Todos têm uma história para contar sobre sua experiência com
a Black Friday, todos pegaram uma fila gigante em promoções. Também tenho minha
história e ela está cercada de baianos interativos, aqueles seres peculiares
que habitam esse universo paralelo quântico chamado Salvador.
Deixem-me guia-los até a cena. Lá estava eu após duas horas
na fila das Lojas Americanas do Salvador Shopping, um dos tops da capital
baiana. Nas mãos cds, dvds e blurays pela metade do preço que para um fanático
por música e promoções é algo irresistível ao ponto de aguentar torturas
medievais.
Devidamente justificada a minha presença naquele insólito
território de horrores, passo a narrar os fatos que sobrevivi para contar. Podem
parecer não crível para almas nobres, mas garanto que tudo é 100% verdadeiro.
Veja a cena. São 5 da tarde e a fila não dá sinais de vida. Apenas
um caixa funcionando para o pagamento de cds, dvds e livros. E pensava eu que
ali seria mais rápido por ser exclusiva para o pagamento desses itens enquanto
quinze outros caixas eram utilizados para o pagamento dos outros dez milhões de
itens à venda. Ledo engano, pois se o caixa único era exclusivo para os itens
seletos, alguém esqueceu de avisar isso à atendente a aos clientes que
escolheram aquela fila, usando-a, indiscriminadamente para pagar de fraldas
descartáveis a panelas de pressão, de lençóis a caixas de absorventes.
O cheiro de gente suada impregna o ar mesmo com o ar
condicionado no máximo, as pessoas se esbarram, se espremem, se esfregam,
trocam odores enquanto coisas caem no chão com estrondo e o alto falante da
loja grita os itens “por apenas R$ 9,90. Isso mesmo, R$9,90!”. Tudo isso
narrado por alguém que precisava urgentemente de um fonoaudiólogo.
A trilha sonora do terror não poderia ser mais adequada: Em
decibéis perigosos para a saúde e que fariam inveja a um fã do Iron Maiden, As
Coleguinhas Simone e Silmara cometiam “Se o nosso amor se acabar eu de você não
quero nada/Pode ficar com a casa inteira e o nosso carro/Por você eu vivo e
morro/Mas dessa casa eu só vou levar/ Meu violão e o nosso cachorro”.
O que pode ser pior do que ouvir essas moças gritando tal
pérola do cancioneiro sertanejo num disco? Sim. Pode ser pior, meu amigo: ouvir
a versão ao vivo com a plateia das Coleguinhas cantando e gritando junto. A
ninguém ocorreu chamar a vigilância sanitária para combater tal atentado aos
nossos tímpanos e à nossa saúde mental.
Se a fila parecia amorfa, não se engane, é apenas aparência.
Enquanto a moça do caixa demonstra sua agilidade típica de um Barrichello
baiano, com o pensamento nefelibata de alguém que já não está mais nesse mundo
há semanas, as pessoas na fila praticam o seu esporte favorito: a
interatividade.
Ninguém querendo perder seu lugar, as pessoas já estão
íntimas depois de duas horas. De fato, já estavam íntimas mesmo nos primeiros
20 minutos.
Um moça atrás de mim me explica, sem que eu pergunte, porque
comprou tantos boxes de dvd: “Ah, eu comprei mesmo! Quer saber? (era uma
pergunta meramente retórica), comprei todos os Harry Potter e Jogos Vorazes!
Todos! Tá pela metade do preço. No ano passado não comprei e me arrependi.
Comprei todos! Comprei mesmo!”.
Balancei a cabeça, concordando educadamente, esperando não
dar sinal de muito estímulo para que ela continuasse a mostrar quantos boxes havia
comprado.
Após duas horas a gente fica sabendo que tem um grupo de
pessoas na fila que chegaram à porta do Shopping cinco horas antes da sua
abertura. O grupo veio em uma caravana de Conceição de Maria, cidade no
interior e estavam todos com caixas cheias de compras para revender. Viajaram a
noite toda e manifestavam preocupação com a hora do ônibus. “Se demorar muito a
gente vai perder o transporte”, dizia um. “Vira essa boca prá lá, Agnaldo,
dizia outro”. Alguém que não pertencia ao grupo viu a oportunidade para falar
sobre o maravilhoso assunto dos transportes intermunicipais e outro falava da
aprazível Conceição de Maria....ahhh que linda cidade.
De tudo se vê nessa vida numa fila de Black Friday. Imaginava
que se aquilo acontecia no Salvador Shopping, num dos melhores da cidade, o que
não estaria acontecendo no Piedade e no Lapa? Minha imaginação não dava conta.
A fome. Depois de tantas horas, as pessoas já se empanturram
de amendoins, biscoitos recheados e guloseimas diversas que aparentemente
estavam sendo levadas ao caixa para serem compradas. Após tanto tempo esperando,
o povo parecia achar justo devorar tudo e entocar depois a embalagem em algum
desvão. Ninguém tem tempo pra punir
essas transgressões e um frenesi de comilança se abate sobre a fila. As pessoas
já nem se envergonham de conversar entre si com as bocas cheias de balas,
cocadas e deliciosos pés-de-moleque. Recomendo os pés-de-moleque.
A fome também bate nos bebês e uma moça com uma criança feia e
mirrada no colo resolve amamentá-la ali mesmo na fila. Senta-se num tamborete
de plástico (um dos itens da sua compra), tira o seio para fora do vestido e o enfia
na boca do menino que mama voraz. O pai da moça olha a cena com uma
naturalidade de que já viu aquilo vezes sem fim. O menino mama com os olhos arregalados
e atentos a tudo.
