais são meus/ Que é tod’minha a saudade/ Foi por vontad’Deus / Que estranha forma de vida/ Vive est’meu curação...”

Ao final da minha apresentação particular a portuguesa tinha os olhos cheios de lágrimas. Chorava e dizia:

– Que fado lindo! Meu finado marido cantav’ele para mim!

O que eu havia feito? Levei a mulher às lagrimas! Como eu ia pedir a lasanha agora? Mas ela logo se recuperou e para minha surpresa chamou seu pai que estava sentado próximo. Apresentou-me a ele e disse-lhe que eu sabia cantar aquele fado.

O homem, um português bonachão de uns 60 anos, barrigão, fartos bigodes e uma alegria típica de excursionistas pegou-me pela mão e exigiu que eu cantasse novamente o fado, mas desta vez no meio do grupo. Foi então que notei que todo aquele 3º andar estava ocupado por uma excursão de Portugal.

Eu, que não suporto aparecer, achei aquilo um desafio estimulante. Segui o portuga que me apresentou a todo o grupo como um brasileiro que iria cantar-lhes um fado. Meus amigos à minha mesa não acreditavam naquilo.

Foi uma experiência! Cantei o fado aos berros. Os portugueses adoraram. Fui muito aplaudido. Eles gritavam em coro: Luiz! Luiz! Luiz! Obviamente haviam bebido vários vinhos italianos a mais.

Gilda e o seu pai bigodudo me abraçaram dizendo:

- Quando fores a Cuimbra prucuras Gilda no Automov’Club’. Agora tens amigos em Portugal!

Antes de eles deixarem o restaurante aproveitei a nova amizade e perguntei:

– Gilda, você não vai querer comer a lasanha?

Essa história poderia acabar aqui e eu poderia contar a todos que cantei para comer na Europa, mas incrivelmente ela teve um desdobramento.

Quem já fez uma dessas excursões para a Europa sabe que todas elas seguem o mesmo roteiro pelas mesmas cidades e os ônibus fazem os mesmos trajetos. Quatro dias depois do episódio com os portugueses em Florença minha amiga e eu estávamos em Roma. Ao atravessarmos uma rua em direção ao Monumento a Vitório Emanuel e ao Soldado Desconhecido, ouvi várias pessoas gritando meu nome.

Foi quando os gritos ficaram mais altos e exatamente do meu lado passou o ônibus dos portugueses. Estavam em pleno city tour por Roma e, pendurados nas janelas, uns dez gritavam meu nome. No meio deles se destacava Gilda. Ela jogava vários beijos com as mãos e gritava:

– É o bicho! É o bicho! Crocodilo eu sou!!!

27.2.08

Quantas missas vale Canô ?


Adoraria mudar de assunto e não falar mais do útero do século do Recôncavo, quem sabe encerrar um ciclo após dois artigos seguidos sobre o tema (pois as boas - e as más - trilogias vêm sempre em três). Então talvez com este terceiro artigo encerre a implicância com a velha Canô.

Se eu tivesse um pouco de inteligência esse texto teria um estofo mais filosófico, adentraria o terreno da psicologia social e analisaria a atávica tendência humana de construir seus mitos e heróis para depois simplesmente destruí-los. Penso nisso quando calculo quantas matérias da Folha, Veja, Istoé, Caras, Quem... eu suportarei até que enjoem da ladainha. Afinal chegamos a um bom número redondo. 100 já está de bom tamanho. Que graça ou novidade teriam as matérias: "Canô completa 101!" "Canô comemora 102!" se jornalistas adoram um epitáfio.

Canô vale quantas missas? Henrique IV da França achava que Paris valia uma, justificando qualquer sacrifício por seu proselitismo católico. Penso nisso quando vejo seguidamente o ateu Caetano ajoelhado ao lado da mãe na matriz de Nossa Senhora da Purificação. Afinal, quantas missas vale Canô? Se minha mãe fosse católica fervorosa, como Canô e eu, como Caetano, ateu, me sujeitaria a essas coisas? Gosto menos da minha mãe do que Caetano da dele? Mas minha mãe não me arrastaria para uma Igreja sabendo que eu não creio no Deus dela. Penso que minha mãe respeita mais minhas descrenças do que Canô as do filho ateu dela.

Ora, direis: um filho tem que respeitar a fé da mãe. Mas o que vejo é a figura e os valores da velha Canô devorando a incredulidade do filho, como ela já fizera com a fama conseguida de segunda mão, via Caê. Lembro a pintura simbólica e sombria de Goya que retrata Saturno devorando o filho Zeus. Saturno é Cronos, o tempo inexorável, o velho devorando o novo. Canô, qual Cronos, quer se perpetuar sinistramente devorando tudo.

