11.11.16

MÁ EDUCAÇÃO

Pedro Almodóvar poderia ser chamado de um diretor de grife “antigrife”. Dessa característica, resultam seus inúmeros fãs e suas maiores qualidades e charme: o anticonvencionalismo, o exagero, os arroubos de paixões, as cores berrantes, a irreverência, o kitsch, o histrionismo. 

Almodóvar ultrapassou uma fase inicial anárquica, teve um período intermediário onde foi firmando seu estilo debochado e intenso com melhora constante de qualidade em filmes, mas enveredou por novos caminhos e parece ter abandonado marcas que lhe pareciam caras.

Má Educação é o seu primeiro filme noir e assim difere substancialmente do padrão Almodóvar. O diretor nos acostumou com um estilo inconfundível, mas vários elementos a que nos acostumamos simplesmente desapareceram ou ficaram rarefeitos. Onde foram parar os vermelhos ardentes e os amarelos berrantes? 

O aspecto cromático festivo era um dos elementos fílmicos mais eloquentes do diretor. Era parte de sua narrativa como uma segunda linguagem, como as canções rasgadas que acompanham seus filmes.

As canções continuam presentes em Má Educação. A cena mais bonita, sem dúvida, é a do garotinho cantando Moon River. Quem lembrou de Audrey Hepburn em Bonequinha de Luxo, imagem já na história no cinema, o fez por uma associação sutil por demais. Almodóvar não sublinhou a cena com maiores referências, como era de se esperar dele, que nos acostumou às citações e homenagens ao cinema em seus filmes.

As cenas seguintes, em câmera lenta, de meninos nadando ao som de Moon River, não foi bem filmada, não tem boa fotografia, não emociona. É uma pena, um desperdício. A canção era tão bela, merecia tomadas menos distantes, fotografia mais bonita, angulações mais criativas, edição mais ousada... Teria Almodóvar receio de estimular a pedofilia? Um cineasta como ele está acima disso, afinal, este é um filme sobre pedofilia.

Mas Má Educação não fala só de pedofilia na igreja, fala de cinema também. Mas não parece falar com muita intensidade de nenhum dos assuntos, e perde várias chances de lançar sobre o cinema um olhar mais caloroso. O cineasta, interpretado pelo ator Felé Martinez, é tão frio e insensível que, como alter-ego do diretor, não parece sequer humano, não havia nele réstia alguma de alegria, nem durante o bloqueio criativo, nem quando dirigia ou finalizava seu filme.

Também há algo de não-almodovariano na escolha do astro Gael Garcia Bernal. Almodóvar é famoso por usar atores novos e depois torná-los conhecidos. Bernal não pareceu uma escolha muito acertada. Por melhor que seja o ator, e ele é ótimo, não é justo usá-lo nesse filme, não é justo para o próprio Almodóvar. A sexualidade em Má Educação é toda dolorosa, todas as cenas de sexo são roubadas, forçadas, compradas. O sexo, no filme, é uma ferida aberta. Óbvio que a sexualidade dos personagens gira em torno do drama da pedofilia, mas por que tanta frieza?

Seria injustiça, porém, não apontar uma característica positiva do filme: a corajosa narrativa metalinguística, mas as qualidades param por aqui, até porque é descuidada a edição das mudanças temporais e espaciais, sem recursos de amarração do roteiro. Nem sequer é justo exigir de Almodóvar um libelo anticlerical, ele tem razões pessoais e artísticas para escolher essa abordagem pacificadora. Aparentemente ele tinha fantasmas demais para exorcizar. Sabe-se que passou por episódios de pedofilia quando estudava num colégio de padres, mas o diretor não quis detalhar o seu papel nos eventos.


Almodóvar, em entrevista, na época do lançamento do filme, declarou: “Se eu tivesse rodado o filme há 15 ou 20 anos, ele seria um ato de vingança. Nessa altura da minha vida, terminá-lo foi uma liberação”. Isso mostra que o filme serviu ao diretor como uma terapia exorcizante e que tal catarse tornou-o mais livre. Má notícia. Enquanto prisioneiro dos velhos demônios, era a nós que ele libertava.

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