Na obra máxima do Nobel português
José Saramago, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, há uma passagem célebre em que
Deus e o Diabo decidem o destino de Jesus. Deus já tem tudo traçado, mas o
Diabo intervém e propõe que Jesus não morra na cruz. O Diabo oferece um
pacto a Deus: ele deixaria de representar o Mal, Deus o aceitaria de volta no
céu e a disputa entre o Bem e o Mal acabaria, poupando o sofrimento de Jesus e a perda de milhões de vidas em guerras religiosas.
No entanto Deus responde: “Quero-te
como és, e, se possível ainda pior do que és agora porque este Bem que eu sou
não existiria sem esse Mal que tu és. Se tu acabas, eu acabo. Para que eu seja
o Bem, é necessário que tu continues a ser o Mal. Se o Diabo não vive como o
Diabo, Deus não vive como Deus. A morte de um seria a morte do outro”.
Lembrei-me dessa passagem quando
vi a proporção que tomou a disputa entre os deputados federais Jair Bolsonaro e Jean Wyllys na
votação da admissibilidade do impeachment na Câmara dos Deputados quando Bolsonaro
defendeu um torturador e Wyllys cuspiu no colega.
Partidários de ambos os lados
passaram a se agredir, como sói acontecer nas redes sociais. Além de antípodas,
um votou a favor e o outro votou contra o impeachment, o tema que hoje mais
acirra os ânimos.
Mas, no fundo, acredito que os dois
políticos são as duas faces da mesma moeda. Jean Wyllys foi eleito
pela primeira vez deputado federal pelo Rio de Janeiro em 2010 com apenas 13
mil votos. Não atingiu o mínimo necessário e só chegou a Brasília arrastado
pelos votos do deputado Chico Alencar do PSOL. Na eleição seguinte, em 2014, ele
teve dez vezes a sua votação anterior chegando a 144 mil votos. Foi o 7º mais
votado do Rio e acabou sendo escolhido, em votação na internet, o melhor deputado em 2015. O que aconteceu nesse intervalo que fez o deputado ex-BBB ter
tal upgrade?
Vejamos o outro lado. Bolsonaro,
que está no seu sexto mandato foi o deputado federal mais votado no Rio de Janeiro e ainda
elegeu dois filhos com pensamentos políticos idênticos. A votação de Bolsonaro
em 2014 foi o quádruplo da sua votação em 2010. Passou de 120 mil votos para 464
mil votos. Pulou de 11º mais votado para o 1º lugar.
O que aconteceu entre 2010 e 2014
foi bom para ambos. A disputa entre Wyllys e Bolsonaro rendeu dez vezes mais
votos para o primeiro e quatro vezes mais votos para o segundo. A rixa entre
eles gera frutos para ambos. Quando Bolsonaro tem os holofotes sobre si ao
elogiar um torturador, Wyllys não quer ficar atrás no quesito originalidade e
desfere cusparadas no colega. Ambos são mutualistas cuja definição é: “Tipo de interação
entre duas espécies que se beneficiam reciprocamente da associação entre elas
de forma obrigatória (simbiose) ou facultativa”.
Sou totalmente avesso às
pregações nazistas e homofóbicas de Bolsonaro, acho-o repugnante e atroz, mas
lembro que ele não caiu na Câmara dos Deputados de paraquedas. Foi eleito e
representa o pensamento de milhares de eleitores, assim como Wyllys. Ao se opor a Wyllys,
Bolsonaro lucra votos, como já foi demonstrado. Wyllys ao cuspir no colega
cumpre à risca a trajetória bem sucedida que traçou para si e que gera frutos e
votos. Trata-se do anti-Bolsonaro.
Engana-se quem pensa que eles se
excluem. Como Deus e o Diabo no livro de Saramago, um deve agradecer pela
existência do outro.
6 comments:
Isso é bem profundo. Mais do que parece ser. Porque realmente lança uma luz diferente da oposição ideológica que se construiu e se evidenciou nos últimos dois anos. Vc sabe, né? Sou do lado Willys. Me senti muito bem representada pela cusparada no idiota do Bolsonaro. Mas me sentiria melhor se estivesse despida da "tendenciosidade". Fico feliz que, sabendo que vc não é o lado Willys, é muito menos o outro. E com lucidez para não se entregar a este jogo maniqueísta. Coisas de quem pensa, acho eu. Adoro quando citam Saramago com pertinência. Gostei, amor. Gostei mesmo.
Ótimo texto, Luiz! Vc consegue ser imparcial e lúcido, qualidades raras nesses tempos de passionalidade. É bom lembrar que vivemos em um mundo no qual a dualidade está presente em tudo! A moeda tem sempre dois lados. Tb sou a favor de Jean e me senti representada pela cusparada, apesar de entender, racionalmente, que não foi uma atitude, digamos assim, politicamente correta. Mas o sentimento de revolta que ele deve ter sentido é meu Tb! Parabéns. Beijo
Luz e sombra. Jung na veia
Escrita impecável.
Muito bom o texto.
Ainda estou aqui refletindo sobre o conteúdo do texto!
Na necessidade de coexistência dos opostos!
E na aflição que essa coexistência tem trazido para nossos dias!
Será tão benéfico assim?
A mais precisa crítica sobre esse patético episódio. Perfeito. Irretocável!!
Muito bom Lu. Uma visão original. Fiquei pensando em quanto nós vivemos as polaridades e agimos de forma extremada como consequência. Não percebemos a complementaridade dos opostos e oscilamos entre eles sem encontrar um lugar mais real, mais capaz de contemplar a complexidade da vida e do humano. Obrigada. Bjs
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