20.3.18

O CONTO DA AIA E O VILAREJO


Acabei ontem de ler dois livros: O Conto da Aia, da canadense Margaret Atwood, e O Vilarejo, do brasileiro Raphael Montes. Recomendo vivamente a leitura de ambos.

O Conto da Aia vem de uma tradição de narrativa de distopia que remete a Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley e 1984, de George Orwell, todos eles obras primas da literatura moderna adaptados com sucesso para o cinema.

A história se passa em um futuro próximo onde todo o Congresso e o presidente da República foram assassinados por fundamentalistas, a Constituição foi abolida e um grupo cristão radical assumiu o poder  instaurando uma ditadura que retira aos poucos todos os direitos das mulheres, tornando-as meras escravas reprodutoras.

As Aias, mulheres férteis (a minoria, em razão da contaminação do meio ambiente) são capturadas para serem estupradas uma vez por mês e gerar filhos para os Comandantes com a conivência das esposas inférteis que participam do ritual mensal. O objetivo seria repovoar o país que foram os Estados Unidos e que passou a ser a República de Gilead.

O livro, lançado há mais de 30 anos, voltou a ser popular após a eleição de Donald Trump com retorno de ideais radicais e graças também à bem sucedida adaptação para minissérie que foi a grande vencedora do último Emmy, faturando cinco prêmios (melhor roteiro, série dramática, direção, atriz e atriz coadjuvante).

A narradora — cujo nome real não sabemos, já que todas as Aias têm como nomes os prefixo dos nomes dos seus donos —, descreve a atmosfera sufocante e de extremo medo em que vivem as mulheres obrigadas a se vestirem totalmente de vermelho, com toucas brancas na cabeça com uma espécie de antolhos,  que as impedem de verem e serem vistas ao redor.

Nesse ambiente hostil vivem os Comandantes, suas Esposas, Os Olhos, que são espiões, os Anjos, um tipo de infantaria militar, as Marthas, responsáveis pela limpeza e comida das casas dos Comandantes, e as Tias, mulheres sádicas que cuidam da “educação” das Aias, leiam-se: lavagem cerebral, humilhações e torturas.

O livro deve ser lido como um alerta contra as tentativas de hierarquizar o patriarcado e fortalecer o poder do Estado contra os direitos das minorias.

Selecionei um trecho que revela o terror da narradora ao tentar encontrar um tipo tênue de barganha com o seu algoz para evitar a submissão mental total durante um dos inúmeros estupros disfarçados de cópula ritual: “Finja! Berro para mim mesma dentro da minha cabeça. Você deve se lembrar como. Vamos acabar logo com isso. Senão você ficará aqui a noite inteira. Movimente-se. Mexa esta carne um pouco, respire de maneira audível. É o mínimo que você pode fazer”.

Não sou mulher e jamais poderei imaginar esse tipo de brutalidade contra o corpo e contra o espírito de uma mulher. Não faço sequer ideia. Deste lado desse abismo, resta o meu estupor.

O VILAREJO

O Vilarejo é um livro relativamente pequeno, com menos de 120 páginas, que narra sete contos interligados e tenebrosos que se passam numa remota vila fictícia tomada pela fome e pelo rigorosíssimo inverno, num país assolado por uma guerra civil. 

O suspense tem início logo no prefácio e tem um arremate, do mesmo modo sombrio, no posfácio. De presente para o leitor, mais de uma dezena de belíssimas ilustrações de Marcelo Damm (sobrenome que, curiosamente, significa “maldito”, em inglês.)

Raphael Montes é um jovem autor que desponta com ótimos livros que vem fazendo sucesso como Dias Perfeitos e Suicidas e neste O Vilarejo demonstra um excelente domínio da narrativa de terror.

Os sete contos são curtos e de leitura ágil, mas nem por isso são rasos. Cada um deles tem como título os nomes dos demônios responsáveis por cada pecado capital: Asmodeus (luxúria), Belzebu (gula), Mammon (ganância), Belphegor (preguiça), Satan (ira), Leviathan (inveja) e Lúcifer (soberba) e cada conto narra a história de um habitante do Vilarejo relacionado a cada pecado e demônio. A narrativa não linear dá um sabor a mais. Apenas no último conto somos apresentados à cronologia dos trágicos eventos, o que nos faz entender de fato toda a história.

As narrativas são de um terror repulsivo, mas não apelativo, apesar das descrições sanguinolentas já que o contexto está bem adequado à atmosfera sombria da ambientação. Em algumas páginas, as várias manchas de sangue parecem nos lembrar de que estamos imersos na maldade humana.

Como diz o crítico Rodolfo Lucena, na Folha de São Paulo: “As histórias de "O Vilarejo" não deveriam ser lidas, e sim contadas em voz soturna em torno de uma fogueira, em noite de lua cheia”.

Recomendo a leitura da versão impressa, pois na forma digital o livro perde muito da sua beleza e do prazer ritual de desfrutar de uma edição caprichada e elegante.



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