Lá estava eu, na fila do Multiplex. Fila
para filme de Lars von Trier no Multiplex? pensei. Meu sexto sentido, o único que
nunca falha, alertou que algo não estava batendo: “esse povo todo aqui não pode
ser seguidor da filmografia de Trier, o nórdico polêmico”. Se ainda fosse numa
das salas do circuito de filmes de arte?
Como imaginava, nos primeiros minutos da projeção chegou a hora daquela
“gente diferenciada” mostrar seu valor...ou melhor, suas cordas vocais. Pareciam
adolescentes de 15 anos, mas como a censura do filme era 18 anos, conclui que
essa gente tem 18 anos cronológicos, mas 15 anos mentais. Em determinada parte,
quando a personagem principal perde a virgindade por escolha própria, a
camarilha se soltou, indócil e comentários altos, no nível do rés do chão,
pipocaram.
Alguns espectadores desavisados começaram
a fazer xiiiii e pssssiuuu, mas essas coisas não funcionam com gente assim. Bem
feito para mim. Quem manda não ir às salas de arte. Os Multiplex, já há tempos sofreram as
invasões bárbaras dos hunos.
Mas para essas ocasiões uso o grito primal,
tática que funciona em 90% das vezes. Esperei que várias pessoas fizessem
pssssiiu e gritei alto, num segundo de silêncio:
Ô CAFAJESTE!!!
E, de novo, funcionou. Nenhum dos que faziam
galhofa se manifestou mais. Acho que esse adjetivo: “cafajeste”, surgido
inesperadamente num escuro de um cinema deve fazer um efeito semiparalisante no
que resta dos cérebros dessa gente. Como não é uma palavra de uso corriqueiro
nos repertórios de xingamentos, como imbecil, cretino e babaca, as pessoas que
os recebem no peito (ou nos tímpanos), levam alguns segundos para processar a
informação e deve levar a alguma vergonha pois calaram a boca. Pude ver o resto
do filme mas nunca 100% tranquilo já que a ameaça de que aqueles voltassem à
carga continuou até o fim, pois o diretor manteve na tela o desfile de suas
cenas provocadoras.
Ao menos, vi vários casais deixando o cinema no meio do filme. Adoro! Filme bom é aquele que incomoda frequentadores de Multiplex e os expulsa como um corpo saudável expulsando invasores.
Ao menos, vi vários casais deixando o cinema no meio do filme. Adoro! Filme bom é aquele que incomoda frequentadores de Multiplex e os expulsa como um corpo saudável expulsando invasores.
Devo ter batido aqui algum recorde de nariz de cera (o texto que se escreve antes do assunto principal). O tema aqui deveria ser Ninfomaníaca e não as minhas agruras ao assisti-lo. Se eu o tivesse visto numa sala de arte você estaria lendo o texto a partir da próxima palavra.
De uma coisa não se pode acusar o
diretor Lars vor Trier: ser um monstro do marketing! Seus filmes conseguem a
proeza de gerar polêmica antes do primeiro ingresso
ser vendido. A campanha de Ninfomaníaca foi coisa de gente grande. Há meses, circulam nas mídias as
imagens dos atores simulando orgasmos nos cartazes. Uma jogada brilhante.
Todos os jornais e cadernos de cultura de revistas e de TV falaram do assunto.
Sou fã de von Trier desde
que assisti a Europa e não perdi uma única das suas películas: Ondas do
Destino, Os Idiotas, Dançando no Escuro, Dogville, Manderley, O Anticristo e
Melancolia. Muitos deles me incomodaram, alguns me levaram a algum tipo
de epifania, outros me revoltam, me levaram às lágrimas. Jamais saí tranquilo de nenhum deles.
Ninfomaníaca está me
incomodando até agora, dois dias depois de assistir a ele. Isso é bom sinal. Um
filme que fica atacando seus neurônios e girando em sua cabeça,
levantando camadas e mais camadas de interpretação, não é coisa à toa.
Nenhuma análise de
Ninfomaníaca será completa sem a estreia da parte 2. É muito incômodo falar a
respeito de um filme que se assistiu até a metade. Como falar
sobre a obra se ela não está completa? É como ver um quadro semiacabado ou ler
um livro até o meio. Qualquer coisa que se diga é também incompleta.