Mas o espectro da multimidiática Canô me ronda desde que resolvi falar desse tema. Não há uma única publicação que saia sobre ela que vários amigos não me enviem cópias. Parece que não tenho outro assunto para tratar. Há os que, quando a vêm, lembram imediatamente de mim. Um fardo.

Um me mandou um link da revista Vida Simples com a matéria: "Dona Canô: A baiana que é uma lição de calma e sabedoria há 100 anos". Na reportagem ficamos sabendo, pela milionésima vez, que Canô acorda às 6 da manhã e toma café com leite e suco. Ao meio-dia ela come moqueca com azeite de dendê e leite de coco. Prefere a moqueca de arraia com feijão de leite. Além desses dados fundamentais, somos informados de que Canô, (como milhares de senhoras do interior da Bahia), celebra São João com fogueira e mesa farta, comemora São Pedro, faz caruru de Cosme e Damião, reza a trezena de Santo Antônio e (agora sim, algo inédito), comanda a lavagem da Igreja de Santo Amaro. Ficamos sabendo que Isaura é a sua cozinheira de 40 anos e as ajudantes são Fifi e Odília. Informações importantíssimas.

Outro amigo me telefona eufórico com a propaganda de Canô para o Banco do Brasil. O que posso dizer sobre isso? Para certas coisas faltam palavras. Mas não resisto à matéria do Correio da Bahia de 28 de janeiro passado. Ali, verdadeiras pérolas são escritas pelo jornalista Alexandre Lyrio. Um título que ocupa 5 colunas, acompanhado de diversas fotografias estampa: "Dona Canô comanda cortejo da Lavagem de Santo Amaro".

Selecionei as seguintes pérolas da matéria (creia, não é uma crônica) que já começa assim: "O semblante da matriarca dos Velloso carrega a mesma pureza e doçura dos santos"; "Quando surgiu, iluminada, foi recebida pela filha e diva"; Enquanto isso, crescia a `fila de fiéis´ para render homenagens à `santa Canô´; "Foi seguida de perto por um cortejo de 500 baianas, e um caloroso aglomerado de pessoas, algumas delas ávidas por tocá-la para receber sua inspiração". Um comerciante de 61 anos disse: "Em primeiro lugar está Nossa Senhora. Depois rendo minhas homenagens a Dona Canô".

Mas a simbologia mais emblemática da irrelevância de Canô eu testemunhei ao ler sua entrevista para o site EcoFuturo, um portal dedicado a educação ambiental. Ali, Canô é perguntada sobre a poluição do Rio Subaé, assunto apropriado para um site de ecologia.

Canô responde lembrando do passado quando o rio era limpo. Diz: "Hoje o rio está imundo. O povo está pouco se lixando". Então o site pergunta se os moradores mais antigos tentam de algum modo melhorar a cidade. Ora, Canô é uma moradora antiga e a esta pergunta ela poderia responder se está fazendo algo. Mas eis sua resposta:

"A população não tem direito a nada. Quando tem um governo que se interessa pelo lugar, a coisa progride, mas eles não têm interesse. Pouco se incomodam se está limpo ou sujo." Será que fui só eu que achou que ela não respondeu à pergunta?

Mas o site insiste. Dá uma chance a ela: "A senhora sempre foi muito influente, sua casa sempre é referência". Você acha que ela se tocou? Olha a resposta da velha senhora:

"Não suporto política...Não voto em ninguém. Já passou o meu tempo de votar. Fui votar por causa dos meus amigos de Salvador mas para prefeito, não"

Cara pálida, me responda: Se Canô era amiga íntima de ACM e Cia, como de todos os governadores do PFL baiano, de Lula, do ministro Gil e de toda a corriola do PT, porque ela prefere rezar missas a usar a influência para limpar o Subaé? Prioridades, não é? E o que dizer do fato de Santo Amaro ser a cidade que tem o maior índice de poluição por chumbo do mundo. Repito: do mundo! O que será que a velha acha disso? Talvez alguém consiga uma resposta dela entre uma hóstia e uma colherada de vatapá.

Canô virou uma santa, uma seita, uma histeria coletiva, um caso de marketing, um fenômeno social. Essa babação não tem fim! E pensar que depois ainda teremos que agüentar ruas, praças, viadutos, feriados, aeroportos e uma inevitável canonização.

13.1.08

A Trilogia da Vingança


As trilogias ocupam um lugar quase à parte na história do cinema, abrigando tanto obras-primas como filmes comerciais. Dentro dessa visão personalíssima de direção há espaço para diversas correntes, com não somente uma, mas três películas abordando um mesmo tema.


Há vários exemplos de grandes filmes desse gênero, como a Trilogia das Cores do polonês Krzystof Kieslowski (A Liberdade é Azul, A Igualdade é Branca e A Fraternidade é Vermelha) e a não tão famosa, mas igualmente sublime, trilogia do iraniano Abbas Kiarostami (Onde Fica a Casa do Meu Amigo?, A Vida e Nada Mais e Através das Oliveiras).

