Acabei ontem de ler dois livros: O Conto da Aia, da
canadense Margaret Atwood, e O Vilarejo, do brasileiro Raphael Montes.
Recomendo vivamente a leitura de ambos.
O Conto da Aia vem de uma tradição de narrativa de distopia
que remete a Fahrenheit 451, de Ray Bradbury, Admirável Mundo Novo, de Aldous
Huxley e 1984, de George Orwell, todos eles obras primas da literatura moderna
adaptados com sucesso para o cinema.
A história se passa em um futuro próximo onde todo o
Congresso e o presidente da República foram assassinados por fundamentalistas,
a Constituição foi abolida e um grupo cristão radical assumiu o poder instaurando uma ditadura que retira aos
poucos todos os direitos das mulheres, tornando-as meras escravas reprodutoras.
As Aias, mulheres férteis (a minoria, em razão da
contaminação do meio ambiente) são capturadas para serem estupradas uma vez por
mês e gerar filhos para os Comandantes com a conivência das esposas inférteis
que participam do ritual mensal. O objetivo seria repovoar o país que foram os
Estados Unidos e que passou a ser a República de Gilead.
O livro, lançado há mais de 30 anos, voltou a ser popular
após a eleição de Donald Trump com retorno de ideais radicais e graças também à
bem sucedida adaptação para minissérie que foi a grande vencedora do último
Emmy, faturando cinco prêmios (melhor roteiro, série dramática, direção, atriz
e atriz coadjuvante).
A narradora — cujo nome real não sabemos, já que todas as
Aias têm como nomes os prefixo dos nomes dos seus donos —, descreve a atmosfera
sufocante e de extremo medo em que vivem as mulheres obrigadas a se vestirem
totalmente de vermelho, com toucas brancas na cabeça com uma espécie de
antolhos, que as impedem de verem e
serem vistas ao redor.
Nesse ambiente hostil vivem os Comandantes, suas Esposas, Os
Olhos, que são espiões, os Anjos, um tipo de infantaria militar, as Marthas,
responsáveis pela limpeza e comida das casas dos Comandantes, e as Tias,
mulheres sádicas que cuidam da “educação” das Aias, leiam-se: lavagem cerebral,
humilhações e torturas.
O livro deve ser lido como um alerta contra as tentativas de
hierarquizar o patriarcado e fortalecer o poder do Estado contra os direitos
das minorias.
Selecionei um trecho que revela o terror da narradora ao
tentar encontrar um tipo tênue de barganha com o seu algoz para evitar a
submissão mental total durante um dos inúmeros estupros disfarçados de cópula
ritual: “Finja! Berro para mim mesma dentro da minha cabeça. Você deve se
lembrar como. Vamos acabar logo com isso. Senão você ficará aqui a noite
inteira. Movimente-se. Mexa esta carne um pouco, respire de maneira audível. É
o mínimo que você pode fazer”.
Não sou mulher e jamais poderei imaginar esse tipo de
brutalidade contra o corpo e contra o espírito de uma mulher. Não faço sequer
ideia. Deste lado desse abismo, resta o meu estupor.
O VILAREJO
O Vilarejo é um livro relativamente pequeno, com menos de
120 páginas, que narra sete contos interligados e tenebrosos que se passam numa
remota vila fictícia tomada pela fome e pelo rigorosíssimo inverno, num país
assolado por uma guerra civil.
O suspense tem início logo no prefácio e tem um
arremate, do mesmo modo sombrio, no posfácio. De presente para o leitor, mais
de uma dezena de belíssimas ilustrações de Marcelo Damm (sobrenome que,
curiosamente, significa “maldito”, em inglês.)
Raphael Montes é um jovem autor que desponta com ótimos
livros que vem fazendo sucesso como Dias Perfeitos e Suicidas e neste O
Vilarejo demonstra um excelente domínio da narrativa de terror.
Os sete contos são curtos e de leitura ágil, mas nem por
isso são rasos. Cada um deles tem como título os nomes dos demônios
responsáveis por cada pecado capital: Asmodeus (luxúria), Belzebu (gula),
Mammon (ganância), Belphegor (preguiça), Satan (ira), Leviathan (inveja) e
Lúcifer (soberba) e cada conto narra a história de um habitante do Vilarejo
relacionado a cada pecado e demônio. A narrativa não linear dá um sabor a mais.
Apenas no último conto somos apresentados à cronologia dos trágicos eventos, o
que nos faz entender de fato toda a história.
As narrativas são de um terror repulsivo, mas não apelativo,
apesar das descrições sanguinolentas já que o contexto está bem adequado à
atmosfera sombria da ambientação. Em algumas páginas, as várias manchas de
sangue parecem nos lembrar de que estamos imersos na maldade humana.
Como diz o crítico Rodolfo Lucena, na Folha de São Paulo:
“As histórias de "O Vilarejo" não deveriam ser lidas, e sim contadas
em voz soturna em torno de uma fogueira, em noite de lua cheia”.
Recomendo a leitura da versão impressa, pois na forma
digital o livro perde muito da sua beleza e do prazer ritual de desfrutar de
uma edição caprichada e elegante.
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