O que leva duas pessoas,
supostamente normais, que, podendo desfrutar de vinte dias no verão em uma
praia ensolarada, se submetem ao inverno mais rigoroso já registrado nas últimas décadas na
Europa?
A ideia parecia arriscada. Todos
preocupados com nossa saúde: “O que vocês vão fazer na Alemanha num frio
desses?”; “Não acham melhor deixar para a Primavera?” Essas foram algumas das frases
que minha amiga Nete e eu ouvimos, mas quando é que se encontra a companhia de
uma amiga nota 10 para uma viagem de graça com milhagens aéreas e hospedagem
free?
Nem o frio de 7 graus negativos nos impediu de
desfrutar de 19 dias entre Dusseldorf, Berlim e Colônia e um diazinho em Lisboa
com uma temperatura ótima de 17 graus
Nossa escala inicial em Lisboa,
no dia 30/12, foi esquisita. Duas horas de intervalo para o check in da
companhia aérea alemã que nos levaria para Dusseldorf foram quase
insuficientes, pois de todos os aeroportos que já conhecemos, o de Lisboa é o
mais irracional.
Os atendentes são tão mal
humorados e tudo é tão confuso que parece que não foi concebido como aeroporto
ou foi sendo ampliado por arquitetos autistas, engenheiros bipolares, pedreiros
míopes...
No meio dessa barafunda, somos
surpreendidos por um som altíssimo e atendentes da TAP e público, subitamente, dançando
no saguão ao som de ABBA, Madonna, Jorge Benjor...Um flash mob! As imagens
estão no Youtube!
Finalmente, embarcamos na
Germanwings, que vende passagens mais baratas, mas cobra até pela água a bordo.
Em duas horas estávamos em Dusseldorf. No dia seguinte era Reveillon.
RÉVEILLON COM OS GERMÂNICOS
Noite de réveillon em uma cidade
vizinha a Dusseldorf: quatro alemães, três brasileiros, uma portuguesa, duas
crianças, um agitado cachorro border collie e um gato magro de 18 anos. E,
claro, muito vinho, champanhe e cerveja.
Todos bebem por horas e a mesa fica
repleta de tanta bebida e comida que não tinha espaço para mais um alfinete. Várias
panelas de fondue (idal para aquele frio) e dezenas de molhos, pães e
batatas...Alemães não sobrevivem por muito tempo sem as suas batatas.
Todos ficam altinhos no decorrer
do jantar. Sem muito assunto, imagino que contando piadas poderia me integram mais,
mas os alemães não aprovam piadas. Não se pode fazer piada de judeus, por
motivos óbvios; nem de português, pois havia uma portuguesa à mesa; não dava
para fazer piada com bêbado, pois estavam todos meio bêbados; nem com loura,
havia uma loura por lá; não podia fazer piada de humor negro ou politicamente
incorretas, o que, convenhamos, é a essência de qualquer piada...Nete encontrou
nas duas crianças uma forma de diversão com um jogo eletrônico do qual jamais
ouvi falar. Perdeu todas as partidas para as meninas.
À meia-noite todos saem para
soltar fogos. Os vizinhos tiveram a mesma ideia e a noite abaixo de zero ficou iluminada
por belos fogos de artifício enquanto a neve começava a cair. Na volta para
dentro da casa, as piadas foram liberadas e por mais de uma hora dançamos
todos, com as crianças e o cachorro incluídos, sucessos dos anos 80. Um dos
alemães usava uma farda da Enterprise e fazia a todo instante o gesto do Sr.
Spock com os dedos.
Se água mineral embriagasse eu estaria
em coma alcoólico. Minha abstinência deveu-se ao fato de que fui escolhido para
dirigir o carro dos nossos anfitriões na volta para Dusseldorf. Detalhes: nunca
havia dirigido na Alemanha, ainda mais um carro automático, com GPS em alemão e três pessoas que
beberam tonéis de vinho me guiando na estrada. Que gente corajosa!
Eram quatro da manhã quando
chegamos inteiros em casa, cruzando estradas repletas de neve no primeiro dia
do nosso primeiro ano novo na Alemanha.