Agora há um novo trio para juntar a esses filmes geniais. A Trilogia da Vingança. Falo dos filmes Mr. Vingança, Old Boy e Lady Vingança, do diretor sul-coreano Park Chan-wook, não à toa considerado por Quentin Tarantino como o seu diretor favorito.

Quem ainda não assistiu aos três filmes não sabe o que está perdendo. Nem precisa assistir na ordem, apesar de que ela demonstra o aprimoramento da técnica cinematográfica de Park Chan-wook, atingindo praticamente a perfeição sublime em Lady Vingança. Os três filmes colecionam prêmios internacionais. Vamos pela ordem

Oldboy é a história de um homem que após 15 anos preso em um pequeno quarto de hotel é libertado e sai à procura do responsável pelo seu cárcere. Ele não sabe os motivos da sua prisão, nem por que foi solto. Como os outros filmes da trilogia, é visceralmente violento e belo e, entre algumas das seqüências perfeitas, possui uma cena que já pode entrar para a história do cinema: aquela em que o protagonista literalmente engole um polvo vivo. As reviravoltas da trama demonstram um roteiro bem ajustado e uma direção segura e refinada.

Mr.Vingança (Sympathy for Mr. Vengeance) é sobre um jovem surdo-mudo que tenta de tudo para conseguir um transplante de rim para sua adorada irmã. Suas tentativas de ajudá-la fracassam e ele é demitido, se envolve com uma gang de roubo de órgãos, perde todas as economias e protagoniza o seqüestro de uma criança com um final imprevisto. Imprevisto para ele, mas o espectador antecipa o drama, pois o filme segue um crescendo de tensão que explode em cenas de brutalidade e sutil ironia.

Lady Vingança, que encerra magistralmente a trilogia, impressiona desde a abertura e esse deleite continua por todo o filme com uma fotografia deslumbrante, uma trilha sonora excepcional e uma direção de arte que torna algumas cenas uma verdadeira pintura em movimento. Conta a história de uma garota injustamente presa pelo seqüestro e assassinato de uma criança. O criminoso verdadeiro, seu ex-marido, está solto e ela, após cumprir a pena de 13 anos de cadeia, também está na rua. E irá se vingar dele.

É impossível não lembrar de Kill Bill. Ambos têm uma mulher como protagonista vingadora, um marido como vilão e os dois giram em torno de uma criança. Além disso, Tarantino é fã de carteirinha de Park Chan-wook e ambas as películas fletam com outras artes. Os dois filmes estão no mesmo nível.

Lady Vingança tem narrativa não linear, num vai e vem no tempo mostrando como a personagem principal desenvolveu alguns relacionamentos na cadeia que serão fundamentais na sua elaborada vingança. O filme tem seqüências muito violentas, mas nada explícito demais. Ela é mais sugerida. Já vi coisas mais assustadoras na Sessão da Tarde e acho injusta a acusação de ser um filme para estômagos fortes. Tudo bem, não são filmes para mulherzinha, nem para quem é fã de água-com-açúcar como Outono em Nova Yorque, mas talvez também por isso eles sejam três filmaços.

27.9.07

Isto não é uma tese


Não! Tese, não é! Talvez uma hipótese, uma obsessão, vá lá! Quem dera atingisse o nível de aprofundamento que a perfeição em forma de texto, tipo: “Não esqueça a minha caloi” ou “compre batom! compre batom!”, slogans que quem está em torno dos 40 deve, obrigatoriamente, conhecer....mas, je divague...

Falava de hipótese. Pois bem, a minha hipótese, que carece de qualquer comprovação científica, pressupostos epistemológicos ou consistência lógica, é a de que Dona Canô é uma invenção da mente de Caetano Veloso.

Parece uma frase de impacto não é? Mas, como em toda boa teoria de conspiração, há mais perguntas do que respostas. Relembrando: isto não é uma tese, mas uma obsessão.

Pergunta: Quem não nasceu em Santo Amaro da Purificação, não tem sobrenome Veloso nem namorou/casou/dormiu/cantou/tocou/fumou/bebeu ou comeu moqueca com um dos muitos Velosos, por que precisa ser bombardeado com informações completamente irrelevantes sobre a criatura Dona Canô?

Para qualquer leonino, a fama que Caetano possui já seria suficiente. Só que leoninos têm o péssimo hábito da generosidade. Isso não é divulgado. Costuma-se criticar leoninos pela sua vaidade, mas quem consultar qualquer bom horóscopo vai encontrar lá, como característica do leonino a generosidade.

Então aqui temos a primeira parte da teia da conspiração. Caetano é tão generoso em sua vaidade que precisa despejar sua fama excessiva sobre a mãe, Canô? Pausa para explicar as terminologias utilizadas nessa conspiração. Canô existe sim. A mãe de Caetano e Bethânia, bem entendidos. Já Dona Canô são outros quinhentos. Repito: é uma criação de Caetano.

