Há algumas semanas escrevi sobre o volume 1 de Ninfomaníaca, do diretor dinamarquês Lars Von Trier. Ali, eu comentava que qualquer análise seria incompleta sem a estreia da parte 2. Dizia: “É muito incômodo falar a respeito de um filme que se assistiu até a metade. Como falar sobre a obra se ela não está completa? É como ver um quadro semiacabado ou ler um livro até o meio. Qualquer coisa que se diga é também incompleta”.
Pois agora, com a estreia da segunda parte, pode-se desnudar um pouco mais do véu que cobre (cobre?) esta obra cinematográfica e desvendar o que Trier já não mais esconde.
Menos que esconde, escancara, expõe, esfrega na face da plateia e certamente incomoda muita gente. A mim, só me faltou levar a testa até o chão e render todas as honras à coragem desse genial dinamarquês. Só não aplaudi ao final por puro estupor e porque as camadas de interpretação iam caindo uma a uma, como uma série de fichas caindo em uma velha jukebox.
Aqui é preciso que se diga que a obra precisa ser vista completa para extrair dela o seu melhor. Dividida em duas partes, por razões mercadológicas, não será devidamente fruída sem a sua integridade, o que certamente evita prejuízos para quem analisa as duas partes separadas. Não é que um volume é melhor ou pior do que o outro. Eles são, simplesmente, uma coisa só.
Nesta segunda parte, vemos a continuação da história, mas isso não significa uma sequência linear, pois aqui encontraremos fatos anteriores aos vistos no volume 1. E somente no final é que entendemos como Joe (Charlotte Gainsbourg) foi parar totalmente arrebentada naquele beco de onde foi resgatada por Seligman, personagem de Stellan Skarsgård.
Aqui descobrimos que Joe se casou e teve um filho com Jerôme, personagem do excelente Shia LaBeouf. Consciente de que não era capaz de satisfazê-la sexualmente, Jerôme permite que Joe explore como quiser suas possibilidades eróticas com outros homens. E isso, desculpe a analogia vulgar, é praticamente como oferecer banana a um macaco: Joe cai literalmente na roda e se atira a uma espiral de sexo e perversões.
Lars Von Trier chega ao requinte de aludir, neste filme, a uma famosa cena da sua película anterior: O Anticristo, em que a mesma Charlotte Gainsbourg, durante uma relação sexual, vê, sem reagir, seu filhinho cair para a morte ao som da belíssima ária Lascia ch'io pianga. Estamos diante de um bebê, como o bebê do filme anterior, descendo de um berço e dirigindo-se para a mesma neve que cai ao som da mesma canção. O suspense é inegável.
Uma surpreendente interpretação é apresentada pelo ator Jamie Bell (o eternamente adorável Billy Elliot) como um sombrio K, um mestre do sadismo que “trata” Joe como um saco de pancadas e ainda dá a ela o nome de um cachorro. Ao receber dele 40 chibatadas, ela de fato supera o próprio Jesus Cristo, que aguentou 39.
O filme transita sobre analogias religiosas, discussões sobre pecado, culpa e expiação. Em um momento, quando Joe imagina ter tido a visão da Virgem Maria durante um orgasmo na infância, acaba descobrindo que se tratava, na realidade, da imagem da imperatriz Messalina, conhecida como a maior ninfomaníaca da história, e para acompanha-la, na visão, ninguém menos do que a imagem bíblica da Prostituta da Babilônia cavalgando uma besta.
E tome-lhe embate teórico com inúmeras cenas da degradação brutal de Joe transformadas em metáforas e analogias pelo intelectual Seligman: uma ninfomaníaca e um assexuado é uma combinação que não dá nenhuma liga. Dois extremos em busca de algum tipo de resgate. Ela, afirmando-se uma pessoa má e ele tentando, a todo custo, provar que ela não é má coisíssima nenhuma e chegando a conjecturar se um homem, no lugar de Joe, sofreria as mesmas críticas.
O diretor toca o dedo direto na ferida da hipocrisia quando coloca na boca de Joe palavras consideradas politicamente incorretas como "negro" e "ninfomaníaca". Em ambas as cenas, ela é admoestada para substituí-las por afrodescendente e viciada em sexo. Para Joe, quando algo atormenta a sociedade, em vez de ela tratar o problema, enfrenta-lo, simplesmente suprime a palavra. Isso tem nome: hipocrisia.
O diretor toca o dedo direto na ferida da hipocrisia quando coloca na boca de Joe palavras consideradas politicamente incorretas como "negro" e "ninfomaníaca". Em ambas as cenas, ela é admoestada para substituí-las por afrodescendente e viciada em sexo. Para Joe, quando algo atormenta a sociedade, em vez de ela tratar o problema, enfrenta-lo, simplesmente suprime a palavra. Isso tem nome: hipocrisia.
E se qualquer um imagina que Lars Von Trier pretendia excitar alguém com esse festival de órgãos sexuais e taras pode se desapontar. Acho mesmo que ele deve estar até agora rindo dos incautos que esperavam extrair algum prazer físico. Posso dizer que nunca imaginei um ménage à troir mais sem graça e mais chocho na minha vida. Estamos diante de uma jovem tarada e especialista em perversões nas mãos de dois jovens e fortes negros excepcionalmente bem dotados: um clichê do clichê. Se dessa combinação podia sair algum prazer, o anticlímax é total. Ah, esse Trier não vale nada!!!
Um filme de fato mais verborrágico do que erótico e nem por isso menos político. O final é puro Trier atirando um jato de inconveniente verdade, um tiro seco de luz no escuro e sujo coração da hipocrisia. Uma cena de inegável choque. Machistas, moralistas e hipócritas, tremei. Trier chegou para desorganizar o puteiro.
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