ANO NOVO NA ALEMANHA
No meu primeiro domingo em
Dusseldorf esperava sair da cama após o meio-dia, mas minha anfitriã me acordou
às 9h da madrugada para ajudá-la a retirar a neve acumulada durante a noite sobre
sua calçada. Por lá, se o proprietário de uma casa não limpar a neve da sua
calçada antes das 10h da manhã pode receber uma pesada multa. Os vizinhos já
tinham todos limpado as suas.
Com uma pá e uma vassoura de
metal retiramos toda a neve da calçada e jogamos sal para não virar gelo. No
cinema a neve é linda, mas vá retirá-la, já endurecida, com uma pá e uma
vassoura em pleno domingo antes do café da manhã e saído de uma cama quentinha.
Minha amiga Nete dormiu como um bebê e foi poupada dessa tarefa.
Por outro lado, ela não teve essa
história para contar.
Mas o domingo revelou-se um dia de
luxo, pois no final da tarde desfrutamos de horas agradáveis num imenso complexo
de piscinas térmicas: Dusselstrand, com
o tamanho de três campos de futebol, várias piscinas aquecidas a 28° (na rua
fazia 4 graus negativos), uma piscina olímpica, muitas jacuzis que massageavam com jatos d’água
os ombros e as costas, toboáguas de diferentes tamanhos, saunas e lanchonetes.
Tudo isso por menos de 4 euros por pessoa. Ainda havia lanchonetes para os clientes e vários tipos de frequentadores, homens, mulheres e famílias com crianças de variadas idades.
Uma das coisas que me chamaram a atenção é que havia saunas para homens, para mulheres e saunas mistas mas o comum em todas elas é que a pessoa tinha que entrar sem toalha. Nua mesmo. Esses alemães são danadinhos!!!
Um luxo num domingo que não
prometia muito quando, naquela manhã, fui acordado faminto para trabalhos forçados
de limpeza de neve.
COLÔNIA
Reencontrei, após 15 anos,
a enorme catedral gótica de Colônia, local onde a Igreja crê estão enterrados
os 3 Reis Magos. Nete e eu a visitamos a catedral na véspera do Dia de Reis e por isso ela estava ainda mais elegante com iluminação realçada. Seus vitrais são famosos
pela incomparável beleza.
Durante a segunda guerra mundial a cidade de Colônia foi praticamente arrasada pelos bombardeio dos aviões aliados, mas incrivelmente a catedral não foi danificada. Há painéis de fotos que mostram a cidade destruída, casas bombardeadas em volta dela, mas a catedral sobrevivendo, cercada de ruínas.
A catedral tem estrutura gótica
impressionante e praticamente é vista de toda a cidade que foi, durante o Império
Romano, colônia de Roma, daí seu nome. A região inteira fica sobre sítios históricos.
As escavações encontram termas romanas, palácios e sinagogas.
Após o passeio pelas ruas de Colônia e uma visita à imensa catedral, nada melhor que alimentar
os corpos famintos. Finalmente, comi eisbein, um enorme joelho de porco cozido.
Vem com batatas, como praticamente tudo na Alemanha e um molho parecido com o de churrasco. Na foto ao lado você pode ver, mas não pode imaginar quão delicioso é.
Um passeio no museu do chocolate, em seguida, foi
uma boa ideia. Num café do museu, ao lado de grandes janelas, contemplamos o Reno e degustamos chocolate quente, o que
combinava com o frio. Ao nosso lado, uma linda vista de Colônia e do rio cortado
por pontes e embarcações.
BERLIM!
Na metade da nossa viagem, chegamos à antiga
capital da Alemanha Oriental com sete graus negativos e sensação térmica muito
inferior, pois Berlim é repleta de avenidas larguíssimas e muitos parques, além
de um rio, o Speer, que a corta inteira.
Foram seis horas de viagem desde Dusseldorf
pelas perfeitas autobans, as estradas alemãs. Foi uma boa ideia termos feito a reserva prévia
do Holiday Inn pela internet. É um excelente hotel 4 estrelas, localizado na gigantesca e movimentada Alameda Prenzlauer, que
atravessa toda Berlim.
Mas, se sonhávamos com duas camas
quentinhas, após uma longa viagem, nossos anfitriões tinham outros planos gelados para nós.
Viajar com um casal de gourmets é
uma experiência única. O mundo dos gourmets é algo à parte e gira em um eixo
diferente. Os valores são todos gustativos e eles preservam minúcias de sabores.