Dona Canô seria uma criatura nascida do profundo complexo de Édipo de Caetano. Acompanhe meu raciocínio conspiratório: Quando você ouviu falar na criatura Canô pela primeira vez? Seria em 1986 quando Caetano dirigiu Cinema Falado? Seu filme experimental muito falado e pouco assistido? Ali Canô já dava as caras velhas (aparentemente ela sempre foi velha) debaixo das asas do filho famoso. Mas, convenhamos, para Caetano não era suficiente, a velha precisava de mais apelo popular. E cinema brasileiro, ainda mais experimental, não renderia a fama de que ele precisava.


Em 1978 ele lançara o LP Muito, em cuja capa branca via-se um círculo azul com a foto de Caetano deitado no colo na mãe. Meio Édipo meio Pietá. E o que se diz da letra de Jenipapo Absoluto, do disco Estrangeiro, de 1989?: “Tudo são trechos que escuto: vêm dela / Pois minha mãe é minha voz”. No mesmo ano, ele escreveu para a Mana Bethânia cantar a música Reconvexo cujos versos pergunta: “Quem não rezou a novena de Dona Canô?”. Mas como a letra da canção prendia a velha Canô em rimas como “suingue de Henri Salvador/ Olodum balançando o Pelô/ risada de Andy Warhol/ mendigo Joãozinho Beija-Flor/elegância sutil de Bobô”, a velha senhora ficou ali, meio perdida entre Pelô e Bobô. Fama, fama ainda não estava garantida, mas, de qualquer modo, já dava para a pessoa sentir que se perdeu a tal novena canônica teve ter perdido uma bela de uma farra. Pelo menos a ela acompanhavam as palavras suingue, balançando, risada, elegância sutil....que novena essa deve ser....


Mas aí Caetano, persistente, escreveu, em 1997, seu livro Verdade Tropical. Livro pouco lido (eu li), mas que dá certo charme espinafrar, como, de resto, dá charme criticar Caetano que debocha dos críticos porque além não atingirem sua capacidade intelectual, ninguém além dele e Canô, sabe dançar aquela dancinha, com as costas de uma das mãos na cintura, corpo arqueado para frente e passinhos miudinhos para trás: a Canô dance.


Voltando ao livro que poucos leram, Caetano narrava ali a frase que a mãe teria dito referindo-se a Gilberto Gil: “Caetano, venha ver aquele preto que você gosta”. Tal frase e sua velha autora continuariam no ostracismo santamarense e Canô não seria alvo de romarias e promessas se Caetano, novamente achando que cinema, música e livro não eram suficientes para aplacar a sua culpa/fama edipiana, fez em 1998 seu cd/show/dvd Prenda Minha.


A indústria cultural é um novelo sem fim. Devidamente desenrolado gera famas e fortunas. Em um momento do cd/show/dvd, dramaticamente, Caetano abre o próprio livro Verdade Tropical e lê textualmente: “Lembro com muito gosto o modo como ela se referia a ele. Pelo menos ela o fez uma vez e isso ficou marcado muito fundo dizendo Caetano, Venha ver aquele preto que você gosta....”


Eu estava no TCA e assisti a este show. Vi a platéia aplaudir cada gesto de Caetano, como o simples ato de ele pegar o próprio livro...aplausos....abrir o estojo de óculos, ajeitar os óculos no rosto...aplausos.... fechar o estojo com certa afetação e um clic amplificado pelos microfones....aplausos para o clic....Caetano precisava desesperadamente derramar sua fama sobre a mãe. Um espírito em busca de um corpo para ungir, uma idéia vagando em busca de uma antena para reverberar. O filho gemia em plena ribalta: incensem minha mãe!!!


Até que atenderam suas preces. Neguinho do Samba entendeu o recado e compôs para Daniela Mercury gravar nos últimos anos daquele milênio: “Dona Canô chamou, eu vou Dona Canô chamou, eu já me vou Dona Cano”. A música, ótima, pega mesmo, principalmente devido à voz privilegiada de Daniela e ao arranjo percursivo do genial Neguinho do Samba. Pronto. Era a senha.


Dona Canô levanta e anda! Deixa definitivamente os bastidores e vem à boca de cena cercada de pompa e circunstância. ACM, nos seus tempos de vivo, pedia-lhe a bênção, hoje isso já é uma cláusula pétrea. Cerca-a a entourage, a criadagem de iaiá e as rodrigas. Canô não anda, desfila. Claudica e a cada claudicar velhas, menos velhas, estão ali para ampará-la numa queda que nunca chega. Cada frase que diz é ouvida com uma pausa reverente, como um pronunciamento repleto de significados sapientíssimos. Se ela diz: “Eu gosto de moqueca de tainha”, logo reina um silêncio denso. Lábios se franzem, cabeças balançam. Todos se calam em respeito. Canô sabe o efeito que causa. Se algo não lhe falta é lucidez. Caetano criou um monstro.


