“Sangue sobre o asfalto e
sob o sol do sertão”
Se
algo liga a poeira do sertão de Bacurau ao asfalto da Gothan City do Coringa
são a vingança como ética e a sujeira como estética. Mas há tantas camadas de
interpretação das duas películas que é pretensioso avaliar os aspectos que elas
têm em comum. Já peço desculpas pela veleidade.
Os rastros de sangue do massacre
final de Bacurau e as pegadas sanguinolentas do Coringa no manicômio Arkham
marcam uma catarse histérico-coletiva e são os epílogos dos dois filmes. O
primeiro, ganhador do Prêmio do Júri do Festival de Cannes; o segundo, vencedor
do Leão de Ouro do Festival de Veneza.
Há a influência inegável de
cineastas geniais como Quentin Tarantino e Robert Rodriguez sobre Kleber
Mendonça Filho e Juliano Dorneles nos planos de Bacurau, nos seus diálogos e na
própria ausência de um núcleo dramático definido.
E se Bacurau é um duplo twist
carpado na carreira dos realizadores dos inspirados Aquarius e O Som ao Redor,
o mesmo se pode dizer da virada radical de estilo na direção de Todd Phillips,
que antes de Coringa foi responsável pelos três Se Beber Não Case.
Assim como encontram-se registros
tarantinescos em Bacurau, Coringa traz ecos de Martin Scorsese a Gus van Sant,
os três diretores sintomaticamente ganhadores da Palma de Ouro: Tarantino por
Pulp Ficcion (1994), Scorcece por Taxi Driver (1976) e Gus van Sant por
Elephant (2003). Estamos todos imersos no universo da extrema violência.
Distópicos
ambos, Bacurau se passa num nordeste de futuro indefinido enquanto Coringa é
retratado num passado recente igualmente brutal. Não há qualquer intenção de
pegar leve. Mesmo com uma paleta de cores pálida e lavada em ambos, o sangue
será sempre vermelho vivo, seja derramado sobre o asfalto sujo de Gotham City,
seja sob a canícula do sertão.
Está na moda falar em viés
ideológico. O público nordestino que majoritariamente votou contra Bolsonaro é
representado em Bacurau como vítima que se redime no final catártico, assim
como em Coringa, os brancos pobres (os white trash*) resolvem a fatura na base
do quebra-quebra indiscriminado contra “tudo que está aí”.
Apesar de se afastar um bocado da
mitologia estrita do Homem Morcego, o assassinato de Thomas Wayne, consequência
da catarse coletiva, gerará um Bruce Wayne/Batman também revoltado que, em uma
roda do destino, levará os bandidos como o próprio Coringa para trás das
grades. A violência produzindo mais violência.
Impossível não notar que a súbita
aparição de um revólver nas mãos do palhaço Arthur Fleck é o estopim da
selvageria, assim como a profusão de armas de fogo em Bacurau conduz ao
morticínio. Quem se lembrar dos massacres em escolas, boates e igrejas nos
Estados Unidos não estará longe de encontrar em comum uma revolta difusa de
grupos que se sentem preteridos pela sociedade e que, como em Coringa, geram bandos de ressentidos (os mass shooters) que se vingam na base da bala e da
carnificina indiscriminada. É gente que vota em Trump e em Bolsonaro, não?
Seria simplificar demais as
coisas ver apenas por essa ótica e um dos méritos do filme de Todd Phillips é
mostrar que a violência não parte apenas dos endinheirados e ricos, como os
executivos que espancam o palhaço no metrô. Antes disso, o mesmo Arthur Fleck
já levara uma sova de moleques delinquentes num beco escuro onde explode a
violência.
Aqui se separam Bacurau e
Coringa. Enquanto o primeiro deixa um travo amargo de chancela da brutalidade da vingança, o
segundo, apesar de certamente estetizar o caos, nega a validação aos atos
criminosos dos revoltados, até porque sem direção ou objetivo senão o próprio
caos.
O acachapante Coringa me
acompanhou por dias. Já sobre o sertão de um raso Bacurau, prefiro continuar
com o de Guimarães Rosa: “O sertão é uma espera enorme”.
*White trash (lixo branco) termo
em inglês usado para pessoas brancas de baixo estatuto social, pouca educação formal e
dependente de serviço social. Grupo que é maioria em todas as
classes sociais nos Estados Unidos (Fonte: Wikipedia)
2 comments:
Excelente! Note que embora não tenha assistido Bacurau deu perfeitamente para captar a essência do texto, o paralelo entre um filme e outro. Assisti Coringa e adorei. Amei o q escreveste sobre ele 10!
Fui eu que escrevi texto acima! Rsrs
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