Parecia ter acontecido em outra vida, não a sua, o dia em que ela vira aquele homem pela primeira vez. Nem se lembrava de que fora uma gota de suor que lhe despertara um desejo incontrolável por ele. Não lembrava que aquela era uma tarde pastosa, enviesada de calor modorrento e ela decidira sentar-se num café para tomar um suco que, por mais esforço que faça, jamais se lembrará de que era de hortelã.
O toldo verde clarinho fazia da sombra sobre a calçada externa do bar uma bênção em meio à praga bíblica do calor. Foi quando aquele homem apareceu à sua frente, materializado, subitamente, num terno azul marinho e gravata de seda para trocar o pneu furado do carro.
Ele havia tirado o paletó e arregaçado as mangas. Havia um misto de limpeza e masculina segurança naquele homem à sua frente, trocando um pneu com uma habilidade que a encantaram. Mas nada disso também ela se lembrava. Não lembrava da camisa branquíssima e de um cinto de couro combinando e nem lembrava que havia uma gota de suor, bailando, esplêndida. Uma equilibrista precária, toda feita de luz e calor, dependurada em uma das suas sobrancelhas.
Ela ficou hipnotizada com a bailarina gota de suor presa à berrante masculinidade da sobrancelha dele, em meio a um calor estupidificante. Alheia a tudo, transbordando de vida, refletindo o brilho de um sol de Saara, havia aquela gota cheia de virilidade, pendurada perigosamente numa sobrancelha que emoldurava o rosto dele.
Ela, absorta, imaginava que a gota fosse despencar após tanto se debater e desafiar a lei da gravidade, teimando em agarrar-se àquele homem como numa espécie de posse.
Foi então que ele, ignorando o drama daquela gota, num gesto espontâneo, virou-se para o sol - e seu rosto brilhou como o de um herói de bronze -, e esfregou na testa as costas sujas da mão. Ela, decidida como jamais seria depois disso, levantou-se, segura, e foi até onde ele estava. Com um lenço branco, molhado com algumas gotas de Chanel, ela limpou a mancha de graxa na testa daquele homem, exatamente no lugar onde estava antes uma perfeita gota de suor.
Mas nada disso ela se lembrava mais e, provavelmente, ele também não, pois sequer se perguntavam onde fora parar a lembrança daquele encontro encharcado de sol em que ela o conquistara com o gesto único de secar-lhe o rosto com um lenço perfumado. Onde foi parar a lembrança da tarde inteiramente mágica que passaram juntos para só se separarem quando os pedaços estivessem tão moídos que ninguém pudesse colar? E onde foram parar aquelas tardes douradas quando eram tão felizes? A partir de quando se iniciou a ausência das lembranças dos primeiros dias em parques floridos, onde passeavam de mãos dadas e que, de tão distantes na memória, pareciam ter ocorrido em outra vida. ?
O silêncio que se cristalizava a cada dia carregava o peso das onipresentes ausências e ela sentia uma falta esquisita da companhia daquela amiga que desprezava e ele ansiava, estranhamente, pela gargalhada incômoda daquele amigo que detestava. O silêncio opaco, uma lua nova em céu de chumbo denso, era como a escuridão que se abate sobre um domingo chuvoso que se finda, traduzindo a dor de um amor que acaba.
Os gestos pequenos pareciam urrar e os mais banais, carregar uma dose mortal de veneno. Antes, cada olhar era pleno de significados decifráveis. Hoje, nada dizem a não ser o vazio em si mesmo, a ausência total de interesse pelo que não tem mais importância e o doce das madrugadas frias que se transforma em amargores e ânsias.
Ela, absorta, imaginava que a gota fosse despencar após tanto se debater e desafiar a lei da gravidade, teimando em agarrar-se àquele homem como numa espécie de posse.
Foi então que ele, ignorando o drama daquela gota, num gesto espontâneo, virou-se para o sol - e seu rosto brilhou como o de um herói de bronze -, e esfregou na testa as costas sujas da mão. Ela, decidida como jamais seria depois disso, levantou-se, segura, e foi até onde ele estava. Com um lenço branco, molhado com algumas gotas de Chanel, ela limpou a mancha de graxa na testa daquele homem, exatamente no lugar onde estava antes uma perfeita gota de suor.
Mas nada disso ela se lembrava mais e, provavelmente, ele também não, pois sequer se perguntavam onde fora parar a lembrança daquele encontro encharcado de sol em que ela o conquistara com o gesto único de secar-lhe o rosto com um lenço perfumado. Onde foi parar a lembrança da tarde inteiramente mágica que passaram juntos para só se separarem quando os pedaços estivessem tão moídos que ninguém pudesse colar? E onde foram parar aquelas tardes douradas quando eram tão felizes? A partir de quando se iniciou a ausência das lembranças dos primeiros dias em parques floridos, onde passeavam de mãos dadas e que, de tão distantes na memória, pareciam ter ocorrido em outra vida. ?
O silêncio que se cristalizava a cada dia carregava o peso das onipresentes ausências e ela sentia uma falta esquisita da companhia daquela amiga que desprezava e ele ansiava, estranhamente, pela gargalhada incômoda daquele amigo que detestava. O silêncio opaco, uma lua nova em céu de chumbo denso, era como a escuridão que se abate sobre um domingo chuvoso que se finda, traduzindo a dor de um amor que acaba.
