2.9.06

A Interatividade sem Pecado Abaixo do Equador


Desmond Morris, renomado antropólogo britânico e consultor científico da BBC inglesa, coordenador da série de documentários O Animal Humano, no seu mais famoso livro O Macaco Nu, analisa o comportamento interativo humano sob uma ótica digamos, geográfico-climática.

Claro que existem vários outros estudos sobre a antropologia especificamente sub-equatorial que nos resultou homens tão cordiais, já disse Sérgio Buarque de Holanda em Visões do Paraíso e Raízes do Brasil, estudou Gilberto Freire em Casa Grande e Senzala e Sobrados e Mucambos e descreveu Caio Prado Jr. em Formação do Brasil Contemporâneo; do calor tropical onde se cozinhou nossa única sopa racial e onde tudo passa da construção à ruína sem passar pelo apogeu, como definiu Levi Strauss em Tristes Tópicos.

Mas Desmond Morris acredita que entre a série de fatores envolvidos nessa compulsão interativa, um fundamental é o clima quente dos trópicos. Para ele, em países abaixo do equador, o calor faz com que as pessoas desenvolvam uma cultura meio apática, menos introspectiva, algo calorosa, afetuosa, displicente e mais interativa. Uma das razões para isso seria porque o homem tropical, diferente do de clima temperado, não se preocupa com o período do ano em que faz frio ou neva e ele não precisa, nos meses de calor, economizar para pagar calefação e estocar alimentos. Por aqui não se economiza porque, proporcionalmente, tudo tem o ano inteiro e ninguém morre de frio.

Assim tudo é relativamente abundante e o homem tropical reflete essa abundância natural com abundância de gestos, de palavras, de ritos, de danças, de toques. Aqui todo mundo dá opinião na vida dos outros, se importa ou finge se importar com tudo que não lhe diz respeito. É preciso participar. Na aparência, é claro, porque não se comprometem de fato.

É comum, por exemplo, no trânsito, alguém buzinar, dar sinal de luz e fazer todo tipo de gesto apenas para avisar ao motorista do carro ao lado que a porta no veículo não está fechada ou o farol está acesso. Esse falso cooperativismo não é visto em situações realmente importantes.

Ou quando se entra numa contramão e nunca falta quem avise que é contramão. Creio que 99% das pessoas que entram numa contramão percebem logo o erro, mas sempre tem alguém que avisa que você está na contramão. Há um prazer nesse alerta e os autores não estão conscientes. É apenas um sintoma da interatividade.

Outro hábito comum é quando um flanelinha, a pretexto de ajudar a estacionar o carro, fica batendo na chaparia. Peço sempre que parem, não gosto que batam no meu carro, mas logo me arrependo, pois esses interativos se aborrecem facilmente quando alguém aparenta ser mau humorado e os carros costumam sofrer com isso. Sem contar quando há uma contenda quando dois deles disputam quem guardou seu carro. E você sabe que não foi nenhum dos dois.

O fato de Salvador ser uma cidade costeira e de litoral belíssimo faz com que as pessoas percam a capacidade e o espaço do ensimesmamento, da introspecção. Qualquer tristeza momentânea, o horizonte e o mar estão ali para estabelecer uma dimensão infinita e qualquer abalo emocional sofre revés ante a imensidão. E nada é refletido ou analisado e sim sufocado pela paisagem exuberante.

Não falo do sagrado hábito da contemplação. A exuberância sufoca também contemplação. Quando alguém contempla um determinado objeto, é preciso de tempo e silêncio, como num mantra visual, para que nós próprios nos percebamos novos diante do objeto contemplado. Essa observação cuidadosa e muda mostra muito menos do objeto contemplado e muito mais de nós mesmos do que imaginamos. E, muitas vezes, mostra mais do que gostaríamos de ver. Por isso a fuga é freqüente.

Em lugares onde a frieza do clima, da geografia, ou da arquitetura dificultam a interação, as pessoas costumam confiar mais nos amigos verdadeiros que costumam ser poucos, e escolhidos, para questões importantes. As pessoas estabelecem vínculos mais sólidos para confiar e atravessar reveses emocionais ou para problemas mais sérios.