Há códigos próprios e sutilezas incompreensíveis para as línguas dos mortais.
Para eles, pagar caro é pagar por uma comida de que não gostaram, mesmo que seu
preço seja um décimo do gasto em um prato de que gostaram.
Para nossos anfitriões gourmets, não havia programa melhor do que sair em Berlim à noite, caminhar quase uma hora
num frio de rachar, debaixo de neve e sobre ruas congeladas, para chegar a um
restaurante de que gostam.
Para essa tarefa, enfrentamos
gelo, frio e vento por ruas semidesertas…e eu me perguntando o que faziam nas
ruas, naquela temperatura, as raras pessoas
com quem cruzávamos…não podiam ser todas gourmets.
No nosso primeiro jantar em Berlim comemos um
prato especial, feito de peito de faisão, nhoque romano (que não é feito de
batata, mas de trigo), codorna ao forno, recheada de fígado de galinha, acompanhada de raízes negras, um tipo de raiz saborosíssima que não se
encontra no Brasil. Como sobremesa, uma tortinha de pão com recheio de mirtilo
e sorvete de uma frutinha que tem umas 200 letras, sendo que metade são
consoantes e a outra metade, vogais guturais salpicadas generosamente com
tremas. Mas como gourmets não são seres simples, o sorvete era feito não da
frutinha, mas da flor da plantinha que dá a fruta, que se chama hollunderbluetten. Bem, não são
exatamente 200 letras, mas experimente falar isso sem deslocar a língua.
O MUNDO DOS GOURMETS
Imagino que há três razoes básicas pelas quais os
alemães pensam tanto em comida: a primeira, histórica; a segunda, climática; e a
terceira, econômica. Eles passaram muitos problemas com as guerras e tinham que
comer quando havia comida. No país faz muito frio e eles precisam comer para
repor as energias perdidas pela baixa temperatura. Além, é claro, que muitos deles têm dinheiro
de sobra para gastar comendo coisas variadas, com uma infinidade de opções de
queijos, pães, vinhos e doces muito sofisticados.
A nossa segunda noite em Berlim desafiou todos os
meus limites. Saímos no frio congelante para uma região ao lado do Rio Spree,
que canalizava o vento que já era gelado, dando na gente uma sensação de
desespero. Por que as coisas têm que ser sempre tão complicadas para mim? Por
que não dava para comer um suculento e simples Big Mac?
Mas a noite foi além de todas as expectativas,
tanto no sofrimento para chegar no restaurante, quanto no resultado. Quase
quando eu estava sucumbindo ao desespero e à fome e implorando por um táxi ou um abrigo, chegamos ao
Bertold Brecht, restaurante onde fomos servidos como reis. Começando com uma
sopa hiper cremosa feita de raízes
negras e raviólis de frango. Como cortesia da casa, uma entrada sofisticada com
uma polentinha feita com trufas e com espuma de ervas raras. O prato principal
foi uma deliciosa vitela empanada, peixe branco com alho poró e batatas
recheadas com camarões. A sobremesa foi o golpe mortal: mousse de chocolate
amargo com sorvete de pimenta, gomos apimentados de mini-tangerinas, framboesas
e amoras.
De tanto comer achei
que tinha engordado e encontrei uma balança. Meu peso normal é 77 quilos, mas
na balança marcava 79. Não deu para saber se emagreci ou engordei, pois só as
roupas de frio que eu usava deviam estar pesando 5 quilos: dois cachecóis,
um par de luvas, um gorro, uma calca jeans, uma calca de lã interna para o
frio, uma camisa pólo, outra camisa de manga comprida, um pulôver e um casaco
para neve.
ÚLTIMO DIA EM BERLIM
No nosso último dia em
Berlim, sexta-feira, Nete e eu tiramos parte da tarde para conhecer os famosos
museus históricos da cidade. Passamos horas de puro deleite em um conjunto de 5
museus de Berlim localizado numa ilha do Rio Spree. Falando assim, uma ilha do
rio, pode parecer pouca coisa, mas é um conjunto de cinco prédios gigantescos,
magníficos, em estilo neoclássico com estátuas e colunas imensas. Tudo tombado
pela UNESCO como patrimônio da humanidade. Parecia que estávamos em uma ágora grega pelo numeroso conjunto de edifícios majestosos.