Minha teoria da conspiração iria adiante se eu fosse analisar o papel dos demais filhos, netos e agregados, mas eu não terminaria jamais....A mulher já fez 100 anos, foi canonizada em vida, o que é que eu quero mais falando dessa velha e da sua família folgazã?

16.9.07

Duendes, jegues, Canô e outras crenças


Duendes crescem nos jardins como taturanas lisérgicas. Acredite nos duendes, pois eles, devidamente cativados, serão eternamente responsáveis por você. Quem sabe um dia você esteja participando de um concurso de Miss Sauípe Folia e a prova que lhe dará o cetro e a coroa será desenhar um carneiro em uma redoma ou uma jibóia grávida....hmmm... bem avisei que duendes são lisérgicos.

Recomeçando: Acredito em duendes de jardim e em jegues, mas em Canô eu não sei se acredito. Mesmo Canô aparecendo, dia sim, dia também, na coluna social do Correio da Bahia, desfilando no Barra Fashion...Essa mulher insuportável desafia minha credulidade com sua voz enjoadinha como doce de abóbora. Não suporto esse doce. Prefiro o bom e velho jegue.

Terceira tentativa: Santa Canô do Subaé, rogai por nós pescadores, marisqueiros e discípulos de Edith do Prato. Canô é uma invenção, um case de marketing, uma ilusão histérica coletiva em uma missa barroca, uma imagem como aquelas que choram lágrimas de....digamos...dendê. A velha Canô vale para mim tanto quanto uma rave ao som do Arrocha. Acredito em lulas gigantes, no Arrocha e em papos de bêbado, mas em Canô não acredito.

Já que cheguei a esse nível de confissão vou acrescentar à lista da minha falta de crença: Deus, o Hino Nacional, a Seleção Brasileira de Futebol, Anúbis, Bento 16 e os habitantes do lado escuro da lua. Em ETs acredito, mas acho que eles é que não acreditam em mim.

Pronto. Falei mesmo! Não creio nessas coisas que todo mundo crê. Quando rezam o Pai Nosso eu recito, mentalmente, a letra de Festa no Apê! Quando cantam o Hino Nacional, imagino que é a Marselhesa. Quando o Brasil joga na Copa do Mundo sempre torço pelo adversário. Qualquer adversário. Um empate já acaba comigo. E quando vejo Canô na tv imagino que estou vendo um jegue. Logo as coisas ficam mais engraçadas. Essa técnica não falha e eu consigo fingir ser normal. Só não me peçam para gritar gol quando o Brasil marca. Aí já é pedir demais!

Prometi a mim mesmo que hoje fugiria da pauta, mas não sou bom com promessas feitas a mim mesmo. Sou auto enganável. Promessas feitas aos chefes sempre cumpro, mas comigo mesmo a história é outra. Por isso estou me traindo e falando do útero do século de Santo Amaro da Purificação no seu centenário, quando eu poderia estar roubando, seqüestrando, traficando influências no Senado, mas estou aqui, trabalhando honestamente.

É um deliro vão essa tentativa de fugir da pauta, pois meu contracheque exige atenção aos fatos do dia, demanda escrever sobre o seminário da semana, a comemoração e o evento da vez...Isso está incrustado na minha ficha funcional como uma ostra num rochedo. Preciso raspar bem o cérebro para ver se aparece algo por trás da pátina da pauta lúcida, algo mais irracional. Um duende bêbado já estaria de bom tamanho.

Essa página é uma bóia revolta num oceano de calmaria. Santa Canô da Purificação, salvai-me da pauta diária...Dai-me algo para gritar que não soe banal demais...Delírios de um pauteiro...Canô me assombra. Pelo menos eu acredito em jegues!

11.8.07

Travessuras da Menina Má


Quase larguei esse livro de Mário Vargas Llosa na metade. Cheguei a comunicar ao colega Dida Santiago, que me emprestou seu exemplar, que estava desistindo de lê-lo, pois o casal de protagonistas não me conquistara. Beiravam o desprezível e o livro me parecia uma cópia ruim do genial Servidão Humana de Somerset Maugham. Dida, levemente, insistiu. Argumentou que se eu era mesmo obcecado pelo sadomasoquismo deveria ir adiante.

No passado, sentia alguma culpa por largar livros na metade. Ia até o fim, mesmo que a história não me envolvesse, que a tradução fosse ruim, que o enredo fosse fraco. Hoje, não sinto culpa em largar, meio lidos, livros que não me agradam, quando vejo a infinidade de clássicos que ainda não tive tempo de ler. O tempo está contra mim e obras primas teimam em surgir sem esperar que eu antes leia os Kafkas, Borges, Calvinos, Faulkners, Tolstois...que me olham do alto das minhas prateleiras.