Ahhh o belo esporte da paquera entre baianos interativos. O
ambiente vira um terreno ideal para as tentativas de prévias de acasalamento
entre os indivíduos da espécie. Enquanto um rapaz até bem ajeitadinho reclama
que se ficar na fila muito tempo vai perder o emprego e a mulher, uma abordagem
pouco original e uma vã tentativa de fazer-se interessante para uma moça, esta mesma
jovem replica em um baianês castiço: “Ôôôôxxxi. Tu não tá pegando nem gripe
quanto mais mulé”.
O que poderia ser um diálogo mais da esfera do íntimo, torna-se
assunto saboroso para as pessoas próximas e as não tão próximas na fila,
tornando o infeliz rapaz alvo de zombarias dos demais. A moça percebe que
mandou mal, pois o rapaz não era desinteressante, e tenta se emendar, mas o
outro já não dá mais bola. Ela se arrepende, dá pra ver a expressão no seu
rosto. Um futuro casamento acaba ali antes de começar.
As Coleguinhas Simone e Silmara se calam. O disco acabou.
Então o que parecia ser um alívio para os ouvidos revela-se outra coisa: o som bruto
da multidão.
Suprimida pela gritaria das Coleguinhas, nem havíamos notado
quão alto as pessoas falavam. Sabemos que o baiano interativo definha com o
silêncio, então aquela voz no alto falante da loja diz: “Liu, se dirija à
sessão de cd! Liu, à sessão de cd!. Fred, aperta o play aí pra gente ouvir
mais”.
E o sacana do Fred põe de novo pra tocar As Coleguinhas ao
vivo que, a cada refrão, bradam sua marca registrada: “Chora, miséra!”. Se eu
não fosse uma pessoa adulta choraria.
Então ficamos sabendo por que Liu foi chamada à sessão de
cds. É que o caixa travou no momento em que um senhorzinho passava suas compras
de mais de R$ 1 mil. Sacolas e mais sacolas já estavam cheias quando a máquina
travou.
Atrás de mim uma baiana interativa, vamos chamá-la de Jurema,
pois seu nome jamais será conhecido, há duas horas se queixava da fila, todo o
tempo reclamando: “É hoje que eu sou demitida. Fechei meu consultório pra vir
aqui pra esse inferno. Isso aqui não anda”.
Jurema reivindicava atenção e exortava os demais da fila para
que reclamassem junto com ela: Anda aí, minha senhora! Ô moço, tira essas mulé desse
som. Affff Maria, a gente tem que aguentar essas putas gritando Chora miséra.
Até de miséra a gente é chamada aqui.”
Quando Jurema percebe que o caixa travou com as compras do
senhorzinho, vai à beira da loucura: “Ô meu tio, prá que comprou tanta coisa!
Não tinha mais fralda não?”
O homem tinha aproveitado a imperdível promoção de fraldas
descartáveis pela metade do preço, o que metade da fila também tinha feito. A
outra metade, que não sabia as delícias do cocô e do xixi infantil, pilheriava.
Alguém gritou: “Vai ter menino assim prá mijar lá na Baixa da Égua”. Outro
aproveitou pra perguntar se o colega não ia levar fraldas pra Conceição de
Maria.
O velhinho sacava item por item das inúmeras sacolas, coisas
que já estavam registradas para passar tudo de novo pelo caixa. A baiana Jurema
explodia indignada e pediu, nervosa, para passar na minha frente pois,
certamente já teria perdido o emprego.
Cedi e ela ficou exatamente atrás do velho reparando item por
item que ele comprara. Comentava sobre cada um.“Esse lençol foi que travou o caixa, meu tio. Não leva isso
mais não senão pode travar de novo!”.“Esse Exu dessas mulé não sabe cantar outra coisa não? Troca
essa música aí, seu erê”.
O velhinho, envergonhado, baixa os olhos. A neta pré-adolescente,
ao seu lado, tapa os ouvidos com os dois dedos com força tentando não ouvir os
petardos da baiana que agora exatamente atrás dele insistia em comentar cada
item da sua compra.
Depois do que parecia ser um tempo infinito, a compra foi
aprovada e toda a fila aplaudiu exortada
por Jurema: “Minha gente, parece que o lençol passou”.
Quando chegou a vez de pagar, o velhinho digitou a senha do
cartão com todo cuidado. Pegou os óculos no bolso para não errar.
Jurema não ajudava em nada gritando: “Não me erre essa senha,
meu tio. Olha lá hein?”
A neta queria se afundar no chão enquanto o velhinho
digitava. Alguém lá atrás gritou: “Vai dormir em lençol novo hoje, hein papá?
Então a senha passou. A fila inteira aplaudiu. Houve
assobios. O velhinho, aliviado, acenou como quem tinha cruzado a linha de uma
maratona.
O monitor do caixa, estranhamente voltado para o público, como
para expor a todos a vida alheia, finalmente apresentou o valor das compra.
Foi quando Jurema gritou: Porra, meu tio. Em 10 vezes?
7 comments:
Kkkkkk. O pior que é bem assim.
Huahuahuahuahua!!! Não me aguentei. Rindo muito. Parabéns pela crônica. Kkkkkk!!!
Discordo do comentário de Roberto...
Para ser a nossa cara, o MELHOR é que é assim.
Ri demais imaginando a cena e você a ouvir a tal dupla sertaneja.
Não vou a essas BF nem a pau, Juvenal.
Parabéns pelo texto.
Esse texto é ficção ou verídico?
Fernandinho.
Rindo muito, Goulart! Muito bom! E afinal, foram quantas horas de fila? (Robinson)
Incrível!! Um retrato perfeito da Bahia! Só quem vive aqui sabe o que é um baiano agoniado numa fila. Kkkkkkkk
Kkkkkkkkkkkk
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