9.3.14

AS FOGUEIRAS E A POSTERIDADE


Dois filmes a que assisti durante o Carnaval me chamaram a atenção por tratarem, com muita elegância, de temas que não têm hoje em dia muito charme e apelo para as gerações mais novas, aquela turma que prefere a sala ao lado, onde passam as séries Eclipse e Velozes e Furiosos (vê que agradei as mocinhas e os moleques). Pois bem, os filmes do meu Carnaval foram A Menina que Roubava Livros e Caçadores de Obras de Arte.  


De fato, os temas tratados em ambos não são de grande apelo para a galerinha. Afinal, entre um bom livro e um show mixo de pagode, quem há de negar que este lhe é superior? E entre uma exposição de Monet e um Ba-Vi quem aposta um picolé de limão na primeira opção?

Em comum, os dois filmes contam com atores de primeiro time. Em A Menina...temos Emily Watson e Geoffrey Rush. Em Caçadores...temos George Clooney, Matt Damon, Cate Blanchet, Bill Murray, John Goodman e  Jean Dujardin. Ambos se baseiam em livros de sucesso e são grandes produções. Em comum também o fato de que o nazismo é o pano de fundo das duas obras e que ambas falam do amor dos homens pelos livros e pelas obras de arte.


Uma ideia permeia os dois filmes e isso me chamou especialmente a atenção. O amor por esses objetos feitos pelo homem vale o sacrifício de uma vida? Sua preservação vale arriscar uma vida?

Antes que você responda, e se não leu o artigo de Contardo Calligaris na Folha de 6/3, certamente você deve pensar que nenhuma vida vale o sacrifício, mesmo que seja para salvar uma obra de arte ou um livro. Ok, falaremos sobre isso no final. Aguarde.

Estou lendo agora, com bastante atraso A Menina que Roubava Livros já que desde 2007 o seu autor Markus Zusak o lançou no Brasil e o fenômeno editorial permaneceu 99 semanas seguidas em primeiro lugar em listas de mais vendidos. Nele, acompanhamos a vida da pré-adolescente alemã Liesel durante o período da segunda guerra mundial. Ela vê o irmão bebê morrer de fome e frio, é separada da mãe logo no início da história e vai viver com uma família desconhecida. Logo, Liesel percebe que somente através dos livros ela encontrará uma salvação fugaz, uma fuga breve para toda a miséria do seu país, perseguição e matança de judeus e comunistas, racionamento de alimentos, fome, delações e espancamentos, o medo a veste como uma roupa que se recusa a deixar o corpo pela falta de outra.

Todo o livro é uma poesia em forma de prosa, e cada página surpreende pela delicadeza. Livro e filme têm um requinte: são narrados pela morte. Sim, a morte, a ceifadora de almas é a narradora da história e se isso lhe parece estranho, também a mim me pareceu, mas esse estranhamento passou na primeira página porque a ceifadora é uma narradora de primeira.

Então eu que tenho um amor quase sagrado pelos livros, entendo o que levaria essa menina faminta a arriscar a vida invadindo casas para roubar livros ou mesmo arriscando-se a resgatar um livro que estava sendo queimado em uma fogueira nazista.

Fogueira nazista!

Os nazistas eram obsecados em queimar coisas. E pessoas. É esse também o tema de Os Caçadores de Obras de Arte: uma equipe de curadores de várias partes do mundo se junta para salvar obras de arte que estavam sendo roubadas ou destruídas pelos nazistas. E novamente voltamos à pergunta que o filme faz algumas vezes: a vida de um homem vale uma obra de arte?

Certamente você, um humanista, dirá que não, que por melhor que seja a obra de arte, ela não vale a vida de um homem. Então, sem hipocrisia, como diz Calligaris, você, católico ou evangélico, tem nas mãos o livro mais precioso do mundo: a Bíblia original de Gutemberg (de 1455) e pode escolher entre salvá-la de um incêndio ou a vida de Fernandinho Beira Mar. Você relativiza seus conceitos?

Pode também escolher entre salvar de um incêndio ou o esplêndido “O Beijo”, de Gustav Klimt, ou o deputado Marco Feliciano; ou a “Pietá”, de Michelângelo, ou Jair Bolsonaro. O que você faria? Talvez você prefira deixar “Guernica”, de Picasso, arder para salvar a vida de Ricardo Lewandovski.

Sobre a influência da arte e particularmente de Guernica (aquela obra que você deixou queimar para salvar Ricardo Lewandovski), recomendo que assista ao belo filme Basquiat que, na abertura, mostra uma cena que influenciou decisivamente o interesse de Jean Michel Basquiat pela pintura. Quando criança pobre, ele era levado pela mãe toda semana para ver Guernica. O menino não entendia nada de arte, mas se impressionava ao ver, constantemente, a mãe se debulhar em lágrimas em frente àquela tela que retrata os horrores da guerra. Anos depois, aquelas tardes com a mãe no museu moldaram o gosto e transformaram a vida do artista que é hoje um dos mais respeitados e caros do mundo.

A posteridade fez muito por Michelângelo, Klimt, Picasso e Basquiat. O que fará por Bolsonaro, Feliciano, Lewandovski e Beira Mar?
Você decide.

2 comments:

GÉSNER BRAGA said...

Bom... as comparações acima são covardes e não tenho nenhum pudor em dizer que salvaria as obras.

Agora, se eu tivesse de escolher entre a Bíblia de Gutemberg e minha mãe ou irmãos ou parentes ou amigos ou pessoas de um mínimo de caráter, não teria dúvida: dane-se a Bíblia.

Unknown said...

A Bíblia de Gutemberg e Fernandinho Beiramar juntos na fogueira, com certeza. A bíblia é sexista, racista, classista e especista. A segunda opção é psicopata, sem consciência e sem empatia com outro ser humano. A vida humana é supervalorizada. Qualquer obra de arte vale o sacrifício de uma vida.