14.11.08

Sem Talento Para Relaxar


Retorno de férias com a certeza de que, como diz o meu genioso colega Gésner Braga com palavras contundentes como um tijolo, não tenho talento para relaxar. Quem disse que férias são para descansar precisa me ensinar como se faz isso.

Em 30 dias caberiam um diazinho para uma praia ou um fim de tarde numa rede sob um coqueiro em Itapuã (se me apontarem um coqueiro sou capaz de dizer “Oi, há quanto tempo!”).

Mas o que faz uma pessoa anormal nas suas férias? Elege São Paulo e assiste a 40 filmes, lê 3 livros, vê 4 peças de teatro e visita 5 museus....essa é a parte sagrada, a parte profana deixo para a boa e velha imaginação do leitor.

Seria enfadonho escrever sobre essa vasta programação e arrogância listar as vantagens de São Paulo em relação a Salvador no campo da haut culture, como dizem esnobemente os franceses. Por que Salvador não tem uma Mostra Internacional como há 32 anos em São Paulo e há dez no Rio? São mais de 350 filmes nesses festivais. Em São Paulo a Mostra ocupa 25 salas pela cidade com 20 dias de exibição. Em Salvador teríamos público para 20% disso?

Salvador é pobre comparada ao Rio e São Paulo, mas não é só por isso que não valorizamos esse tipo de arte. A cultura soteropolitana é uma fábrica de irrelevâncias que valoriza o supérfluo, a improvisação, o fútil e o banal. A pobreza real não está no bolso, mas bem acima.

Proporcionalmente, não são muitos os que apreciam manifestações culturais menos irrelevantes, freqüentando salas off-multiplex. Dá para colocá-los todos numa única sala. Se essa sala pegar fogo com o povo dentro, os cinemas off-multiplex vão à falência.

Conheço muita gente que nunca foi a uma das cinco salas do circuito Sala de Arte (Museu de Geologia, Aliança Francesa, MAM, Pelourinho e UFBA). Muitos alegam não gostar dos “filmes de arte”. Ninguém é obrigado a gostar de filmes com narrativas e estéticas off-multiplex, mas por que essas pessoas se orgulham tanto de espinafrar os chamados filmes “cult”? Tudo bem que o povo que freqüenta o circuito das salas de arte tem um ar meio solene e compenetrado, mas só por ali a pipoca ser banida e o silêncio ser respeitado elas já mereciam um troféu.

A comodidade é uma das razões. Nos multiplexes o estacionamento é seguro e dá para fazer diferentes coisas nos shoppings antes ou depois do filme, mas porque há tanta gente que nem sequer conhece as salas “alternativas”?

Voltemos ao dinheiro. A maioria dos cinéfilos das salas de arte são estudantes, professores e aposentados e não são ricos. Quanto mais pobre ou mais abastado, menos interessado o sujeito está nesses filmes. Os pobres, por falta de dinheiro, hábito e informação e os ricos por falta do quê? Respostas são bem vindas.

Aos advogados da nossa relevância cultural favor excluir o Carnaval e a Axé Music dessa lista já que, há tempos essa dupla deixou o terreno da arte e virou indústria. E excluam também da lista os medalhões da música (e da literatura!?). Se no passado a Bahia lhes deu régua e compasso, o dinheiro que ganham hoje está fora daqui e sua inspiração ultrapassa o Farol de Itapuã. É pura farra!

Para ilustrar, um trecho do livro 1808, de Laurentino Gomes, um dos que li nas férias. Nele o autor descreve a cidade de Salvador quando da passagem por aqui da família real portuguesa: “Já naquela época a cidade se caracterizava pelas procissões e festas religiosas que misturavam rituais sagrados e profanos. Um viajante francês de 1718 ficou chocado ao observar o vice-rei dançando diante do altar-mor em honra a São Gonçalo do Amarante ‘ Ele se chacoalhava de forma violenta, que não convinha nem à sua idade nem à sua posição’”.

E para terminar com um pouco de humor. Resumo do público da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, meu destino há nove outubros. A fauna é composta de quatro tipos:

1º - Espécimes endêmicos: Cinéfilos mais radicais que habitam o bioma da Mostra há mais de dez anos. Você reconhece esses espécimes pela forma como andam, parecem estar na sala da sua casa; pela indumentária, muitos usam a camiseta da Mostra e exibem crachás com direito a pacotes de 40 filmes ou passaporte integral. Esses não costumam andar em grupos, mas solitários, que é uma das características dos verdadeiros amantes da Mostra, pois somente sozinhos se consegue dar atenção à maratona para não perder as sessões com intervalos de 20 minutos. Tomam muito café e comem pãezinhos de queijo às baciadas, pois a resistência requer reposição de energias.

2º - Espécimes epidêmicos: Esses são os chatos. Há os que invadem em grupos de 3 ou 4, sempre formados por dois homens e uma mulher ou por dois casais, mas nunca com objetivos afetivos, mas para se exibirem. Quase sempre são estudantes de jornalismo ou outro curso do tipo. Os cabelos dos rapazes são sempre grandes e barbichas ou barbinhas ralas são fundamentais. As meninas exibem vestidinhos leves e nenhuma maquiagem. Esses chatos de galocha adoram comentar nas filas as quantidades absurdas de filmes que já viram e elogiar planos-seqüências de 20 minutos de um filme do Cazaquistão em que três personagens andam no deserto e nada acontece por 2 horas. E adoram Godard.

3º - Espécimes camuflados: Para minha felicidade, são a maioria. Discretos, você quase não os notaria se não fossem tantos. Andam calmamente entre as salas, estão nas filas em silêncio ou folheando o guia da Mostra para escolher os próximos filmes. Esses espécimes gostam de cinema, mas não são de se exibirem. Raramente estão em dupla e quando opinam sobre um filme não se prolongam horas nas análises.

4º- Espécimes alienígenas: Felizmente, são os mais raros e estão na Mostra de pára-quedas. Não sabem os nomes dos diretores dos filmes e não assistiram a nenhum dos filmes das mostras anteriores. Somem de repente, pois abandonam as salas se o filme demora um pouco mais para engrenar.

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