Eu imaginava que para
ver tantos museus precisaria me deslocar longas distâncias. Em Nova Yorque , o
Metropolitan e o Guggenhein ficam próximos, na mesma rua, mas o Museu de História
Natural, o MOMA, o Museu The Cloisters e o Frick Collecion, por exemplo, ficam
bem separados. Em Paris, não se vai do Louvre ao D`Orsai ou do Museu Rodin ao
Museu Picasso andando facilmente. Em Londres, a Galeria Nacional fica afastada
do Museu Britânico e em Madri, o Museu do Prado fica longe do Reina Sofia. Mas
em Berlim ficam concentrados na Museums Insel o Bode Museum, o Neues Museum, o
Alte Nationalgalerie, o Pergamonmuseum e o Altes Museum.
Saímos banhados numa
impressionante coleção de arte grega, romana, pré-histórica, egípcia, em
galerias extremamente elegantes, bem iluminadas, com bastantes informações em
inglês e não só em alemão. Assim, Nete e eu conseguimos ler e entender. Eram
pátios internos monumentais, estátuas imensas de todos os deuses gregos,
conjuntos de objetos de mármore, salas só para objetos de ouro, outra apenas
para os de prata, outra só para filosofia, com bustos dos grandes filósofos,
dramaturgos e políticos como Sócrates, Platão, Aristóteles, Zenão, Aristófanes,
Sófocles, Ésquilo, Eurípedes, Péricles, Heródoto, Hesíodo... Inúmeras ânforas e
adereços, joias, colunas coríntias, dóricas e jônicas, instrumentos musicais.
Foi um banho cultural.
No Alte
Nationalgalerie se concentram as pinturas e esculturas dos séculos 19 e 20.
Salas e mais salas em três andares com esculturas de Rodin e pinturas de
Cézanne, Degas, Van Gogh, Gauguin, Manet, Renoir, Monet.
O mais interessante
para mim foi conseguir ver ao vivo o Busto de Nefertiti, uma estátua da rainha
egípcia que no Neues Museum tem uma sala exclusiva para ela e é a peça mais
importante de todo o conjunto. Em todas as salas se pode fotografar sem flash,
mas na sala de Nefertiti as máquinas são proibidas. A foto abaixo é da internet. Ela é a Mona Lisa dos
alemães e, talvez, seja um obra de fato mais importante do que a Mona Lisa em si,
apesar de não ser tão famosa.
A visita ao Neues
Museum tem que ser agendada, pois ele é tão especial que só comporta um
determinado número de visitantes pode vez. Na portaria, sem que eu perguntasse
nada, uma atendente, gentilmente, me deu um mapa do museu em inglês já com o
local marcado onde encontraríamos o Busto de Nefertiti. Certamente a moça está tão
acostumada com isso que já vai no automático. Ótimo, pois era exatamente o que
estávamos procurando.
Não vou entrar em
muitos detalhes sobre essa magnífica peça. O mais significativo, para mim, foi que três meses antes, em São
Paulo , quando sequer pensava em visitar a Alemanha, comprei
num sebo da Rua Augusta um livro da intelectual americana Camille Paglia que há anos estava
procurando sem sucesso, já que está esgotado: Personas Sexuais - Arte e
Decadência de Nefertiti a Emily Dickinson.
Há um capítulo inteiro em que Camille Paglia
analisa, com profundidade, o significado simbólico dessa peça para o imaginário
do feminino moderno, comparando-a às obras de arte anteriores que representavam
a mulher como matronas gordas e peitudas, símbolos atávicos da mãe terra. O capitulo inteiro é brilhante de um livro todo brilhante. Deliciado
com a leitura, pude finalmente estar diante do busto verdadeiro. Um privilégio.
Após a visita aos
museus, fomos a pé quase ficando congelados no frio e no vento para reencontrar
os nossos anfitriões no Checkpoint Charlie que era um posto militar dos aliados
durante a Guerra Fria e hoje é uma zona de turismo com diversas lojas vendendo
souvenires com referência ao muro de Berlim. Os visitantes disputam fotos embaixo da
placa que diz em inglês, russo, alemão e francês que aquele local separava a
Alemanha Ocidental da Oriental.
