18.5.14

PRAIA DO FUTURO



Se o novo filme do cearense Karin Ainouz encanta alguns pela sua errância, suas elipses e os longos silêncios, a mim gerou certa sensação de incompletude. Nada tenho contra esses recursos narrativos. Adoro, por exemplo, os silêncios e os longuíssimos planos do cinema iraniano, mas Praia do Futuro me pareceu algo ermo. Seus espaços ocos na história, os saltos temporais e as imagens vagas, mesmo belíssimas, me deram a sensação de um filme arredio do qual eu insistia em querer gostar, querer apreender, como um belo pássaro que se tem à mão, mas que se debate para fugir, resistindo a se deixar desfrutar, de uma beleza que não se pode fruir. Fugidio.

Antes devo dizer que gosto demais da filmografia de Karin Ainouz. Já assisti, mais de uma vez, aos seus filmes Madame Satã, O  Céu de Suely, Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo e Abismo Prateado e tinha muita expectativa sobre Praia do Futuro. Talvez o problema seja o excesso de expectativa, mas o que se pode fazer quando se acompanha a carreira de um diretor? A gente sempre espera algo tão bom quanto seus filmes anteriores.

Pois ali estava eu, há mais de uma hora dentro do cinema e o filme insistia em não me encantar. Eu queria muito gostar dele, mas o filme parecia não querer o mesmo de mim. Pensei comigo: ele foge, como os personagens de Ainouz....Donato foge para Berlim; Suely foge para o mais distante que seu dinheiro possa pagar; Violeta, de Abismo Prateado, tenta fugir do Rio, como seu marido fugiu dela; Madame Satã busca fugir de si mesmo e da sua sordidez inventando uma nova persona; José Renato (o abandonado geólogo de Viajo Porque Preciso) foge sertão adentro em uma busca do isolamento; e Tonho (de Abril Despedaçado, roteiro de Ainouz), foge da sina da vingança familiar.

Essa obsessão escapista de despertencimento e autoexílio dos personagens de Ainouz se traduz na própria forma do diretor filmar, mas aqui ele radicalizou talvez excessivamente, pois essa impermanência cheira a despersonalização e priva o filme de certa fibra necessária para torná-lo coeso e priva o expectador de um momento de encantamento. A todo instante, eu buscava aquele ponto do filme em que viria um momento sublime, mesmo que fosse apenas um, uma breve epifania que valesse o tempo dentro do cinema. Todos esses momentos sublimes podem ser vistos nos filmes anteriores de Ainouz, mas senti falta desse instante em Praia do Futuro.

Recentemente, o diretor deu uma entrevista ao programa Metrópolis em que falava dessa sua inclinação para filmar silêncios. Dizia que as palavras podem ser desnecessárias e que, por isso, não gostava dos filmes de Woody Allen, a quem chamava de chato. Para alguém que se encanta tanto com imagens, as palavras podem ser redundantes. Então foi por isso que ele retratou homens que falam idiomas diferentes? Por isso optou por filmar o que corpos dizem quando dançam, fazem sexo, nadam ou pilotam motocicletas? Pouco se pode dizer quando se está em alguma dessas atividades. Elas são autoexplicativas, dispensam palavras.

Palavras....Em certo momento do filme, praticamente não se entende o que os dois personagens principais falam pois, além da música alta que invade a cena, um deles fala um português quase incompreensível e as ondas do mar arrebentando cobrem as falas. Seria mais uma opção do diretor em prescindir da palavra? Se for isso, é uma mudança muito grande, pois a radicalização no sentido oposto já havia sido feita no seu magistral filme anterior: Viajo Porque Preciso, Volto Porque te Amo, todo ele praticamente um único monólogo com a voz do ator Irandhir Santos que não aparece na tela. Imagens apenas as vistas através do vidro de um carro.

Praia do Futuro é bem sucedido ao mostrar a busca por redenção nas almas contraditórias dos personagens: a utopia de Berlim versus a distopia de Fortaleza; o passado em ruínas das praias do Ceará contra uma Alemanha cosmopolita que aponta para o futuro; um herói que se reinventa fugindo da sua terra para buscar algo que nem sabe o que é diante de um passado na forma de um irmão que insiste em trazê-lo de volta para uma terra abandonada.  

Praia do Futuro, entretanto, falha ao optar em mostrar a homossexualidade dos personagens principais como uma não-questão. Isso não é objeto de conflito interno de Donato e Konrad e nem do irmão Airton. Ao mesmo tempo em que exibe cenas de sexo, o filme se esforça em fugir dessa questão ao mostrar seus personagens num universo extremamente masculino: Konrad, um militar que lutou na guerra do Afeganistão, pilota e trabalha com motos; Donato, um bombeiro salva-vidas. Mesmo as cenas fortes de sexo têm uma abordagem extremamente viril e sem qualquer ternura.

Por que, me pergunto até agora, fazer os personagens serem homossexuais e não avançar na abordagem dessa condição. Parece que isso não é importante, mas parece também que o diretor não quis decifrar as profundas repercussões narrativas oriundas dessa questão. Limitando-se a mostrar dois homens que fazem sexo, não precisa adentrar o terreno dramaturgicamente fértil que isso poderia resultar. As elipses, fartas no filme, são muito úteis nesse ponto, revelando-se mais uma estratégia de fuga (de novo) e menos uma opção estética.

Wagner Moura declarou em uma entrevista: “Temos que ter a responsabilidade de não fazer isso virar um assunto. É preciso ver essa relação entre eles com naturalidade. Se fosse um homem e uma mulher, ninguém estaria falando sobre isso. Um filme em que dois homens podem se amar não é um problema”.  Não creio que o problema seja a forma como as pessoas veem o filme, elas podem achar bom ou ruim o fato de dois homens se amarem. É exatamente este o ponto. Do lado de fora da tela, há um mundo em que as pessoas têm visões distintas sobre esse assunto. No filme, isso nem é tangenciado, sequer é problematizado.

Seria ingênuo acreditar que a homossexualidade é algo sem importância e que prescinda de um olhar que decifre os enigmas dessa condição. Falta estofo aos diálogos, todos muito vazios. O diretor escapole das palavras para mostrar imagens, mas quando precisa do texto utiliza diálogos fracos e sem substância. Poderia ser um filme mudo e não sentiríamos muita diferença. 

Ao contrário do mundo heteronormativo em que ainda vivemos, fico a imaginar que, segundo Praia do Futuro, habitamos um planeta em que dois homens gays podem viver plenamente suas vidas e isso não ser uma questão para eles. Seria como acreditar que uma mulher negra possa viver sem qualquer percalço ligado ao seu gênero e à sua cor num mundo que privilegia o homem branco. 

Tudo bem, eu entendo que um filme realista é um recorte de uma realidade, mas Praia do Futuro é um recorte do recorte.

1 comment:

barroso said...

Perfeito! Irretocável!!!!