Consciente de que esta é
uma avaliação incompleta, preciso lembrar da fama de Lars Von Trier, conhecido
pela sua extrema misoginia e por levar suas atrizes praticamente à loucura. Foi assim com Nicole Kidman, Bjork,
Emilly Watson e Bryce Dallas Howard. Algumas não falam mais com ele. Nenhuma das suas “heroínas” pode alegar que passou bons bocados, pois todas
sofrem horrores nas suas películas e nas suas mãos. Finais felizes não são o
forte desse dinamarquês gélido. Mas nem por isso seus filmes são menos
deslumbrantes. Há uma gota de masoquismo voyerista nos seus espectadores que
faz um contraponto perfeito para seu sadismo exibicionista. São como mestre e
escravos, pois não?
Não estou reclamando.
Essa relação tem seus atrativos. Somente suas atrizes é que deram um basta. Bjork deixou as
filmagens de Dançando no Escuro na metade, levando o diretor à beira da loucura. Mesmo ganhando
a Palma de Ouro de melhor atriz em Cannes, Bjork declarou que nunca mais irá filmar na
vida e que odeia o diretor. Eles não se falavam no set. Emilly Watson teve
crises nervosas e Nicole Kidman se recusou a fazer a mesma personagem na
continuação de Dogville.
Então estamos aqui diante da atriz Charlotte
Gainsbourg que estreia o terceiro filme seguido do diretor. Qual a química que
os une? Devemos lembrar que Charlotte é filha da piração: o cantor Serge Gainsbourg e a atriz Jane Birkin são seus
pais. Não queria usar um adjetivo vulgar para descrever os dois, pois são
extremamente talentosos, mas esse pai e essa mãe não poderiam ter uma filha
muito, digamos, “normal”. Talentosa como os pais e quase tão louca quanto ambos. Daí talvez dê para vislumbrar a dinâmica complexa da relação dela com o
diretor von Trier.
O
próprio nome do filme: Ninfomaníaca é uma provocação pois o termo equivalente para definir homens viciados em sexo, satiromaníacos, praticamente não tem uso, ao contrário da palavra ninfomaníaca que se tornou um termo corriqueiro.
Palavras são criadas para
atender às necessidades do seu uso. Se uma palavra não existe ou é incomum é
porque é quase desnecessária. Quem já ouviu falar no termo damismo, equivalente feminino
a cavalheirismo? A linguagem tem um enorme poder de formar conceitos, mentalidades
e sentido. Por isso, os grupos feministas sempre se recusaram a contribuir com
a construção hierárquica linguística entre o masculino e o feminino. No momento
em que construímos uma terminologia para classificar alguém, essa linguagem carrega
um processo ideológico que preserva hegemonias.
No vocabulário chulo, para
“qualificar” os homens temos os termos: putão, miseravão, espada, cachorrão.
Para as mulheres denominadas piriguetes são sinônimos: pidona, galinha, fuleira
e cachorra. Seguindo a assimetria que se encontra na base da linguagem, todas
são denominações usadas para “(des)qualificar” as mulheres. E piriguete se
relaciona à imagens de mulher fácil: a ninfomaníaca.
Assistindo às desventuras
da personagem principal de Ninfomaníaca, vemos que o que ela tem é uma doença,
uma patologia e isso não tem nada de bonito ou edificante. Uma coisa é a mulher
considerar-se dona do seu próprio corpo, do seu desejo e trepar com quem quiser.
Os homens já fazem isso há milênios. Outra coisa é a obsessão e o vício no sexo
que leva alguém a fazer sexo com dez pessoas no mesmo dia. Isso não é nada
bonito.
Ok, o cinema não está aqui
para mostrar coisas bonitas e louvo a
coragem do diretor em ousar lançar um filme impróprio para menores de 18 anos num mundo de
entretenimento em que os sucessos, ou seja, a grana, corre na medida em que os filmes
procuram atingir um público infanto-juvenil e aquele público adulto tratado
como adolescente. Quase toda a produção cinematográfica mundial visa
exatamente à infantilização das plateias e públicos com idades cronológicas ou
mentais abaixo de 18 anos. Então, por isso, palmas para o diretor.
