17.1.13

As Aventuras de Pi e Os Deuses Multifuncionais



     O diretor Ang Lee, com seu impactante filme As Aventuras de Pi, levou a película a receber o segundo maior número de indicações para o Oscar 2013 (11), só perdendo para Lincoln, de Steven Spielberg, que disputa em 12 categorias as estatuetas no próximo dia 24 de fevereiro.

Na recente prévia do Oscar, o Globo de Ouro, As Aventuras de Pi disputava em três categorias, mas só ganhou o troféu pela Trilha Sonora.

Chamar de versátil o diretor taiwanês Ang Lee é reduzir demais suas excelentes características. Ele foi capaz de dirigir desde filmes com temática oriental como A Arte de Viver, Banquete de Casamento, Comer, Beber Viver e O Tigre e o Dragão; dramas íntimos como Tempestade de Gelo e O Segredo de Brokeback Mountain; filmes com foco em histórias de época dos Estados Unidos como Cavalgada com o Diabo e Aconteceu em Woodstock e até uma adaptação de HQ como Hulk.

As Aventuras de Pi é um filme que agradará a vários públicos: aos que adoram um filme em 3D, àqueles que gostam de ver uma história com final feliz ou piegas e àqueles que gostam de filmes que trazem uma mensagem edificante ou espiritual.

Dito isto, não posso negar que a história é bem contada, com uma direção segura, mesmo com um ranço da tal “mensagem”. A fotografia é deslumbrante e a trilha sonora é perfeita e, inegavelmente, o diretor conseguiu fazer bom proveito do efeito 3D, se bem que eu dispensaria tudo pelo velho e bom 2D com uma história mais densa e menos rasa do que um balde de água.

São exuberantes as imagens em computação gráfica do cardume gigante de peixes-voadores, do mar iluminado por milhares de águas-vivas, da imensa baleia que quase provoca um segundo desastre e, lógico, do tigre totalmente digital, mas de um realismo impressionante.

Até que é boa a atuação do adolescente Pi (Suraj Sharma) que no filme tenta imigrar da Índia para o Canadá com os pais e os animais do zoológico da família quando o navio em que viajavam naufraga e ele tem que dividir um bote com um tigre de Bengala. Já o Pi adulto não tem qualquer carisma.

Como tenho enjoo por qualquer influência religiosa, passei a implicar com o personagem assim que ele adere a todas as religiões sem fazer qualquer análise crítica sobre as contradições entre cada uma delas. Ele acredita, simultaneamente, em Buda, Krishna, Alá, Jesus e Jeová e tudo isso antes mesmo de precisar de qualquer um deles, pois sua múltipla conversão se dá antes do naufrágio.

Essa jogada do roteiro é uma releitura espertinha, reinterpretação indireta do recurso velhusco e conhecido em dramaturgia pela expressão latina “deus ex-machina”, em português “Deus surgido da máquina”, muito utilizado na tragédia grega e que permite que uma divindade surja no meio de uma história, para dar um determinado sentido à narrativa. O “deus ex-machina” era a chave mestra artificial que servia para tudo quando uma história não tinha uma solução natural. Muitas peças gregas eram finalizadas com um personagem que se travestia de sobrenatural descendo do teto pendurado numa corda.

Este recurso é muito criticado, pois cria uma solução forçada para uma trama. Dramaturgos e críticos sérios afirmam que personagens não devem depender de uma intervenção para a solução de uma história. O próprio Aristóteles era um crítico dessa artificialidade. Segundo ele: “toda tragédia deve ser verossímil, sem causalidades ou intromissões que fujam do real cenário dos acontecimentos”.

Pois olha só o que o esperto do Ang Lee fez: botou seu herói Pi para adorar TODOS os deuses. Assim ele garante, quando Pi está à deriva e quase morto, que ele possa pedir a ajuda de todas as entidades sobrenaturais, atenda ela pelo nome que for. A história é vendida todo o tempo como uma jornada de um garoto que só se salva da morte pela intervenção de um ser superior. Só para garantir Pi confia em todos eles. Ele nem se questiona ao final por que esse tal ser, que ele acredita ter sido seu salvador, matou afogados todos os tripulantes do navio, toda sua família e todos os inocentes bichos do zoológico.  

Talvez tenha sido Deus, talvez tenha sido Jeová, talvez tenha sido Alá....Enfim, o acaso não existe e a pura sorte é algo sequer imaginado.

É estranho, pois uma boa sacada do final do filme e a reflexão sobre o poder da imaginação. Então, pergunto: por que a imaginação não serviria também para refletir sobre a ilusão da intermediação divina nos destinos humanos?

Não nas mãos de Ang Lee, que era agnóstico e passou a rezar depois da fadiga de quatro anos trabalhando nesse filme. Mais uma razão para eu ficar com o pé atrás e lembrar a famosa frase de John Lennon, ateu militante: “Deus é algo pelo qual o homem mede a sua dor”.

Eu até aceitaria se o pobre Pi, no seu desespero de náufrago, caso dispusesse dela, se apegasse até a uma bola de basquete com o nome de Wilson, como outro náufrago famoso, encarnado por Tom Hanks, fez. Enfim, não engoli tamanha afetação por conta da ilusão de tantas divindades multifuncionais.

Mais honesto é o excelente filme, também em cartaz, “O Impossível”, com Naomi Watts e Ewan McGregor, que mostra a história real de uma família quase esfacelada pelo tsunami que matou mais de 200 mil pessoas na Tailândia em 2004. A família se vê no meio da catástrofe e se salva por muito pouco, graças a um misto de sorte e esforço gigantesco de cada membro dela (os pais e seus três filhos). Em momento algum se vende ao espectador a ideia de que houvesse um deus protegendo exatamente aqueles 5 enquanto outros 200 mil não foram tão abençoados.

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