Mas a menina má finalmente me pegou em Londres. Quis abandoná-la em Lima e em Paris, mas acompanhei suas maldades. Senti um prazer sutil em ver as barbaridades que ela aprontava com o pobre diabo peruano Ricardo, mesmo detestando a vulgaridade e a vigarice da menina má, mesmo achando o bom mocismo do protagonista beirando o inverossímil, lembrei dos personagens de Servidão Humana, em que Philip se deixava humilhar e torturar pela intragável Mildred. Fui com o casal até o fim. Sábia decisão. Obrigado, Dida.

O bom menino e a menina má, em um mundo perfeito, jamais se encontrariam. Mas o mundo não é perfeito e talvez esse seja realmente o seu encanto. O que reservaria um mundo hostil para um bobo como Ricardo, um garoto sem ambições? Se bem que a única meta que ele tinha na vida fosse viver toda a vida em Paris...e ele realizou. Não é mesmo um grande feito? Mas o peruanito acabou mesmo foi tendo uma vida atribulada e amargurada pelas idas e vindas dessa vampira pragmática, dessa cascavel aventureira, dessa alpinista social de segunda. A única cor em sua vida cinzenta.

Acompanhei essa dupla improvável desde Lima nos anos 50, passando por uma Paris revolucionária nos 60, por uma Londres de drogas e amor livre nos anos 70, por uma Tókio sombria e mafiosa e, finalmente terminamos em uma multicultural Madri dos anos 80. Foram boas companhias e tiveram um final digno de um romance de Mario Vargas Llosa, um autor que me encantou desde o primeiro livro seu que li, há muitos anos: o fabuloso A Guerra do Fim do Mundo em que ele tratou, com incrível exuberância, da Guerra de Canudos.

Travessuras da menina má está há várias semanas nos primeiros lugares da lista dos livros mais vendidos. Pode ser comprado por R$ 26,00. Para quem não faz questão de qualidade, o cd de Ivete no Maracanã custa o mesmo preço. Na banca do pirata, Ivete sai por R$ 3,00. Travessuras, na mão do meu colega Dida, sai de graça e ainda mexe com o cérebro.

28.7.07

O Punhal do Silêncio


Parecia ter acontecido em outra vida, não a sua, o dia em que ela vira aquele homem pela primeira vez. Nem se lembrava de que fora uma gota de suor que lhe despertara um desejo incontrolável por ele. Não lembrava que aquela era uma tarde pastosa, enviesada de calor modorrento e ela decidira sentar-se num café para tomar um suco que, por mais esforço que faça, jamais se lembrará de que era de hortelã.


O toldo verde clarinho fazia da sombra sobre a calçada externa do bar uma bênção em meio à praga bíblica do calor. Foi quando aquele homem apareceu à sua frente, materializado, subitamente, num terno azul marinho e gravata de seda para trocar o pneu furado do carro.

Ele havia tirado o paletó e arregaçado as mangas. Havia um misto de limpeza e masculina segurança naquele homem à sua frente, trocando um pneu com uma habilidade que a encantaram. Mas nada disso também ela se lembrava. Não lembrava da camisa branquíssima e de um cinto de couro combinando e nem lembrava que havia uma gota de suor, bailando, esplêndida. Uma equilibrista precária, toda feita de luz e calor, dependurada em uma das suas sobrancelhas.

Ela ficou hipnotizada com a bailarina gota de suor presa à berrante masculinidade da sobrancelha dele, em meio a um calor estupidificante. Alheia a tudo, transbordando de vida, refletindo o brilho de um sol de Saara, havia aquela gota cheia de virilidade, pendurada perigosamente numa sobrancelha que emoldurava o rosto dele.

Ela, absorta, imaginava que a gota fosse despencar após tanto se debater e desafiar a lei da gravidade, teimando em agarrar-se àquele homem como numa espécie de posse.

Foi então que ele, ignorando o drama daquela gota, num gesto espontâneo, virou-se para o sol - e seu rosto brilhou como o de um herói de bronze -, e esfregou na testa as costas sujas da mão. Ela, decidida como jamais seria depois disso, levantou-se, segura, e foi até onde ele estava. Com um lenço branco, molhado com algumas gotas de Chanel, ela limpou a mancha de graxa na testa daquele homem, exatamente no lugar onde estava antes uma perfeita gota de suor.

Mas nada disso ela se lembrava mais e, provavelmente, ele também não, pois sequer se perguntavam onde fora parar a lembrança daquele encontro encharcado de sol em que ela o conquistara com o gesto único de secar-lhe o rosto com um lenço perfumado. Onde foi parar a lembrança da tarde inteiramente mágica que passaram juntos para só se separarem quando os pedaços estivessem tão moídos que ninguém pudesse colar? E onde foram parar aquelas tardes douradas quando eram tão felizes? A partir de quando se iniciou a ausência das lembranças dos primeiros dias em parques floridos, onde passeavam de mãos dadas e que, de tão distantes na memória, pareciam ter ocorrido em outra vida. ?

