O maior de todos os mitos foi real. Com esse dístico, Oliver Stone nos apresenta sua versão de 3 horas e 150 milhões de dólares de Alexandre, o Grande, na verdade uma obsessão pessoal do diretor por 15 anos.
A principal pergunta que deve ser feita sobre o filme de Oliver Stone é: Ele conseguiu retratar à altura a magnitude do personagem Alexandre da Macedônia? Alguém tão monumental cujos fracassos superaram as conquistas da maioria dos homens recebeu um tratamento digno da sua importância?
Infelizmente não. Por dois motivos principais: primeiro, um filme sobre Alexandre jamais caberia em 3 horas de duração. Apesar de sua curta vida, 32 anos, ele conseguiu realizar feitos que ninguém até hoje conseguiu ou conseguirá. Conquistou 90% do mundo conhecido de então, lutou mais de 70 batalhas em oito anos e jamais foi derrotado. Conquistou mais de 5 milhões de quilômetros quadrados, da Grécia aos atuais Egito, Iraque, Afeganistão, Irã, Turquia, Índia e muito mais. E isso numa época em que não havia a infraestrutura, a medicina e a comunicação que existem hoje. Alexandre foi profundamente transformado nesse processo de conquistas e por isso esse poderia ser o road movie dos road movies.
O segundo motivo para que o filme não retrate a grandeza de Alexandre é que o diretor claramente, ao editar a película que teria 5 horas, acabou por mutilar aspectos da construção do personagem que seriam essenciais para estruturar a sua complexidade dramática. Alexandre foi um grande general, mas por problemas com a edição das imagens, o que se vê dele é, em várias cenas, um jovem perplexo, dominado pela mãe, confuso sobre a relação com o pai, alcoolizado, desprezado, chorão, arrependido, paranóico... E sabe-se que ele era tudo isso, mas muito mais. Era um homem extraordinário e de um magnetismo arrebatador. Stone errou na mão ao optar por não mostrar os aspectos mais brutais de Alexandre que serviriam para dimensionar a complexidade da sua personalidade.
O filme não retrata várias batalhas importantes de Alexandre como a destruição da cidade grega de Tebas que, por ordem dele foi totalmente arrasada e toda a população assassinada. Outra batalha ferocíssima, que durou meses, foi a terrível tomada da cidadela de Tiro que também foi completamente destruída e todos os habitantes enforcados e as mulheres e crianças escravizados.
Stone não toca do incêndio comandado por Alexandre durante uma bebedeira da maravilhosa cidade e do imponente palácio real de Persépolis, uma das mais lindas capitais do império persa. Alexandre pessoalmente comandou o incêndio do palácio todo feito de ouro, prata, mármore e pedras preciosas. Um crime terrível.
O filme retrata a famosa batalha de Gaugamela onde Alexandre com 40 mil homens derrotou o imenso exército de Dario de 180 mil. Ocorre que esse não foi, como diz o filme, o primeiro combate entre os dois exércitos. 4 anos antes em Granico e depois em Isso Alexandre já derrotara duas vezes Dario que fugia sempre.Gaugamela é realmente uma batalha espetacular e lembra super produções como a batalha da Praia da Normandia no Resgate do Soldado Ryan ou as grandes batalhas de O Senhor dos Anéis mas a chave da batalha é mal explicada no filme. A estratégia de Alexandre para penetrar numa brecha ele mesmo criou nas fileiras do monstruoso exército persa é considerada até hoje por experientes militares como uma jogada de um gênio.Usando a infantaria, as falanges e a cavalaria em uma sincronia espetaculares.
Colin Farrell, definitivamente, não era o ator ideal para o papel de Alexandre. Além de não ter a beleza que o macedônio tinha, seus cabelos louros são escandalosamente falsos, vê-se que é uma peruca horrível. Um louro legítimo (há vários no filme) tem cílios, barba e sobrancelhas louras e Farrell exibe feios pêlos hirsutos e pretos na cara. Além do mais falta-lhe uma qualidade insuperável: carisma.
Usar narração como o filme faz, do faraó Ptolomeu, ex-general de Alexandre, não me perece uma das soluções mais criativas. Fica óbvio que isso serviu para justificar os cortes nas cenas importantes e apenas poder amarrar e citar fatos e batalhas imprescindíveis na construção do personagem. É uma pena, mas as pessoas não sabem a importância de Ptolomeu. Ele simplesmente foi ancestral de Cleópatra e criador de uma grande linhagem de faraós importantes e isso o filme não mostra.
A relação homoerótica de Alexandre com o general e amigo de infância Hefestion e as cenas em que o eunuco Bagoas aparecem são de uma falta de tato do tamanho da patada dos elefantes do rei Pórus na batalha de Hidaspes. Ao cortar as cenas em que Alexandre e Heféstion degolam, trucidam e esfolam povos, e mostrá-los cheios de meiguices, claramente perde a oportunidade de retratar o caráter ambivalente da sexualidade grega. No cinema onde assisti ao filme o público debochava rindo das afetadações de Alexandre. Hefestion era um guerreiro poderoso e derrubava o próprio Alexandre nas lutas. Por que retratá-lo de cabelos compridos, melífluo, cheio de rímel nos olhos e olhar lânguido? Heféstion era um carniceiro tão forte e violento quanto os demais soldados macedônios.
