24.1.07

Tudo Por um Passaporte!!!


Recentemente aproveitei para tirar um novo passaporte, algo que venho adiando há meses. Compreendi porque o processo de expedição de um passaporte assemelha-se a uma via-crucis.

São necessários vários passos: ir ao SAC e descobrir quais são esses passos; tirar fotos para passaporte que não podem ter mais de seis meses; comprar um formulário e preenchê-lo; pagar uma taxa no Banco do Brasil; voltar ao SAC com tudo preenchido; descobrir que os comprovantes de votação não são suficientes, mas que preciso de uma certidão do TRE atestando que sou um cidadão que cumpre com as obrigações eleitorais; descobrir que todos os documentos têm que ser originais e, portanto, meu certificado de reservista (só possuo uma cópia autenticada há anos) não serve.

Pausa para conseguir a segunda via do certificado que só é expedida das 7 às 11 da manhã no quartel do Exército do Forte de São Pedro.

Dirijo-me ao quartel num dia sempre adiado. Finalmente, aproveitando uma noite de insônia em que vi o sol nascer, decido que vai ser aquele dia. Mesmo me arrastando de sono vou ao quartel. E aqui começou de fato a segunda parte da via crucis.

Manhã de mormaço úmido. Atravesso o grande portão de madeira e passo por uma espécie de túnel onde seis soldados armados de fuzis fazem caras de maus. A sala onde vou tem uma porta e várias janelas abertas para um grande pátio onde se acumulam poças de água da chuva. Soldados circulam com aspecto de torpor. O dia começa a ficar mais quente, parece que vai chover de novo.

Numa tv passa o programa de Ana Maria Braga. Cinco longarinas com quatro assentos cada acomodam mais de dez homens que aguardam atendimento enquanto assistiam a tv. Alguém me diz, sem que eu pergunte, que eu preciso de uma senha.

Então vejo a velha! Apesar de ter pouco mais de 50, já era velha ao nascer. Pela aparência de estupor, sua única função ali é essa: entregar senhas. Antes que eu me aproximasse, ela já estendia a mão com um papelzinho: 22. Na verdade ela já estava com a mão estendida, com ar vago, assim que entrei na sala. Um gesto automático. Aqueles eram seus momentos altos do dia: entregar as senhas que retira de um bloquinho. Apesar do seu aparente catatonismo, o ato era algo sagrado. Sonha com isso quando dorme, sem culpas, sob o lençol de chenile.

Uma outra mulher com uma voz muito irritada e em um tom excepcionalmente grave, como um surdo de bateria, grita: “senha 12”. Diria que aquela mulher não deve ser fácil. Chove!

Enquanto isso Louro José ensina a fazer polenta dando preciosas dicas sobre as inúmeras vantagens de um forno pré-aquecido. No dia em que eu precisar fazer polenta devo me lembrar dessas instruções.

Reparo melhor no local. São 8h e há 10 guichês alinhados. Apenas dois são ocupados. Um pela mulher obtusa das senhas e outro pela mulher da voz grossa. Pessoas são chamadas e atendidas. A voz da atendente está ficando ameaçadora.

Observo a decoração. Um quadro de Olavo Bilac, uma árvore de natal anã, uma magra guirlanda e dois festões decorativos raquíticos pendem de uma parede no fundo. Um verde e um vermelho. Restos do último Natal. Soldados batem continências

A chuva pára. O calor aumenta e os três grandes ventiladores não dão conta do recado. As pessoas chamadas parecem se arrastar com preguiça infinita até o guichê. Mais gente chega, a mulher das senhas está à toda. Não dá uma palavra, mas seu bloquinho está a mil.

Ouço alguém dizer que vai ter que jurar a bandeira. Estremeço. Isso sim é que é um castigo de verdade. Lembro que quando precisei fazê-lo, aos 18 anos, dublei enquanto, mentalmente, recitava “Batatinha quando nasce”. Meu único gesto de rebeldia silenciosa naquele local.

Agora sim, alguém com um c.c. de verdade! Nada desses perfumes baratos para disfarçar o verdadeiro e indefectível suor baiano. Penso no que pode vir de bom em estar naquele calor úmido, cheirando suor dos outros, ouvindo Ana Maria Braga comer polenta enquanto uma mulher irada grita senhas e ainda a ameaça real de jurar a bandeira...O que não se faz por um passaporte!

Um café. Sim, um café vai dar um jeito nisso. Vejo do outro lado do pátio uma cantina. Chove, mas por um café vale à pena. Atravesso o pátio, correndo. A cantina parece ter passado por uma batida policial, os únicos lanches são sonhos gigantes cobertos de açúcar derretendo e algo que alguém resolveu chamar de empadão, mas que pode ser chamado por qualquer outro nome que não vai fazer diferença alguma. Mas o café me reabilitou.

Volto. Senha 22. A mulher me atende. A voz está mais calma, mas ainda ameaçadora. Explico que quero a segunda via do certificado de reservista e ela pergunta se eu me lembro onde fiz o meu alistamento.

Penso em dizer que isso já faz muito tempo, que aconteceu em outra vida, aliás, há várias vidas, quando eu ainda tinha 18 anos e era um adolescente complicado. Hoje, 25 anos depois, um adulto mais complicado ainda, jamais me lembraria onde o alistamento aconteceu. Mas não digo nada. Ela não entenderia. Lembro que tenho a cópia autenticada e entrego a ela. Seus olhos, juro, brilharam por um milionésimo de segundo. Cópia autenticada é coisa rara ali, onde pessoas perdem documentos com muita freqüência. Digita o número do meu documento no computador.

Mas como nada comigo é simples ela descobre que o meu cadastro não consta do seu sistema. Deve ter algum número errado. Ela pede minha carteira de trabalho. Digo que sou funcionário público e não uso mais esse documento. Ela diz que há outro sistema, ligado a Brasília, que identifica pelo CPF, mas só o tenente tem a senha e ele deu uma saída. Espero o tenente voltar.

Passa das 10h. O tenente volta, mas dessa vez o sistema de Brasília está fora do ar. Ela sugere que eu aproveite para pagar a guia na lotérica já que o horário do quartel termina às 11h. A lotérica tem uma fila gigante. Para pagar R$ 3,00 espero apostadores da mega sena, compradores de cartões telefônicos, pagadores de contas, recolhedores do INSS, sacadores de dinheiro do Bolsa Família....nunca imaginei que se fizesse tanta coisa numa lotérica.

Pago e volto, mas o sistema não voltou. Sugiro que a atendente digite os números de 0 a 9 no lugar do último dígito do meu documento. Ela digita aleatoriamente. 2, 7, 6, 4. Esquece os números que digitou e os que ainda faltam digitar. Penso sugerir que ela comece do 0 e termine no 9, pelo menos os árabes criaram essa ordem há séculos e tem funcionado bem até hoje, mas preferi respirar fundo.

Não deu certo. Só tinha um jeito. Procurar nos livros do arquivo morto, mas era um lugar muito complicado e ela não garantia nada. Mas primeiro eu precisava lembrar onde me alistei. Busquei no fundo da memória, retrocedi até o jurássico da minha adolescência quando a palavra veio de algum lugar. Falei rápido, para não perdê-la: “Barroquinha talvez?” Quase disse: “Barroquinha, esse nome faz algum sentido para você?”.

Ela se levantou e desapareceu nos fundos da sala. Voltou muito tempo depois. Descobriu qual o número errado no meio dos outros certos. Eu não quero imaginar o lugar onde ela foi. Não parece ser um lugar muito apropriado. Juro que ela voltou diferente

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