O silêncio que se cristalizava a cada dia carregava o peso das onipresentes ausências e ela sentia uma falta esquisita da companhia daquela amiga que desprezava e ele ansiava, estranhamente, pela gargalhada incômoda daquele amigo que detestava. O silêncio opaco, uma lua nova em céu de chumbo denso, era como a escuridão que se abate sobre um domingo chuvoso que se finda, traduzindo a dor de um amor que acaba.

Os gestos pequenos pareciam urrar e os mais banais, carregar uma dose mortal de veneno. Antes, cada olhar era pleno de significados decifráveis. Hoje, nada dizem a não ser o vazio em si mesmo, a ausência total de interesse pelo que não tem mais importância e o doce das madrugadas frias que se transforma em amargores e ânsias.

Nem mesmo se lembram quando pararam de darem-se as mãos que se esvaem como animais que se escondem no fundo lodoso das fossas de mágoa, nos mares profundos de rancor, procurando extinguir toda a luz para que não sejam vistas, como houvesse uma dor imensa em serem atingidas por qualquer réstia de sol ou mesmo o menor toque.

As mãos são as primeiras vítimas e nelas reside a primeira memória do começo do fim, com suas unhas sujas e roídas, com os nós dos dedos pontudos ameaçando romper a carne, nas alianças que não deixaram sequer as marcas nos dedos médios, nos esmaltes partidos, nas cutículas feridas, nos pêlos que começaram a ficar esbranquiçados e nas manchas que vieram muito tempo antes do tempo.

As noites, agora sem nada pedir em troca, abrigavam aquele homem em cafés empoeirados onde o amor já acabara, ou em inferninhos onde a vida pulsa ou lateja com arremedo de alegria anestesiada de uísque e cervejas, em garrafas e espelhos pontilhados de ferrugem que refletem rostos puídos, corpos amassados que avançam insones pela madrugada, e a rompem, tontos de angústias e simulacros de desejo, à procura de reflexos de outros solitários.

Ela escolhera aquele homem e após esse tempo nem mais sabia se fora uma escolha movida pelo desejo ou pelo desespero ou um pouco de cada. Mas ao menos quando não agüentava mais a solidão da carne, do corpo que treme de febre e de desejo, empreendia buscas sombrias pelas madrugadas, quando se sentia caçadora solitária. Às vezes eram empresas rápidas, mesmo sorrateiras, algo rudes. Outras vezes parecia haver um certo carinho, quase romance, na areia de alguma praia ou sobre lençóis de linho ou cambraia, como se ela precisasse da energia que pensava faltar, mas que na verdade transbordava. Mas às vezes nada.

Antes não desejasse esses pêlos ásperos, essas peles secas de odores masculinos, cheiros fortes de suores em corpos sujos ou machucados de embates esportivos, repletos de testosterona saindo pelos poros, estourando pelas veias salientes e bigodes espessos, esvaindo-se, plenos da vida que ela desejava mais que ar puro.

Antes fosse envolta nos desejos suaves de travesseiros de plumas, de fronhas e lençóis, limpos, coarados ao sol e com essências aromáticas como jasmim ou sândalo, nas coxas lisas e nas ancas largas das mulheres, nos seios fartos e nos ventres densos e acolhedores. Mas sabia que ilusões são chacais à espreita, prontos para pegar sonhadores de assalto, pois não há perfeição em um lado ou em outro quando sempre o que se quer é o que o outro tem e o desejo pelo exótico e pelo estranho vem quando o corpo se acostuma demais aos prados ensolarados, aos montes verdes ou aos mares límpidos onde o amor pode estiolar e morrer de repente sem que se sinta como isso aconteceu, sem sobressaltos.

E nos fins-de-semana, quando a razão não sobrevive, incólume, a dois dias sem a rotina do trabalho, quando os horários vazios os enlouquecem nas manhãs de sábado de sol e nas tardes de domingo repletas de mormaço pegajoso, ela grita, chorando, bêbada, ridícula e com a maquiagem borrada, na frente das visitas:

_ Você nunca mais me chamou de bem! Você nunca mais me beijou na boca com a língua molhada! Você nunca quis um filho meu!

Ela finge que não sabe, e finge tão bem que acredita, ou finge que acredita, que a dor das perdas dos fetos também doeu nele. Ele, que tantas vezes chorou escondido quando pensava em como ambos foram murchando, em como o sexo deixou de ser vertiginoso e em como a morte dos fetos passou também a fazer parte da rotina.

