26.9.06

Havia um Carro de Boi

Costumava passar por aqui um carro-de-boi, o carro-de-boi das 5 horas. A poeira da estrada que ele levantava só assentava lá para o fim da tarde e o som, agora distante, das suas rodas, costumava ficar em meus ouvidos, noite adentro, como a luz das estrelas permaneciam dentro de meus olhos, mesmo fechados, muito mais tarde.

O pó daquela estrada que o carro-de-boi das 5 horas levantava, ainda hoje não larga a minha alma e a sua lembrança nunca foi tão viva. Antes que anoiteça totalmente dentro de mim, minha tia ainda pegaria o candeeiro de querosene de espantar muriçocas.

Antes que escureça, ela ainda precisaria expulsar as galinhas que ficaram sobre as camas e recolher um ou outro ovo. Antes que o crepúsculo se instale em minha alma, minha tia ainda faria requeijão quente e não me deixaria comer porque dava dor-de-barriga.

Minha tia fingia que não via que eu comia o requeijão ainda quente que ela fingia ter esquecido sobre a mesa da sala. Antes de anoitecer definitivamente, ela ainda prepararia as lingüiças que comeríamos no almoço do dia seguinte.

Minha tia não mora mais aqui e o carro-de-boi não existe mais. Ficaram a mesma poeira e a mesma estrada de cascalho. Sou estranho à beira do caminho onde passava um carro-de-boi e já passou há muito, das cinco horas. Aqui estão outras galinhas ciscando. O que terá acontecido com aquela galinha de pescoço pelado que senti pena e pedi à minha tia que não matasse ? Um dia ela foi importante e durante anos não a julguei digna de uma lembrança. Como saber o seu destino tornou-se tão dolorosamente importante.

Os olhos, órfãos de subjetividades, buscam recordar. Encontram o velho pneu ao lado do, agora enferrujado, rolo de arame farpado, o umbuzeiro centenário, empoeiradas telhas de argila encostadas à antiga cerca, a moenda desativada, a lagoa já seca...As montanhas que um dia teriam sido azuis aparecem cinzentas ao meu novo olhar. Nunca foram azuis, os olhos é que perderam a capacidade de enxergar, azuis, montanhas cinzentas.

Mas um novilho esquálido, de um bege sujo, toma luar sob uma árvore ressequida. Dói olhar. Uma árvore tão grande, e não faz parte da minha memória.

1 comment:

Anonymous said...

Grande memória contemplativa,sendo contraposta a uma realidade ,de ser por ter que ser.