2.5.08

Culpa com Feriados Diferentes VI


Você conhece a Fonte Nova? Nela, até a interdição, cabiam 60 mil espectadores por jogo. Você acha isso uma multidão, não é? Esses números lhe parecem imensos quando você se vê naquele estádio lotado durante um jogo. Então agora imagine 25 Fontes Novas superlotadas ou então se imagine ali todo mês por dois anos. Ao seu lado estariam 1 milhão e quinhentos mil mulheres. Esses ao os números oficiais da quantidade de mulheres que abortam no Brasil por ano. O número real pode ser o dobro. Três milhões por ano. Oito mil e duzentas mulheres abortando a cada dia!

Porque estou falando disso numa coluna chamada Culpa com Feriados Diferentes? É que me bati com a seguinte manchete do Estadão: “Brasileira que aborta é católica, casada, trabalha e tem filho”.

No levantamento mais atualizado sobre o perfil da brasileira que aborta descobriu-se que a maioria é casada, já é mãe, trabalha fora, tem entre 20 e 29 anos, completou ao menos os oito anos do ensino fundamental. E, veja só: é católica!

Além disso, a decisão pela interrupção da gravidez é tomada com o parceiro. A maioria delas usa métodos caseiros, como chás misturados ao Cytotec. Só 2,5% das mulheres que abortaram ficaram grávidas ao terem uma relação eventual. O perfil traçado é incompleto, pois baseia-se nos registros das mulheres que chegaram aos serviços públicos com complicações após usarem métodos abortivos. Não inclui abortos feitos pelas mulheres de classes média e alta em clínicas e hospitais privados e aquelas que abortam sem complicações clínicas.

A Igreja Católica do Rio tem usados fetos de resina e vídeos durante missas e palestras. Vários fiéis chegaram a passar mal, com náuseas e vômitos, após assistir às imagens com cenas de aborto chocantes. Na igreja Santa Margarida, na Lagoa, o "feto" está dentro de um vidro com gel, como se tivesse na placenta, exposto no altar. O combate ao aborto é tema da campanha da fraternidade deste ano da CNBB. Ainda mais polêmica é a exibição de quatro vídeos com cenas reais de fetos sendo retirados de mulheres.

Se você digitar a palavra aborto no google imagens, encontrará milhares e terrivelmente chocantes fotos de fetos dilacerados, resultados de abortos. Essas obscenas fotos e vídeos são parte da uma violenta campanha dos católicos contra a descriminalização da prática. As Igrejas fazem crer que o aborto é uma decisão fácil para as mulheres. Não vou bater nessa tecla, pois é óbvio que é uma falácia. Mulher alguma toma essa decisão facilmente. Mas o que eu posso pensar quando os dados oficiais dizem que a maioria dessas mulheres se diz católica?

Eu não tenho paciência para isso. Estou tentando, sem sucesso, entender essa combinação contraditória: católica que aborta e ainda é católica. Como pode, se a igreja é contra, seu papa, seu bispo, seu padre são contra...

Um milhão e quinhentos mil abortos por ano. Apesar de aceito pelos especialistas, e pelo Ministério da Saúde, grupos religiosos questionam os números, dizendo que os dados do SUS não são confiáveis e que o índice seria mais baixo. A pesquisa, porém mostra o contrário, com indícios de que o número pode ser o dobro.

A Igreja poderia fazer um enorme serviço em vez de negar os números e a realidade. Se apenas não se metesse nesse assunto já estaria ajudando muito, mas, em vez disso, imputa uma culpa ainda maior na mente de mulheres ingênuas o bastante para se sentirem psicologicamente mais arrasadas do que já estão com o aborto em si. Como se ele já não fosse suficientemente doloroso. Aliás, a este propósito, fico arrasado por ter perdido, nas minhas muitas mudanças de casa, um cartão postal que comprei uma vez em Amsterdã com uma imagem ao mesmo tempo hilária e profundamente simbólica. Numa montagem, via-se o papa grávido. Na legenda: “Se os homens engravidassem o aborto seria um sacramento”.

Marx dizia que “A dominação do homem pelo homem começou com a dominação da mulher pelo homem” Por isso, como estamos lidando com uma dor das mulheres, tratamos de uma dor menos importante, menos relevante, menos dolorosa e os padres, bispos e papas, homens semi-castrados, podem meter o bedelho no assunto como se fosse um tema que afetasse a eles.


Em recente pesquisa nacional para saber a opinião do brasileiro sobre o direito da mulher ao aborto, a maioria foi contra. Não sei dizer quantos desses entrevistados eram homens, mas acredito que somente mulheres deveriam responder a uma questão dessas.

As mulheres são as vítimas principais nessa história, mas o papel de vítima, já dizia o educador Paulo Freire na sua Pedagogia do Oprimido, é um papel bastante ativo. Dá pena ser uma vítima. Mas também dá trabalho ser uma vítima. Longe de mim penalizar ainda mais mulheres que já sofrem com o aborto, mas o que posso dizer quando elas próprias, após este ato, ainda se dizem católicas? E ainda vão buscar o perdão nos templos de homens que a farão sentir ainda mais culpa!?

Quem quiser ler um livro excelente sobre o tema Mulheres, Sexualidade e A Igreja Católica, recomendo “Eunucos pelo Reino de Deus”, de Uta Ranke-Heinemann, considerada a maior teóloga do mundo e que perdeu sua cátedra na Universidade de Heidelberg quando publicou esse livro. Nas palavras de Leonardo Boff, na introdução da edição brasileira: “A igreja dos celibatários diz um não a praticamente tudo o que se refere à esfera do sexo, do prazer, da contracepção, do jogo difícil da sexualidade entre um homem e uma mulher.”

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