Eu não sabia o que
significava o Charlie no nome do Chekpoint Charlie. Achava que era o nome de um
soldado que foi importante para a resistência ou algo do gênero até porque há
uma grande foto de um soldado exatamente no local em que tem a réplica de uma
cabine de controle dos aliados.
Vi um casal de brasileiros no local tirando
fotos e seu filho adolescente perguntar para a mãe quem era o tal Charlie. Ela
respondeu apontando para a foto do soldado. O filho retrucou: sim, mas o que
foi que esse Charlie fez para merecer a homenagem?
Não deu para ouvir o que a
mãe respondeu, mas certamente ela não deu a resposta certa porque o nome
Charlie não tem nada a ver com o soldado. Pesquisando no Google descobri que
havia três checkpoints: Alpha, Bravo e Charlie, de acordo com o alfabeto
fonético internacional.
VIOLÊNCIA
Deixamos Berlim para
trás e chegamos a Dusseldorf após sete horas de viagem de carro. Cruzamos o Rio
Elba congelado, dezenas de caminhões limpadores de neve das estradas passaram
por nós e, no rádio, acompanhávamos, tensos, as notícias da fortíssima nevasca
que isolou o norte do país.
De volta a Dusseldorf, passamos em um supermercado quando presenciamos uma das cenas mais estranhas
que já vi. Nossa anfitriã, que mora há 15 anos na Europa, nos disse que nunca
viu algo do tipo por lá.
No grande supermercado em que fazíamos as compras, havia um silêncio sepulcral, ainda mais num sábado em que lá fora faziam 2 graus
negativos. Foi quando nossa atenção foi atraída por uma gritaria. Naquele
silêncio, os gritos pareceram surreais. Então, passou por nós um homem negro
correndo em alta velocidade. Passou ao nosso lado, tão perto que podemos
reparar nos seus olhos enormes, assustados, como um animal perseguido. Atrás
dele vinham dois homens louros, germânicos, saudáveis, fortes. O que significava aquilo não nos era
compreensível no momento.
O negro tentava
escapar de alguma coisa, talvez tivesse roubado algo no supermercado. Os dois
homens brancos que o perseguiam gritaram e dois outros, à frente, estenderam as
pernas derrubando o negro no chão. Ele se levantou com uma agilidade
impressionante atirando-se na direção da porta automática que se abriu para ele
sair para o meio da rua e da neve. Eram duas portas automáticas para proteger o
interior do frio. A cena foi estranhíssima. As duas portas ficaram se abrindo e
se fechando enquanto, no espaço entre elas, quatro homens brancos e fortes se debatiam no
chão com um negro que tentava, a todo custo, escapar deles. Ele talvez fosse algum
imigrante ilegal, talvez soubesse que sua fuga poderia significar sua
permanência naquele país gelado, talvez tivesse certeza de que uma prisão
representaria uma deportação...
Ele se debatia, as pessoas se aglomeravam em volta. Ninguém
falava nada...um silêncio assustador. Nenhum dos quatro brancos dizia ou
gritava coisa alguma. O negro também, aparentemente, economizava energia para a
fuga. Só se ouvia o som das portas se abrindo e se fechando, se abrindo e se
fechando repetidas vezes. Toda a cena tinha um conteúdo simbólico
impressionante. Lembrava uma caçada, um animal tentando escapar de uma armadilha...e
em volta, vários alemães assistindo a tudo de mãos dadas com os seus filhos, como num processo
educativo e pedagógico. Ou simplesmente pelo ineditismo da cena.
Parei de olhar quando
começaram os socos.Os homens brancos socavam com forca o rosto do
negro. Entendi que a coisa ultrapassou a esfera profissional pois os brancos não
estavam mais simplesmente defendendo o patrimônio ou a lei, mas reagindo a
alguém que, mesmo praticamente dominado, insistia em tentar fugir...passou para
o pessoal quando a fuga representava ferir os brancos..
O sábado foi marcado
por essa cena dantesca e saímos a tempo de ver a policia levar o homem
dominado.
Minhas amigas não
concordam com meu ponto de vista. Acham que eu estou com uma interpretação
tendenciosa e que o negro não era totalmente inocente, mas um transgressor. A
visão da cena foi compartilhada por nós, mas com pontos de vista diferentes.
