Pedro Almodóvar poderia ser chamado de um diretor de
grife “antigrife”. Dessa característica, resultam seus inúmeros fãs e suas
maiores qualidades e charme: o anticonvencionalismo, o exagero, os arroubos de
paixões, as cores berrantes, a irreverência, o kitsch, o histrionismo.
Almodóvar ultrapassou uma fase inicial
anárquica, teve um período intermediário onde foi firmando seu estilo debochado
e intenso com melhora constante de qualidade em filmes, mas enveredou por novos
caminhos e parece ter abandonado marcas que lhe pareciam caras.
Má Educação é o seu primeiro filme noir
e assim difere substancialmente do padrão Almodóvar. O diretor nos acostumou com
um estilo inconfundível, mas vários elementos a que nos acostumamos
simplesmente desapareceram ou ficaram rarefeitos. Onde foram parar os vermelhos
ardentes e os amarelos berrantes?
O aspecto cromático festivo era um dos
elementos fílmicos mais eloquentes do diretor. Era parte de sua narrativa como
uma segunda linguagem, como as canções rasgadas que acompanham seus filmes.
As
canções continuam presentes em Má
Educação. A cena mais bonita, sem dúvida, é a do garotinho cantando Moon River. Quem lembrou de Audrey
Hepburn em Bonequinha de Luxo, imagem já na história no cinema, o fez por uma
associação sutil por demais. Almodóvar não sublinhou a cena com maiores
referências, como era de se esperar dele, que nos acostumou às citações e
homenagens ao cinema em seus filmes.
As cenas
seguintes, em câmera lenta, de meninos nadando ao som de Moon River, não foi
bem filmada, não tem boa fotografia, não emociona. É uma pena, um desperdício.
A canção era tão bela, merecia tomadas menos distantes, fotografia mais bonita,
angulações mais criativas, edição mais ousada... Teria Almodóvar receio de
estimular a pedofilia? Um cineasta como ele está acima disso, afinal, este é um
filme sobre pedofilia.
Mas Má
Educação não fala só de pedofilia na igreja, fala de cinema também. Mas não
parece falar com muita intensidade de nenhum dos assuntos, e perde várias
chances de lançar sobre o cinema um olhar mais caloroso. O cineasta,
interpretado pelo ator Felé Martinez, é tão frio e insensível que, como
alter-ego do diretor, não parece sequer humano, não havia nele réstia alguma de
alegria, nem durante o bloqueio criativo, nem quando dirigia ou finalizava seu
filme.
Também
há algo de não-almodovariano na escolha do astro Gael Garcia Bernal. Almodóvar
é famoso por usar atores novos e depois torná-los conhecidos. Bernal não
pareceu uma escolha muito acertada. Por melhor que seja o ator, e ele é ótimo,
não é justo usá-lo nesse filme, não é justo para o próprio Almodóvar. A
sexualidade em Má Educação é toda dolorosa, todas as cenas de sexo são
roubadas, forçadas, compradas. O sexo, no filme, é uma ferida aberta. Óbvio que
a sexualidade dos personagens gira em torno do drama da pedofilia, mas por que
tanta frieza?
Seria
injustiça, porém, não apontar uma característica positiva do filme: a corajosa
narrativa metalinguística, mas as qualidades param por aqui, até porque é
descuidada a edição das mudanças temporais e espaciais, sem recursos de
amarração do roteiro. Nem sequer é justo exigir de Almodóvar um libelo
anticlerical, ele tem razões pessoais e artísticas para escolher essa abordagem
pacificadora. Aparentemente ele tinha fantasmas demais para exorcizar. Sabe-se
que passou por episódios de pedofilia quando estudava num colégio de padres,
mas o diretor não quis detalhar o seu papel nos eventos.
Almodóvar,
em entrevista, na época do lançamento do filme, declarou: “Se eu tivesse rodado o filme há 15 ou 20
anos, ele seria um ato de vingança. Nessa altura da minha vida, terminá-lo foi
uma liberação”. Isso mostra que o filme serviu ao diretor como uma terapia exorcizante
e que tal catarse tornou-o mais livre. Má notícia. Enquanto prisioneiro dos
velhos demônios, era a nós que ele libertava.
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