Há algumas semanas, assisti ao aguardado
filme de Walter Salles: Na Estrada.
Por alguma razão, há dias, tentava escrever a respeito, mas havia tantas coisas
para dizer que batia um bloqueio. Talvez porque o filme me decepcionou um
pouco; talvez porque, na adolescência, maravilhado, li On The Road, livro de Jack Kerouac no qual o filme se baseia;
talvez porque sou fã de carteirinha dos filmes de Walter Salles: Central do
Brasil, Diários de Motocicleta, Abril Despedaçado e Terra Estrangeira, obras-primas
repletas de belas imagens, soberbas interpretações, montagens, fotografias,
direção e músicas primorosas. Então por que o bloqueio?
Salvou-me o texto sempre ininteligível
de Caetano Veloso na sua coluna do último domingo. Lá, o múltiplo Caetano diz
que não assistira ainda ao filme nem lera o livro. Ora, se o próprio Caetano (com
opinião sobre tudo) não opinou, por que eu deveria me sentir mal por não
conseguir escrever um artigo? Quem sabe no domingo seguinte Caetano já tenha
resolvido ambos os problemas: lido On The
Road e assistido a Na Estrada e
nos brinde com uma opinião em que se entenda ao menos um parágrafo?
Justiça seja feita: Caetano escreve
com o mesmo recurso de estilo de Jack Kerouac, os famosos fluxos de pensamento,
em que as ideias caem no papel diretamente dos dedos, sem a intermediação da
consciência crítica. Assim escreve o filho de Canô e assim também faziam os autores
que ele cita na sua coluna como preferidos: Allen Ginsberg, Gertrude Stein,
Marcel Proust, Scott Fitzerald, William Faulkner e James Joyce. Todos eles,
autores cabeções. Mas é impossível não rir quando o mano de Bethânia escreve
que Truman Capote declarou sobre On The Road: “Isso não é literatura, é datilografia”. O que diria o autor de
Bonequinha de Luxo e A Sangue Frio sobre os artigos de Caetano? Se houvesse
computador naquele tempo, a frase seria: “Isso
não é crônica, é digitação”. E Caetano gargalharia.
Mas, afinal, este não é um artigo
sobre Caetano, mas sobre Na Estrada e
está na hora de encarar o tema. Mas
antes faço eco a um questionamento feito pelo meu colega PC Alves quando
escreveu uma crítica sobre o filme: “Eu Receberia as Piores Notícias dos Seus
Lindos Lábios” na edição 422 do Falajuf, de 15/05
Segundo PC Alves, que lera o livro de
Marçal Aquino que originou o filme de Beto Brant: “A primeira questão diz respeito à adaptação de um livro para o cinema.
Até que ponto pode existir uma correspondência?” Concluindo que “cada arte tem seus códigos particulares,
mobiliza diferentes sentidos, estimula percepções diversas. Na transposição de uma
linguagem a outra, portanto, deve existir uma recriação, que pode ou não
alcançar o mesmo nível do original, ou até ultrapassá-lo”.
Era neste ponto que eu queria chegar. Foi o que mais me incomodou em Na Estrada. O filme de Walter Salles se
baseia num livro que marcou gerações, considerada a “Bíblia” Beatnik, texto seminal do movimento
sócio-cultural dos anos 50 e 60 que distinguiu um novo estilo de vida:
anti-materialista, musical e hedonista que flertou com o budismo, a liberdade
sexual, o consumo de drogas
Li On The Road na
adolescência, assim como milhões de outros jovens pelo mundo. A versão original, datilografada em
um rolo de papel de quase 40 metros foi considerada impublicável pela ausência
de vírgulas e parágrafos. A sua leitura foi uma experiência arrebatadora e dá
uma grande pena saber que muitas pessoas atingiram a idade adulta sem terem
lido On The Road na idade certa para
fazê-lo. Dificilmente o impacto causado em alguém mais velho seria o mesmo.
E muito mais dificilmente o filme atinge o impacto do livro. Sei que é
uma imensa responsabilidade para qualquer diretor adaptar para as telas uma
obra clássica, assim como aponta o colega PC Alves: na transposição de uma
linguagem para a outra deve existir uma recriação, que pode ou não alcançar o
mesmo nível do original. E aqui está uma tarefa inglória e impossível que
Walter Salles talvez tenha tentado abraçar em vão, como se desse um passo além
das pernas.
O filme talvez alcance,
afinal, dois públicos distintos: os fãs de Kerouac e os que não leram On The Road. Aos primeiros, é improvável
que a película não gere certa sensação de desgosto; para os segundos pode ser
apenas um road movie sobre um bando
de malucos drogados que se jogam na estrada, ouvem jazz e blues e transam como
se o mundo fosse acabar no dia seguinte. E não é só isso. Não é mesmo!
A crítica Natalia Bridi, do site
Omelete, especializado em cinema, aponta uma película “de final melancólico, enquanto no livro vê-se apenas euforia - o que
pode causar estranhamento para alguns” e conclui: “falta a Na Estrada não conseguir, enquanto adaptação, vencer a
barreira entre inspirado e inspirador. O filme é um retrato sensível do livro e
do seu autor, mas não consegue se firmar como obra em si”.
Ao ser apresentado no último festival de Cannes, o
filme, que levou mais de 50 anos para chegar às telas, dividiu a crítica. O jornal
britânico The Guardian, escreveu: "é
uma celebração com olhos vidrados do narcisismo e da autoabsorção". No
site do periódico o crítico alfinetou: "Belas
cenas e uma tristeza comovente não compensam o ar tedioso de autocongratulação".
O site Time Out
London, definiu o filme como "longo
e tedioso. O grito rebelde de On the road agora parece mudo e até um pouco
embaraçoso". O The Telegraph também não gostou e diz: "Na estrada corre o risco de confirmar
as especulações de que On the road, de Kerouac, é inadaptável para o cinema. O
filme rapidamente se instala em um ritmo tedioso".
Mas afinal, o que achou Caetano?
1 comment:
Goulart, seu texto, como sempre, é inteligente e inspirado. E agora alçando vôo para novos públicos, além daquele que já se deliciava com seu humor absurdo, compartilhado nas edições do Falajuf. Ah! E sempre ele, Caetano... Avante!
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