Lars von Trier almeja esgarçar as fronteiras entre o cinema e a pornografia, mas não sou ingênuo e sei que ele quer incomodar mesmo que chegue próximo demais daquela dita fronteira. Entretanto, ele é esperto demais para não cruzar essa linha tênue. Afinal, foi com sua concordância que as cenas mais explícitas foram cortadas da versão para o cinema. A íntegra, só quando chegar em dvd, o que deve vender como banana madura na feira.
Toda a
danação de Joe (Charlotte) é extremamente complexa, como diria o velho sábio de Viena,
para quem a vida
sexual das mulheres adultas constituía um “continente obscuro”. Afinal, perguntava
o mesmo Freud, o que querem as mulheres? Essa é a pergunta de um milhão de
dólares que até hoje não teve resposta, pois mesmo o doktor Freud afirmou que é
uma questão aberta até hoje, como aquelas abstratas questões de matemática pura
que desafiam gênios há tempos sem resposta, como as Equações de Navier-Stokes (que valem mesmo U$1 milhão para quem
descobrir a resposta).
A belíssima cena em que a atriz Uma Thurman leva os três filhos pequenos para conhecer a cama na qual o pai deles está transando com a amante é uma das melhores que já vi. De uma intensidade dramática e de uma tensão latente que fica mais impactante diante da frieza das seis pessoas que estão presenciando o espetáculo grotesco. Uma chama de calor, amor e fúria perdida debatendo-se contra uma massa de gelo humano: a melhor cena do filme, na minha opinião.
Para Lars von Trier, o sexo em Joe é
fruto de sofrimento, de pecado e de busca incessante do prazer. Ela se vê como
uma pessoa má, que usa os homens para sua próprio gratificação e chega mesmo a ficar intensamente lubrificada ao
ver o corpo do pai morto. A ideia de pecado permeia toda a sua obsessão.
É, no mínimo interessante, lembrar um
filme recente que aborda o mesmo tema, mas sob o ponto de vista masculino. Em
Shame, com o excelente Michael Fassbender, estamos diante do mesmo caso de
vício em sexo e em ambos os filmes os personagens, como acontece com viciados em
geral, precisam se afastar de qualquer sinal de afeto para se dedicar à
impessoalidade do sexo compulsivo. Todas as energias são voltadas para a
realização desse desejo sem freios que, em certo momento, começa a exaurir as
forças do dependente até levá-lo a um fim trágico, caso não se submeta a um
tratamento.
A diferença entre os filmes é que o vício em sexo na mulher é abordado de modo radicalmente diferente
do mesmo vício em um homem. As semelhanças param em um ponto e as diferenças
continuam. Na mulher tudo é mais complexo, a culpa, o autodesprezo, a
ideia de pecado, de não atender às expectativas dos outros. Há uma constelação
de variáveis que fazem lembrar o velho Freud e sua definição de “continente
obscuro”.
O pior é que talvez Lars von Trier esteja
certo e as estripulias sexuais de Joe reflitam seu perigoso flerte
com o dilema de Eros/Tânatos, novamente relembrando a definição de Freud de Eros como a libido, o impulso vital, instinto primário de
autoconservação e Tânatos como a personificação mítica da pulsão de
morte, impulso inconsciente que busca a própria destruição. A religião tem um papel crucial nesse dilema, mas pelo jeito o diretor não adentrou ainda essa relação, quem sabe adiante.
Finalizo lembrando que essa
é somente a primeira parte do filme. Pode ser que venha coisa mais ousada pela
frente, mas até aqui Ninfomaníaca oferece incômodo, sombras, densidade,
curiosidade e, apesar de todo o sexo exibido na tela, um certo fastio e nenhum
erotismo de verdade. Só o vislumbre da busca de sentido em um continente
obscuro. Por isso tem gente deixando as salas quando percebe que, após 38 falos
flácidos de todas as cores e tamanhos, não está se excitando. Que homem safado
e genial esse dinamarquês!
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