Em cidades como Salvador facilmente se consegue companhia para uma farra, festa, folia, mas dificilmente se consegue um apoio moral ou emocional. A agenda de endereços e telefones, repletas de contatos, não serve para outra coisa que não para o lúdico.

A amabilidade folclórica do baiano é realmente superficial como são superficiais suas amizades. É comum duas pessoas se encontrarem na rua e se abraçarem excessivamente afetuosas para logo se afastarem dizendo: me liga para a gente marcar alguma coisa. Não há a honestidade de dizer simplesmente: Até qualquer dia, mesmo porque ambos sabem que não vão ligar coisíssima nenhuma e às vezes nem têm os números dos telefones um do outro.

Outra mania baiana é a mania de desmarcar. É surpreendente a facilidade com que se desmarca aqui. As pessoas combinam coisas: cinema, teatro, qualquer coisa e se, de repente, pintar algo melhor, simplesmente ligam dizendo: Estou desmarcando ou então Não deu!. Isso quando ligam. Na maioria das vezes simplesmente nem aparecem. E fica por isso mesmo porque quem sofre a "desmarcação" também é craque em "desmarcar".

Li na Folha de São Paulo um texto ótimo com o título: Modos brasileiros de escapar do não, de Michael Kepp, que serve como uma luva para o baiano. Kepp diz: "Universalmente as pessoas se escondem atrás de expressões comprometedoras para evitar assumir a responsabilidade pelos atos e opiniões e fugir de confrontos embaraçosos. Se essa "esquiva retórica" fosse uma disciplina acadêmica os brasileiros seriam PhDs nela."

"Expressões propositalmente vagas como: ‘Pode ser’, ‘vamos ver’, ‘se der’ para desviar da palavra não. E frases descompromissadas como ‘eu te ligo’, ‘a gente se vê’, ‘apareça lá em casa’, são escapadas e não promessas de novo encontro."

“O álibe para não cumprir um compromisso é : ‘Houve um desencontro’
" ’Pô você sumiu' não deve ser confundido com ‘Que saudade’ "
" ’Sumiu!!??’ é uma reação sem graça que transfere o peso do sumiço para o outro."

E o pior é que a pessoa supostamente sumida tem endereço e telefone conhecidos pelo outro. Nos EUA as pessoas dizem, com a mais saudável honestidade: "Meu nome e endereço estão na lista telefônica". Quem quer encontrar o outro sabe como fazer e se não faz é porque não quer, não tem essa hipocrisia.

" ’Fico te devendo’: Qualquer trato não cumprido soa como um acordo amistoso. ‘Não deu’ antecipa um ‘fica para a próxima’.”
"Os americanos são mais objetivos ou mais grosseiros? Se dizem: ‘Desculpe, não vou poder porque estou muito ocupado’ é um golpe no ego, mas enrola menos do que ‘eu te ligo’ ou ‘a gente combina’ ”
“As expressões mais perigosas são as que começam com: ‘é o seguinte’...prosseguem com ‘não deu’ e acaba com ‘fica para a próxima’."

O escritor Umberto Eco, comentou na Revista Época: " Se você é convidado [nos EUA] para algum compromisso e responde que está ocupado (Sorry, I'm busy), a pessoa que o convidou chega a pedir desculpas e não lhe pergunta mais nada. Mas se você diz que sim e depois não vai, a coisa é inconcebível" "Entre nós [diz citando os italianos mas perfeitamente aplicável aos brasileiros e baianos], se diz:' me ligue para a gente se encontrar', ou então: 'quando passar por aqui venha jantar em casa', e não temos nenhuma intenção de rever nosso interlocutor".

Não sei se fiz uma colcha de retalhos ou se desenvolvi alguma idéia coerente com argumentos discutíveis. Para quem achou que passei a adorar os EUA e odiar a Bahia deixo essa dúvida no ar como uma espécie de mistério...Não resisti.

2 comments:

danilo said...

De passagem para visitar sua casa on-line. Gostei. Abs.
Danilo

Anonymous said...

o que eu estava procurando, obrigado