14.11.08

Ensaio Sobre a Cegueira


Após assistir ao último filme de Fernando Meireles, diretor respeitado no Brasil e exterior após os sucessos de Cidade de Deus e O Jardineiro Fiel, ambos com passagens pelo Oscar, fiquei com a sensação de que há dois tipos de audiências para esse filme: a dos que leram o livro e a dos que não o leram.

Li este e outros nove livros de José Saramago, ganhador do prêmio Nobel de literatura. Há até uma espécie de continuação em Ensaio Sobre a Lucidez. Também devorei tudo que podia sobre o filme: matérias, artigos, opiniões, críticas etc, e estava em São Paulo quando rodaram algumas cenas por lá. Como acontece quando se tem muita expectativa em uma coisa, o resultado é estranho...Sensação bem diferente da de há seis anos, num festival de cinema, quando da primeira película baseada em uma obra de Saramago, o filme holandês A Jangada de Pedra.

Ensaio Sobre a Cegueira que obteve reações frias quando abriu em maio o último Festival de Cannes é um bom filme, mas é fiel demais ao livro e isso tira dele, como obra de arte independente, o que ele tinha que ter: uma linguagem autoral, o dedo do diretor, o autor, em última análise, do filme. Meireles ficou intimidado pelo fato de Saramago ainda estar vivo e poder assistir ao resultado numa premiére exclusiva.

O diretor brasileiro tentou sem êxito anos atrás realizar este filme, mas não conseguiu obter os direitos de Saramago. O destino deu-lhe uma segunda chance quando foi convidado pelos produtores japoneses. Mas Meireles não deu sua “visão” da história, mas reproduziu em celulóide a visão de Saramago. Visão em um filme sobre a cegueira pode parecer contraditório, mas foi isso mesmo: o brilho do autor luso ofuscou a ótica de Meireles. Como a cegueira branca, a lente dos óculos do português cegou a lente da câmera do brasileiro.

A luz me incomodou um tanto. A insistência em frisar o tempo todo a brancura do branco levou a certo enjôo, lembrado a letra da famosíssima canção “A Whiter Shade of Pale” (ao pé da letra: “Um tom mais branco do pálido”). Há também o fato de que no livro (e também no filme, justiça se faça), local e tempo onde se passa a história não são identificáveis. Uma tacada de mestre do autor na sua metáfora da universalidade do abandono.

Mas há questões incômodas. O filme é falado em inglês — tinha que ser falado em algum idioma, obviamente —, o casal principal é norte-americano (Julianne Moore e Mark Ruffalo, além do medalhão Danny Glover) e há uma desagradável perfeição típica dos filmes americanos. Talvez por isso eles gostem tanto de Meireles e sua direção muito enquadrada, muito perfeita e muito limpa. Mesmo o lixo cenográfico da tela parece demais com lixo cenográfico e não com lixo de verdade.

Ler na imprensa o texto de Saramago rasgando elogios ao filme só reforçou minha sensação. Sim, o filme tem cenas fantásticas, como a das mulheres em fila seguindo para o estupro, essa cena inclusive levou o próprio Saramago às lágrimas. A mim não chegou a tanto, mas me tocou. Saramago é um gênio e Meireles um grande diretor. Fizeram um trabalho correto. Talvez isso devesse bastar...Por que então fiquei sentido que faltou um toque de alma?

1 comment:

Milly B. said...

Lavoura Arcaica também é fiel ao livro, acredito que esse não seja necessariamente um defeito. Eu queria muito ter visto esse filme, mas não pude. Não gosto de Saramago, mas como esse livro é o "best seller" dele, fiquei com vontade de ver só para ter uma idéia do que se trata. Lendo a sua crítica, não encontrei motivos para não gostar do filme, a não ser que você esperava algo distinto do produto final...