Do cineasta Pedro Almodóvar assisti a todos os filmes e até li o seu livro Fogo nas Entranhas. De tantos agradáveis momentos que passei em salas de cinema, muitos devo aos filmes dele. Desde Pepe, Luci e Bon, passando por Ata-me, Kika, De Salto Alto, Mulheres a Beira de um Ataque de Nervos, Matador, Carne Trêmula, A Pele do Desejo, A Flor do Meu Segredo, Tudo Sobre Minha Mãe...Vi tudo.
Mas quando assisti a Fale Com Ela saí do cinema com uma sensação de estranhamento, um mal estar.... Não era Almodóvar. E fico cheio de dedos para dizer que não gostei do filme. Como posso não ter gostado se todos dizem que é uma obra prima, se rasgando em elogios ?
Não foi porque detesto touradas. De todos os esportes (?) abomináveis este é o pior. Só assistiria a uma tourada se soubesse que o touro mataria o toureiro. Estive uma vez perto de um desses espetáculos de horror na Espanha. Do lado de fora da arena senti o fedor de esterco e de sangue, vi as hordas de moscas e aquela gente histérica gritando olé!, torcendo para o touro ser abatido, o animal inocente esfalfado, cansado, aturdido, ensopado de sangue, espetado, cruel e covardemente, por espadas...
Jogaria toda a cultura espanhola na lata do lixo se conseguisse salvar apenas um touro. Explodiria as obras de Gaudi, poria fogo nos quadros de Dali e Picasso, destruiria os filmes de Buñuel e Saura e os livros de Cervantes e Lorca apenas para salvar um único touro. E Almodóvar coloca uma tourada neste filme.
Mas não foi só por isso que não gostei. Deveria gostar, pois nesse filme o touro leva a melhor e o toureiro (uma mulher), é quem acaba em sangue e areia. Se a tourada é um espetáculo grotesco, a desse filme chega às raias do absurdo quando, enquanto a toureira empala o animal, ouve-se a trilha sonora mais deslocada que vi em todos os filmes que assisti na vida: Elis Regina, suavemente, cantando Por Toda a Minha Vida enquanto o sangue escorre, negro e rubro, do dorso suado de um touro.
Onde estavam as cores berrantes de Almodóvar ?, os diálogos cômicos, os dramas patéticos, as situações rocambolescas e estapafúrdias, os exageros, a excêntrica estética barroca, a cultura kitsch, o sexo passional, as verdades absurdas, a desmesura típica, as músicas envolventes?
Por falar em música, além do equivocado trecho da canção de Elis, há uma forçada inserção da imagem de Caetano Veloso cantando Cucurrucucu Paloma. Por mais que goste de Caetano e a sua brilhante interpretação dessa música, senti que a sua figura ali soa gratuita, deslocada, destoa, num filme onde Almodóvar busca se conter ao máximo. O mano Caetano está ali apenas graças ao seu ego monumental e pela amizade íntima com o diretor. Bairrismos à parte, quase soa uma interferência narrativa.
Afirmam que Almovóvar amadureceu para não se tornar prisioneiro de um estilo. Essa história é furada! Almodóvar só atingiu o ponto mais alto da sua carreira exatamente porque se manteve fiel a um estilo. Exemplo disso é o seu brilhante e perfeito Tudo Sobre Minha Mãe, Oscar de Filme Estrangeiro. Não há nada de errado em manter-se fiel a um estilo, principalmente se esse estilo representa a alma do artista e ainda por cima faz sucesso.
Ninguém deixa, por exemplo, de reconhecer o gênio de Nelson Rodrigues e ele sempre foi fiel a um estilo. Nunca mudou e nem por isso ficou prisioneiro. Não é repetição, mas cada vez que um artista, sobretudo se esse artista é genial, volta sobre o mesmo tema, ele não se repete, mas lança uma nova luz sobre o objeto, ele mostra novos ângulos, ilumina novas camadas do objeto sem nunca se repetir ou ficar prisioneiro do assunto.
Almodóvar, dessa vez, preferiu filmar com o cérebro, esquecendo o coração. É assim que ele comanda, com mão de ferro, um filme onde nada se desenvolve, o imobilismo das duas mulheres serve como desculpa para uma metáfora da passividade. Não tenho nada contra narrativas lentas, até as prefiro, mas nesse filme tudo trava, trunca, não cresce, estagna, como se o diretor quisesse o tempo todo amarrar o ritmo ao estático. A frenética alma espanhola, com toda a sua característica morbidez, não combina com isso. A tourada, o balé, o flamenco, a vida, enfim, tudo é ritmo! No filme temos homens apáticos, covardes, fracos, mulheres fortes, masculinizadas mas imóveis. Não falta só movimento, falta intensidade de emoção.
Os homens choram. E daí? A incomunicabilidade já foi melhor expressa em diversos momentos do cinema, nem vale a pena enumerar exemplos. Qual a vantagem de um homem só conseguir se expressar quando a mulher está em coma? Qual a vantagem para a mulher e para uma relação? Parece muito bonito, mas não se sustenta, pois o que torna bela uma relação é exatamente a troca. Troca que não se vê, pois o diálogo é substituído por monólogos. Benigno, covarde, não tem coragem de procurar a amada. Só consegue falar com ela quando não faz mais sentido e ela está em coma. Se ela acordasse de repente tenho a impressão de que ele se esconderia de medo.
As mulheres não querem homens sensíveis. Não foi por outro motivo que a toureira tinha tomado uma decisão importantíssima antes do seu acidente, referente ao seu hiper sensível namorado jornalista. Ela tinha adoração pelo seu ex, também toureiro e nem um pouco sensível. E quem disse que a bailarina gostaria de um enfermeiro afeminado criado pela mãe? Homens afetados ela tinha aos montes na sua escola de balé.
A mão pesada de Almodóvar exige, no final que um personagem vá para a cadeia para que a imobilidade continue, e, sem muita criatividade, adota um The End hollywoodiano, com letreiro com os nomes do casal, como um fechamento de um circulo. Nada de novo aqui. Mais original foi o macedônio Milcho Manchevski ao finalizar “Antes da Chuva”, filme que recebeu 30 prêmios, entre eles o Leão de Ouro, com um círculo final que se fecha apenas como paradoxo.
Afirmam que o momento mais belo de Fale com Ela mostra o regresso do macho ao útero da fêmea como um homem em miniatura. Não bastassem homens frágeis, afeminados, chorões, Almodóvar inclui um homem miniatura. Não creio que Almodóvar domine tão bem o universo masculino. Mulheres sempre foram o seu forte. Que volte logo a elas!
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