Hoje, a economia de olhares e de toques, a mesquinharia das palavras não ditas sepulta e diluem o amor, transformado em moléculas de solidão, partículas de desencanto, minúsculas sobras afetivas perdidas no caldo amorfo dos sentimentos de dois delinqüentes conjugais.

Melhor do que sepultarem o que de feliz viveram era nunca terem experimentado a felicidade que tiveram um dia se são incapazes de aceitar que, se não foi possível com eles, ainda pode ser com outros se pudessem libertar-se de tanta dor. Mas eles nada dizem, ou dizem o que jamais deveria ser dito, pois uma só palavra pode destruir todo um mundo e um silêncio pode ferir mais fundo que um punhal.

21.7.07

Ainda há vida debaixo dessa vaia




“...Capital do sangue quente do Brasil /
capital do sangue quente do melhor e do pior do Brasil/
cidade sangue quente/maravilha mutante” *

O Rio de Janeiro continua lindo...O Rio é uma cidade maravilhosa...O Rio lavou, enxaguou, amaciou e coarou a minha alma amarfanhada ao sol do Maracanã...O Rio de Janeiro é o inferno dos petistas...Purgatório da beleza e do caos. Ufa...ainda existe gente com sangue no olho! Salve o Rio!!!

Há duas maneiras básicas de se falar sobre as memoráveis vaias que os cariocas dedicaram ao presidente. Uma, é analisar os fatos; outra é discorrer sobre versões. E lutar com palavras até romper, em vão, a manhã.

Belíssimas vaias! Lindas! Fruto do mais íntimo do sangue carioca, um povo notoriamente desabusado. Vaias que se ensaiadas não dariam tão certo. 90 mil no maracanã. 10% (9.000 almas) eram convidadas dos patrocinadores oficiais do Pan: Caixa, Petrobrás, Banco do Brasil e outros parentes estatais...Convidados vaiando os anfitriões? Que mal-agradecidos, não?

Mas petista que é petista gosta mesmo é de versões. Eles escrevem na cabeceira da cama e repetem todo dia ao acordar: “Onde houver fatos, prefira as versões”. Há versões para todos os gostos. Petistas jogam várias ao mesmo tempo na parede. A que gritar está viva.

Versão 1: A claque golpista do demo César Maia teria levado a maior parte dos vaiantes e ensaiado tudo. Esta daqui miou fraquinha quando bateu contra o muro do fato. A prefeitura do Rio só tinha distribuído 600 convites contra 9 mil dos patrocinadores. E também vaiou-se o governador aliado, não foi? Ahh, esses tucanos e demos quando se juntam....Com o tempo tinham que aprender as lições de terrorismo psicológico e desonestidade intelectual com os mestres e PHDs petistas, não tinham?

Versão 2: Essa elite não engole um operário na Presidência da República...Essa aqui sempre cola. Jogue essa versão na parede que ela sempre grita. Hoje, ela já mia, meio moribunda, meio desenxabida, mas sempre tem um Marcos Profeta ou um Raimundo Luiz, uma Márcia Rocha, um Cláudio Carvalho ou Melo, uma Conceição Moraes ou um Ricardo Gurgel para ouvir esse mio quase inaudível. É uma gente capaz de engolir versões mulistas com a desenvoltura de cuspidores de fogo dos circos de horrores ou dos engolidores de espadas das antigas feiras de aberrações itinerantes.

Detalhe: Cito nominalmente os 7 colegas mulistas acima apenas porque são meus amigos. Não vou atirar contra outros mais perigosos. Sei que posso levar golpes baixos e não ando com muita resistência para certas gentes...Mas há carapuças disponíveis em tamanhos P, M e G.

Mas sabe uma coisa? Entre fatos e versões não há como conciliar. Não há A verdade. Petistas só acreditam no que querem: vaias como fruto de lavagem cerebral coletiva, mensagem subliminar na letra do Hino Nacional cantada por Elza Soares, orquestração das elites...há versões ao agrado de todos os matizes e neurônios

Petistas e saúvas não são abalados por vaias. Nem a urna os extermina. Como cisticercos, vivem anos fingindo-se de mortos e, ao ressurgiram trazem dólares na cueca, dossiês fajutos e, dependurados em CUTs, UNEs ou MSTs, vão logo se reproduzindo e gritando por verbas e cargos. São diagnosticados a bordo de ambulâncias superfaturadas, onde relaxam e gozam das misérias alheias. Seu habitat favorito é o Planalto, onde se protegem de vaias em torno de espelhos d’águas e rampas. Ali, dificilmente se distinguem dos caititus.
Ah. Eles têm também a patente da vaia. Quem quiser vaiar precisa lhes pagar royalties: “O povo, unido, jamais será vencido”, “Um dois três, quatro cinco mil....” Cuidado com essa gente! “Ainda há vida debaixo dessa vaia”.

*Rio 40 graus (F.Abreu/F.Fawcet)