Há 5 anos, publico breves resenhas dos livros lidos. Para alguns deles dedico resenhas maiores e divido as postagens sempre em três blocos. Aqui estão os 14 lidos de Janeiro a Maio deste ano entre físicos, e-books e áudio-livros. Esse número de 14 livros de Janeiro a Maio deste ano ficou abaixo dos lidos no mesmo período dos últimos (27 em 2019; 22 em 2020; 20 em 2021 e 21 em 2022)
24.5.23
OS 14 LIVROS LIDOS DE JANEIRO A MAIO DE 2023
Há 5 anos, publico breves resenhas dos livros lidos. Para alguns deles dedico resenhas maiores e divido as postagens sempre em três blocos. Aqui estão os 14 lidos de Janeiro a Maio deste ano entre físicos, e-books e áudio-livros. Esse número de 14 livros de Janeiro a Maio deste ano ficou abaixo dos lidos no mesmo período dos últimos (27 em 2019; 22 em 2020; 20 em 2021 e 21 em 2022)
30.4.23
A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO
Pode soar como implicância da
minha parte ou mesmo a opinião de quem não tem lugar de fala. Acredito até que
ambas as impressões podem estar certas, mas como sou implicante por natureza e não
sou negro por circunstâncias, vou arriscar assim mesmo.
Falo da belíssima canção gravada por Elza Soares: “A Carne” composta por Marcelo Yuka e Seu Jorge e que tem o poderoso refrão: “A Carne Mais Barata do Mercado é a Carne Negra”. Essa música passou a ser executada recentemente por cantoras como Larissa Luz com o refrão alterado para: A Carne Mais Barata do Mercado ERA a Carne Negra.
Essa mudança não é uma mera alteração gramatical. Ela afeta mortalmente o
sentido da canção original e remete à ideia de que o empoderamento dos negros modificou
a realidade desigual do país. Assim, pela nova versão, a carne mais barata do
mercado NÃO é mais a carne negra.
Pergunto então o que teria tomado o lugar da carne negra no mercado da “carne”. Qual seria hoje aquela carne que,
seguindo o restante da letra original da canção, vai de graça pra o presídio, pra debaixo do
plástico, de graça pra o subemprego e pra os hospitais psiquiátricos?
Sim, porque a alteração para a nova versão empoderada não ficou
só no refrão, mas foi além ao cantar que a carne negra IA de graça pra o
presídio/E para debaixo do plástico/Que IA de graça pra o subemprego/E para hospitais
psiquiátricos”.
A mudança afeta o poder de
denúncia da canção uma vez que se a carne negra não é mais a mais barata,
tudo seria coisa do passado e já não é mais tão vergonhoso o que o nosso país
faz (ou fez, como quer o intérprete) com seus negros. Ficou no passado.
Recentemente, no programa The Masked Singer Brasil na TV Globo, a cantora Larissa Luz cantou essa versão, como faz sempre em seus shows. Em um deles, disponível no YouTube em https://www.youtube.com/watch?v=J4JsK7iazA8, ela faz um discurso proselitista em que justifica o porquê de a carne mais barata não ser mais a carne negra. Diz: “Agora não é mais assim porque a gente tem voz pra falar do que gosta e do que não gosta e como a gente quer que seja”.
O fato de os negros, como diz Larissa Luz, terem (supostamente) apenas hoje voz para protestar contra o racismo, por si só não modifica a realidade do racismo. Foi exatamente o fato de que Elza Soares e os autores negros da canção tinham voz para falar sobre o tema que já cantavam que a “CARNE MAIS BARATA É A CARNE NEGRA”. Não é de agora que os negros têm voz para protestar.
Assim, Larissa Luz se apropria, para si e para seus contemporâneos, da existência de tal voz atual, que seria tão poderosa ao ponto de modificar a realidade. De quebra ela ainda nega a existência das vozes dos que a precederam, incluindo as de quem cantou e de quem compôs a música original
Ao buscar importante e necessário
empoderamento, a artista, infelizmente, erra ao fraudar uma obra de arte original, negando a existência de uma contínua marginalização. Se se pode fazer isso com uma canção, talvez os empoderados se achem no direito de fraudar outras obras de arte. O que será que pensariam disso Elza Soares e os autores Marcelo Yuka e Seu Jorge?
27.4.23
A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS
Este é o nono livro que eu leio
da badalada autora italiana Elena Ferrante que, como sempre faz em suas obras,
aborda com maestria histórias de protagonistas femininas. Ferrante fez isso na sua Tetralogia Napolitana
e nos romances Dias de Abandono, Um Amor Incômodo e A Filha Pedida, a maioria
deles adaptados para as telas, como é o caso do seu novo livro: A Vida Mentirosa dos
Adultos, lançado em plena pandemia e que agora pode ser conferido em seis
episódios na Netflix.