DE VOLTA A DUSSELDORF
Fomos ao nosso primeiro museu em Dusseldorf, o
Aquazoo, um enorme museu de história natural que fica em um parque gigante
coberto de neve. Vimos, maravilhados, diversos aquários com pinguins, tubarões,
enguias, crocodilos, tartarugas, todos vivos, e várias salas com ambientes
marinhos repletos de todos os tipos de peixes e corais multicoloridos. Eles
reproduziram em detalhes o ambiente de uma floresta tropical com ariranhas,
pequenas cascatas de rio, laguinhos e uma infinidade de répteis, anfíbios,
insetos e mamíferos. Centenas de cobras, aranhas, mariposas e borboletas.Tudo
extremamente didático com textos em alemão e inglês na altura dos olhos das
crianças. Há uma ala de dinossauros de que gostei bastante, como dá para ver na foto.
No dia seguinte conhecemos o Gazometer, um antigo depósito de gás, uma
enorme estrutura de ferro, de mais de 100 metros de altura e
quase 70 de diâmetro, na verdade o maior gasômetro da Europa, construído nos
anos 30, hoje abriga uma espécie de planetário. Foi severamente bombardeado
durante a 2ª Guerra e funcionou até 1988 quando foi transformado em local de
exibições. Fica a meia hora de carro de Dusseldorf. Lá dentro fazia um frio do
cão, pois deve custar muito caro aquecer aquele lugar.
Em um enorme vão aberto, réplicas dos satélites da NASA, dos primeiros
módulos lunares, painéis ilustrando a história das primeiras descobertas dos
primeiros astrônomos egípcios e persas, além dos mais famosos: Galileu,
Copérnico, Kepler, Giordano Bruno e seus rudimentares aparelhos de observação
das estrelas. Também reproduções de todos os planetas ao redor do nosso sol,
fotos imensas da via láctea e das luas dos planetas do nosso sistema solar,
todas tiradas pelo telescópio Hubble e o grande destaque foi uma lua de 25 metros de diâmetro que
pendia do teto, como se flutuasse no
espaço.
Depois dessa orgia de informações precisávamos de um banho quente e nada
melhor do que uma piscina aquecida. Desta vez fomos a uma outra, diferente da
que visitamos no nosso primeiro domingo aqui: Muensterbad.
Não e como a anterior, um parque aquático, mas um prédio imenso, com pé
direito altíssimo, uma única piscina de 50 metros , 72 cabines
individuais com armários distribuídas em dois níveis.
No térreo fica a piscina e a sauna. Na parte de cima, como um mezanino que
rodeava toda a piscina, a outra metade das cabines. O teto altíssimo
demonstrava que o prédio era muito antigo. Foi construído em 1908, portanto tem
mais de 100 anos. Obviamente, sofreu com os bombardeios nas guerras e foi
restaurado, mas a estrutura básica permaneceu, com a fachada de tijolos
aparentes e várias janelas e claraboias dando para o céu.
Do lado de fora do prédio, num pátio externo, havia uma piscina com água
quente e salgada, mas para chegar lá tínhamos que atravessar uns 20 metros de frio, molhados e descalços. Mas
pareciam uns 50 metros .
Enfrentamos o frio e nos atiramos na direção da piscina externa e valeu a pena.
A água quente, em contato com o ar gelado, formava uma nuvem de vapor
pairando sobre nós. A neve caía em finos flocos sobre nossas cabeças enquanto
desfrutávamos da calor da piscina. A luz das luminárias dos postes exteriores, cobertas
pelo vapor, criou uma atmosfera muito especial e única, quase fantasmagórica: exatamente do que
estávamos precisando.
Na quinta feira, Nete e eu pegamos o metrô e fomos conhecer o
Knunst Palast, um grande museu nas margens do Reno e que ocupa três enormes
alas com obras de arte antigas e modernas. Uma das alas abrigava um conjunto
fantástico de esculturas sacras em madeira da Idade Média e pinturas
representativas do expressionismo alemão.
