O filósofo Jean Paul Sartre declarou uma vez que Che Guevara era o homem mais completo da sua época. Talvez tenha sido, na verdade, um dos mais completos de todas as épocas. Uma pequena parcela das muitas histórias sobre o mítico Che Guevara chega às telas, retratada pela visão privilegiada do diretor Walter Salles.
Em Diários de Motocicleta vemos Salles firmemente ancorar no topo da sua maturidade cinematográfica. O diretor não precisaria provar para ninguém seu talento após filmes memoráveis como Terra Estrangeira, Central do Brasil e Abril Despedaçado, todos obras-primas. Mas agora, com apoio e verba do produtor Robert Redford e o selo Sundance, Salles exibe sem amarras seu talento ao mesmo tempo sensível e arrebatador. O filme, ao ser apresentado em Sundance e em Cannes recebeu entusiasmados aplausos de mais de 1.000 pessoas em pé. Salles reconhece a importância de retratar essa parte da vida de Che, mas afirma que a trajetória da sua vida não caberia nem mesmo em 10 filmes.
Começaria pelo final: A experiência rara de ouvir aplausos da platéia ao término do filme. O road movie, com todos os elementos de busca da identidade e jornada iniciática, retrata oito meses na vida do estudante de medicina argentino Ernesto Guevara, então com 23 anos, e seu amigo Alberto Granado, de 29. Anos depois, Ernesto, já o comandante Che Guevara, herói de guerras revolucionárias em Cuba e no Congo, entraria para o panteão dos mitos imortais ao ser assassinato covardemente aos 36 anos nas selvas da Bolívia a mando dos EUA. A célebre foto de Che, feita pelo cubano Alberto Korda, é, provavelmente, a imagem mais reproduzida no século XX e tornou-se inquestionavelmente, o símbolo máximo de resistência, rebeldia e, paradoxalmente, de ternura.
Outra foto de Guevara, não tão famosa como a de Korda, é a que o mostra morto e cercado de soldados bolivianos. Como bem comentou o crítico José Geraldo Couto, as mitologias em torno de Che são tão abundantes que abarcam tanto os ideais cristãos quanto os da esquerda. A própria foto de Che morto, barbudo e sem camisa, lembra muito o martírio de Cristo.
Guevara é interpretado magistralmente pelo jovem ator mexicano Gael Garcia Bernal, que já esteve na pele de personagens marcantes em filmes como Amores Brutos, E Sua Mãe Também e O Padre Amaro e é o grande destaque no novo filme de Pedro Almodóvar: La Mala Educación, onde faz 4 personagens, inclusive um travesti.
Bernal, no papel de Che, e Rodrigo de la Serna, no papel de Granado, entram para a história do cinema como uma dupla repleta de enorme carisma. Cada sorriso gigante de Bernal, como Ernesto, enche a tela de uma beleza juvenil cheia de sinceridade. A bordo da precária motocicleta La Poderosa, eles atravessaram a Argentina, atingem os Andes chilenos e, já despojados da velha Norton 500, chegaram ao Peru e à Venezuela. No caminho são transformados profundamente ao testemunharam as grandes injustiças praticadas contra os pobres latino-americanos, explorados à exaustão em minas de cobre, expulsos de suas terras, despojados, humilhados... a viagem aconteceu em 1952. Hoje, 52 anos depois, poucas coisas mudaram e a América Latina continua com suas veias abertas, como diz o escritor Eduardo Galeano, sangrando as suas riquezas, sugadas pelos eternos poderosos.
A parte mais tocante do filme é quando Ernesto chega à colônia de leprosos de San Pablo na amazônia peruana. Ali, ele e o amigo Granado trabalham voluntariamente por alguns meses e subvertem as ordens que exigiam luvas para quem tratava os doentes, mesmo quando a lepra já não era mais contagiosa. A segregação dos doentes em um dos lados do rio enquanto os médicos moram do outro já incomodava Ernesto que instala a irreverência na colônia, joga futebol com os enfermos e numa atitude reveladora do grande homem que — então — ele já era, no dia do seu aniversário, após um emocionante discurso onde pregava o sonho da união de uma América Latina irmã, decide atravessar o perigoso rio à noite, à nado, para comemorar com os amigos leprosos.
Ele, um asmático, tem uma atitude de tamanha coragem e destemor da qual, como definiu Sartre, somente um homem verdadeiramente completo seria capaz. Com sua crônica asma, sua vida foi uma batalha permanente. Alguém, como ele, para quem cada bocado de ar era uma luta, poderia ter envelhecido tranqüilamente na sua terra natal, aberto uma clínica e tornado-se um burguês, mas a viagem que fez pela América Latina mudou sua vida e esse filme mostra como se forja um herói, um revolucionário.
Um homem completo.
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