Há muito mais registros históricos do papel do eunuco Bagoas do que o de Roxane, até porque ela foi assassinada logo depois da morte do marido e, como mulher, tinha pouca importância para os registros dos historiadores da época enquanto Bagoas tornou-se um primeiro-ministro importante de Alexandre (no filme ele não dá um pio). Bagoas era o eunuco favorito de Dario e consta que o grande rei persa preferia seus carinhos ao de qualquer das lindas esposas do seu fornido harém. Para maiores informações recomendo o livro O Menino Persa de Mary Renault, autora de outras obras sobre Alexandre.
Há várias outras obras literárias ótimas sobre Alexandre. O historiador Plutarco escreveu sobre ele comparando-o ao imperador Julio César. O escritor Valério Manfredi escreveu 3 importantes livros sobre Alexandre mas nenhum deles toca no tema da bissexualidade do macedônio.
Já vi muitas cenas de sexo melhores e mais impactantes em produções mais simples do que a que mostra as núpcias de Alexandre e Roxana. Enquanto isso há apenas insinuações homoeróticas lânguidas demais como as melosas declarações de amor trocadas com Hesfastion. Quando Alexandre chama o eunuco para a sua cama a imagem do filme sofre um fade out para que ninguém veja o que aconteceu ali naquele leito. Para poupar o público de cenas mais fortes ?
A personalidade de Alexandre foi muito moldada pelos conflitos entre seus pais, mas o papel de Aristóteles chegou a ser muito mais importante na educação e formação humanista de Alexandre do que a influência dos pais. Olímpia, uma bacante que participava de orgias e Filipe, bissexual assumido, tendo inclusive vários amantes entre os soldados. No filme isso não é explicitado. E há apenas uma única cena onde Aristóteles aparece. É de uma falta de cuidado histórico impressionante o filme não dar mais espaço para cenas com o filósofo que ainda hoje é considerado um dos mais importantes da humanidade.
A cena em que Filipe mostra a Alexandre os destinos cruéis dos heróis gregos Medéia, Hércules, Prometeu, Édipo e Aquiles é belíssima, à luz de achotes e numa espécie de caverna. As imagens que acompanharão Alexandre para sempre são retratadas em paredes escuras e vê-se um pai e um filho no processo de formação de um caráter. Infelizmente é triste constatar mas 90% do público do cinema nem sabem quem foi Medéia ou Prometeu e apenas tangenciam a complexa grandeza narrativa das histórias de Hércules, Édipo e Aquiles.
A cena em que a morte de Filipe é mostrada num flash back é na verdade muito esquisita, foge completamente da estrutura narrativa do filme. É a única cena em flash back de um filme que já em si é um grande flash back narrado por Ptolomeu. Se o diretor imaginava criar algum impacto com isso fez uma espécie de apêndice incômodo desnecessário. Porque não narrar tudo cronologicamente? Não faz o menor sentido.
Crítica e público norte-americanos esnobaram o filme que foi mais bem recebido além-mar, algo a que Oliver Stone já está acostumado, mas dessa vez mesmo ele se surpreendeu com a paulada. Mas o que se pode esperar de uma nação cujo fundamentalismo cristão elege um debilóide limítrofe duas vezes presidente? Uma nação de idiotas, como diz Michael Moore.
O filme não é também tão ruim. O crítico Inácio Araújo, da Folha, injustamente, dá a ele apenas 1 estrela. Chama a produção de "mise-en-scéne pomposa e balofa". Compara com Gladiador que, segundo ele: “dá ao público o prazer do kitsch, tão necessário às grandes produções. Alexandre é vítima de um bom gosto entediante: as coisas estão todas no lugar, os guerreiros lutam como, é de presumir, lutava-se na Antigüidade.”
São engraçados esse críticos não é? Marcelo Bernardes da Época diz exatamente o contrário: “Oliver Stone criou um filme kitsch e cafona”. Ambos malham o filme, só faltou entrarem em acordo sobre seus defeitos. Inácio Araújo, como a maioria do público (um crítico e não deveria estar num nível tão baixo) vê Alexandre como um homem que “simplesmente, não queria voltar para casa”.
Má vontade do crítico. Fica claro que Alexandre acreditava (seguindo as idéias de Aristóteles) que indo para o leste chegaria ao “Mar Exterior” ou “Oceano Circundante” e que dali, por um acesso para o Rio Nilo, voltaria rapidamente à Grécia navegando. Esse era um grande erro geográfico mas, na época, suficiente para justificar o desejo de Alexandre de rumar sempre para o leste. Ele queria sim, voltar para casa, mas queria também conhecer e conquistar o mundo antes. E realizou o que ninguém imaginou sequer sonhar.
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