Também conhecemos a parte do museu que abrigava uma imensa coleção de obras
de arte moderna e esculturas feitas unicamente de vidro. Um tanto conceitual,
com elementos óticos e cromáticos muito interessantes. Essa parte do museu
também tem milhares de vasos de vidro de todas as épocas, acompanhando a
história dos primeiros objetos em vidro, desde os gregos e persas, quando eles
ainda não dominavam completamente a arte do vidro e as pedrinhas vitrificadas
eram consideradas joias.
Acompanhamos a evolução dos vasos de vidro desde os seus primeiros
exemplares até os requintados jarros e copos decorados do Renascimento europeu,
dos vasos decorativos com incrustações e pinturas de reis, rainhas e nobres
aristocratas e exemplares chineses. Eram dezenas de vitrines e prateleiras com
milhares de objetos de vidro que nos deixava até tontos.
Depois desse passeio fomos passear na beira do Reno. O frio estava
diminuindo, mas ainda ventava muito, a neve já estava descongelando e as
pessoas passeavam sozinhas ou aos pares pelo lugar que ainda tinha um tanto de
neve mas já alguma lama e poças de água.
Observamos que os alemães têm uma consciência ecológica muito grande e em
muitos lugares vemos depósitos de vidro onde eles colocam vidros usados,
chegando ao requinte de ter três recipientes grandes para vidros brancos,
verdes e escuros. Eles até criaram um prêmio chamado Trenntwende, um trocadilho em alemão com as palavras tendência, separação e transformação para iniciativas que reduzem o desperdício
Comprovei que há muitos turcos na Alemanha. Mas o que impressiona é que após três gerações de imigrantes, os netos dos primeiros turcos que chegaram têm atitudes e comportamentos mais próximos dos europeus do que dos seus pais e avós, inclusive reduzindo muito o número de filhos. Quanto melhor o padrão econômico e educacional, menos filhos os imigrantes têm.
Os alemães aparentemente, não conhecem as cores, são todos meio daltônicos(?). Nas ruas, todos os agasalhos que se veem são pretos, marrons, beges ou cinzas. Eles desconhecem o verde, o azul, o laranja, o vermelho...Um mar de gente agasalhada de cores pastéis.
Reparei também que todo mundo fica mais charmoso com um cachecol!
No sábado, nossos anfitriões fizeram para nós um jantar de despedida como somente os gourmets sabem fazer. Na verdade, todos os dias havia um jantar especial. Não ousaria tentar descrever os detalhes dos cardápios, pois sei que não conseguiria. Mas sei que Cândida e Carsten foram os melhores anfitriões que poderiam existir. Nos levaram ao aeroporto para uma despedida da
Alemanha que nos deixou saudades e onde fomos extremamente bem recebidos e tudo
deu certo, mesmo com o que nos cobraram no aeroporto de Dusseldof pelo excesso de bagagem.
DE VOLTA A LISBOA
Chegamos a Portugal e em 15 minutos de táxi e 17 euros estávamos no Hotel Lisboa, reservado pela intenet. Ficamos muito bem localizados, ao lado da grande Avenida Liberdade, pertinho do imenso monumento ao Marquês de Pombal na praça de mesmo nome. Menos de 80 euros a diária com direito a café da manhã.
Após dois banhos rápidos, uma vez que só ficaríamos na cidade por um dia, saímos a pé em direção ao bairro de Belém. Descemos a Avenida Liberdade em direção as praças dos Libertadores e da Figueira já no bairro do Rossio. Ali, tomamos o elétrico 15 e passamos pela Baixa, pelas ruas da Alfândega e do Arsenal, pelo Campo das Cebolas, avenida Ribeira das Naus já na beira do Rio Tejo, pelo Cais do Sodré, Alcântara, Junqueira e, finalmente, chegamos a Belém.
Obviamente, não poderíamos perder a oportunidade de comer o legítimo
pastelzinho de Belém no local original onde eles são feitos desde 1837. O local é muito concorrido e cheio de turistas. Nos entupimos dos deliciosos pasteizinhos acompanhados de saborosos bolinhos de bacalhau. Nada mais português.
Depois seguimos para o Monumento aos Descobrimentos, na beira do rio Tejo, conhecido como Padrão do Descobrimento. Subimos de elevador até o topo, onde tiramos lindas fotos do rio, do Mosteiro dos Jerônimos, do belo jardim da Praça do Império e da Torre de Belém.