Os gestos pequenos pareciam urrar e os mais banais, carregar uma dose mortal de veneno. Antes, cada olhar era pleno de significados decifráveis. Hoje, nada dizem a não ser o vazio em si mesmo, a ausência total de interesse pelo que não tem mais importância e o doce das madrugadas frias que se transforma em amargores e ânsias.
Nem mesmo se lembram quando pararam de darem-se as mãos que se esvaem como animais que se escondem no fundo lodoso das fossas de mágoa, nos mares profundos de rancor, procurando extinguir toda a luz para que não sejam vistas, como houvesse uma dor imensa em serem atingidas por qualquer réstia de sol ou mesmo o menor toque.
As mãos são as primeiras vítimas e nelas reside a primeira memória do começo do fim, com suas unhas sujas e roídas, com os nós dos dedos pontudos ameaçando romper a carne, nas alianças que não deixaram sequer as marcas nos dedos médios, nos esmaltes partidos, nas cutículas feridas, nos pêlos que começaram a ficar esbranquiçados e nas manchas que vieram muito tempo antes do tempo.
As noites, agora sem nada pedir em troca, abrigavam aquele homem em cafés empoeirados onde o amor já acabara, ou em inferninhos onde a vida pulsa ou lateja com arremedo de alegria anestesiada de uísque e cervejas, em garrafas e espelhos pontilhados de ferrugem que refletem rostos puídos, corpos amassados que avançam insones pela madrugada, e a rompem, tontos de angústias e simulacros de desejo, à procura de reflexos de outros solitários.
Ela escolhera aquele homem e após esse tempo nem mais sabia se fora uma escolha movida pelo desejo ou pelo desespero ou um pouco de cada. Mas ao menos quando não agüentava mais a solidão da carne, do corpo que treme de febre e de desejo, empreendia buscas sombrias pelas madrugadas, quando se sentia caçadora solitária. Às vezes eram empresas rápidas, mesmo sorrateiras, algo rudes. Outras vezes parecia haver um certo carinho, quase romance, na areia de alguma praia ou sobre lençóis de linho ou cambraia, como se ela precisasse da energia que pensava faltar, mas que na verdade transbordava. Mas às vezes nada.
Antes não desejasse esses pêlos ásperos, essas peles secas de odores masculinos, cheiros fortes de suores em corpos sujos ou machucados de embates esportivos, repletos de testosterona saindo pelos poros, estourando pelas veias salientes e bigodes espessos, esvaindo-se, plenos da vida que ela desejava mais que ar puro.
Antes fosse envolta nos desejos suaves de travesseiros de plumas, de fronhas e lençóis, limpos, coarados ao sol e com essências aromáticas como jasmim ou sândalo, nas coxas lisas e nas ancas largas das mulheres, nos seios fartos e nos ventres densos e acolhedores. Mas sabia que ilusões são chacais à espreita, prontos para pegar sonhadores de assalto, pois não há perfeição em um lado ou em outro quando sempre o que se quer é o que o outro tem e o desejo pelo exótico e pelo estranho vem quando o corpo se acostuma demais aos prados ensolarados, aos montes verdes ou aos mares límpidos onde o amor pode estiolar e morrer de repente sem que se sinta como isso aconteceu, sem sobressaltos.
E nos fins-de-semana, quando a razão não sobrevive, incólume, a dois dias sem a rotina do trabalho, quando os horários vazios os enlouquecem nas manhãs de sábado de sol e nas tardes de domingo repletas de mormaço pegajoso, ela grita, chorando, bêbada, ridícula e com a maquiagem borrada, na frente das visitas:
_ Você nunca mais me chamou de bem! Você nunca mais me beijou na boca com a língua molhada! Você nunca quis um filho meu!
Ela finge que não sabe, e finge tão bem que acredita, ou finge que acredita, que a dor das perdas dos fetos também doeu nele. Ele, que tantas vezes chorou escondido quando pensava em como ambos foram murchando, em como o sexo deixou de ser vertiginoso e em como a morte dos fetos passou também a fazer parte da rotina.
Hoje, a economia de olhares e de toques, a mesquinharia das palavras não ditas sepulta e diluem o amor, transformado em moléculas de solidão, partículas de desencanto, minúsculas sobras afetivas perdidas no caldo amorfo dos sentimentos de dois delinqüentes conjugais.
Melhor do que sepultarem o que de feliz viveram era nunca terem experimentado a felicidade que tiveram um dia se são incapazes de aceitar que, se não foi possível com eles, ainda pode ser com outros se pudessem libertar-se de tanta dor. Mas eles nada dizem, ou dizem o que jamais deveria ser dito, pois uma só palavra pode destruir todo um mundo e um silêncio pode ferir mais fundo que um punhal.
2 comments:
Lembrei-me do filme Shirley Valentine, que bem retirata, assim como este post, o encontro e afastamento entre anima e animes.
Bom texto, retratando que acontece com casais que se fixam no início da relação e se perdem durante o processo de seu desenvolvimento. Concebem que as relações possuem prazo de validade e, vencido o prazo, insistem em guardar a comida estragada, por não saberem o que fazer com ela. Parabéns.
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