Não conseguimos entrar na Torre de Belém, pois já estava fechada às 5 da tarde, mas entrar no Mosteiro dos Jerônimos foi indescritível e comprovamos como ele é espetacular com enormes abóbadas, colunas e transeptos. É lá que estão os túmulos de Fernando Pessoa, Vasco da Gama e Luis de Camões, entre várias outras personalidades famosas de Portugal.
Não conseguimos entrar na Torre de Belém, pois já estava fechada às 5 da tarde, mas entrar no Mosteiro dos Jerônimos foi indescritível e comprovamos como ele é espetacular com enormes abóbadas, colunas e transeptos. É lá que estão os túmulos de Fernando Pessoa, Vasco da Gama e Luis de Camões, entre várias outras personalidades famosas de Portugal.
O mosteiro foi encomendado pelo rei D. Manoel I depois que Vasco da Gama regressou da viagem à Índia. Construído com os lucros do comércio das especiarias, foi um dos poucos prédios que sobreviveram ao terremoto de 1755 que devastou Lisboa.
Já caía a noite quando tomamos outro elétrico de Belém até o Cais do Sodré e dali
fomos caminhando até o Largo do Chiado, atravessando ruas charmosas e cheias de restaurantes e lojas como a Rua Augusta, Rua Áurea e Rua Garret. No Chiado conhecemos o famoso bar A Brazileira, onde o
poeta Fernando Pessoa costumava se reunir com os amigos. Há uma estátua dele na
porta, ponto de fotografia para os muitos turistas. Corresponde, no caso brasileiro, à estátua de Carlos Drummond de Andrade na orla carioca. Há uma cadeira de bronze para as poses dos fãs e logicamente não dispensamos as
nossas fotos com o maior poeta português.
Depois do Chiado voltamos para o hotel com os pés destruídos e
contabilizando mais de 5 horas de bete pernas, turismo e compras.
No domingo, nosso último dia em Lisboa, acordamos com uma louca faxineira
entrando no nosso quarto as 8:30 da manhã. Quem e que faz faxina num horário
desses em pleno domingo? Tudo bem que não colocamos o aviso na porta de não
perturbe, mas como iríamos imaginar que alguém faria a faxina num horário
insano desses?
Aproveitamos o que restava da manhã para passear a pé pelas vizinhanças do
hotel, fomos ao jardim botânico, mas estava fechado, continuamos ate o Museu de Historia Natural com uma exposição sobre os dinossauros, sobre astronomia e
sobre minerais, mas não foi nada muito especial, pois havíamos visto museus melhores.
Valeu pela visita ao prédio que abriga uma universidade com um estilo que não
consegui identificar. Parecia um mosteiro com um pátio interno um tanto
abandonado e meio tomado pela grama alta.
Não entendi porquê, mas no museu há uma sala de arte contemporânea com uma placa identificando-a como Sala do Veado! Tenho uma foto com Nete fazendo pose para provar. Aí está!
Não entendi porquê, mas no museu há uma sala de arte contemporânea com uma placa identificando-a como Sala do Veado! Tenho uma foto com Nete fazendo pose para provar. Aí está!
A temperatura de 17 graus em Lisboa estava extremamente agradável se comparado ao
frio abaixo de zero que pegamos na Alemanha. Às duas da tarde estávamos inteirinhos no aeroporto, recebemos sem
problemas a devolução do dinheiro do tax free das compras que fizemos na
Alemanha e embarcamos sem pagar excesso de bagagem pela TAP.
Comprovamos também que os portugueses tem um estranho senso de localização e identificação. Há uma enorme placa no aeroporto de Lisboa dizendo: "Aeroporto de Lisboa, cada vez mais aeroporto". Hello!! Queriam que ficasse cada vez mais o quê? açougue? boutique? inferninho?
Comprovamos também que os portugueses tem um estranho senso de localização e identificação. Há uma enorme placa no aeroporto de Lisboa dizendo: "Aeroporto de Lisboa, cada vez mais aeroporto". Hello!! Queriam que ficasse cada vez mais o quê? açougue? boutique? inferninho?
Nove horas depois, a bordo da TAP, estávamos de volta ao calor da Bahia, onde as soleiras
das portas das nossas casas se revelaram mais belas do que todos os palácios
que visitamos.
É ótimo viajar!
É ótimo retornar!
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