Aqui, acompanhamos o crescimento da pós-adolescente Giovanna, filha de intelectuais de esquerda na Nápoles dos anos 90. Já na primeira página do livro, a narradora relata uma frase entreouvida do pai que a marcará profundamente e determinará sua dificuldade de lidar com a dor do crescimento e a perda da inocência e da ingenuidade.
"Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia. [...] Tudo — os espaços de Nápoles, a luz azul de um fevereiro gélido, aquelas palavras — ficou parado. Eu, por outro lado, escapei para longe e continuo a escapar também agora, dentro destas linhas que querem me dar uma história, enquanto, na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção.”
O pai compara a falta de beleza da filha com a da sua própria irmã Vittoria, ovelha negra banida da família, e tal comparação faz com que a adolescente associe a sua falta de beleza à falta de caráter, marcando-a profundamente numa idade em que essas coisas são extremamente dolorosas. Essa tia misteriosa se torna uma obsessão e em busca dessa personagem enigmática (e assim em busca de si mesma), Giovanna, aos poucos, escapa do conforto do seu bairro chique de Nápoles para a periferia industrial e cinzenta da cidade. O livro a segue nessa jornada e, ao final, veremos como todos os percalços farão nossa jovem narradora se tornar uma mulher. Não é um final redondo, como é comum acontecer nos romances de Elena Ferrante mas é, indiscutivelmente, uma jornada de crescimento interior e que só acontece quando aprendemos a lidar com as inevitáveis dores do crescimento.
Destaco a ótima abertura da série com a canção Nun te Scurdà (Não Vou Te Esquecer) e também a cena linda em que Vittoria e Giovanna dançam juntas ao som de Edith Piaf com Non, Je Ne Regrette Rien.
Outra canção ícone dos anos 90, All That She Wants dos suecos do Ace of Base está na série, mas na minha opinião a abertura do episódio 4, intitulado Solitudine (Solidão), com imagens de trás para frente e em câmera lenta, é um escândalo de tão bela e merecia, por si só, um prêmio, sobretudo porque é acompanhada da canção In a Broken Dream, na voz rouca de Rod Stewart. É um tiro no coração.
19.4.23
PARIS É PARA OS FORTES E CHIQUES
Então o quê eu estou fazendo aqui?
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Brigitte, você já soube a última do Voltaire? |
Talvez seja algum tipo de fadiga de material, mas talvez eu devesse ter escolhido outro destino. Acho que quatro vezes em Paris pode parecer demais quando não se conhecem ainda lugares como Praga, Viena, Budapeste, São Petersburgo, Milão... Por que Paris?
MODA - E por falar em grifes, uma coisa que chega a ser irritante em Paris é a chiqueza das pessoas. Não sei nem o nome dessas roupas, desses tecidos, dessas combinações e marcas, mas vá ser chique assim lá na Fashion Week! Mas confesso que dá sim um certo prazer culpado em ver essas mulheres desfilando como se estivessem numa propaganda de perfume e esses homens elegantes usando umas roupas que mesmo que eu as vestisse, não passaria de um espantalho. Paris, inegavelmente, não é minha praia. Minha deselegância não combina com os bulevares arborizados e perfumados daqui.
IMIGRANTES - Mas tenho uma ressalva. A cidade tem uma população estrangeira que salta aos olhos, seja pelo biotipo seja pela atitude e vestimentas. Paris tem números colossais de imigrantes, principalmente africanos, asiáticos, latinos e orientais de modo geral. Essas pessoas assumem quase todos os empregos que ou os franceses não têm interesse em ocupar ou são mal remunerados ou as duas coisas. Em praticamente todos os hotéis, quitandas, restaurantes, supermercados, metrôs, em todos os lugares é impossível não encontrar árabes, haitianos, marroquinos, argelinos, indianos, paquistaneses. É um mundo à parte. E roupas à parte também.
O ambiente é insalubre, frio, poluído e com uma tagarelice que incomoda até meus pensamentos quando passo perto na calçada, apenas pelo segundo de tempo suficiente para atravessar a aglomeração. Então fico pensando como é que as pessoas que se sentam nas mesas vizinhas fazem para conversar e se entender. Mas uma coisa eu tenho que reconhecer: aqui não pegou a praga da música ao vivo, que em Salvador se entende por aquela num volume proibitivo para a saúde humana.
Voltando à boemia parisiense, minha alma ranzinza fica se questionando se um cidadão que mora numa cidade linda como esta, cheia de história, museus e tanta beleza, como essa pessoa não fica em casa refletindo sobre como é privilegiada ou lendo um livro de Filosofia....mas não, esse povo vai tudo pra os cafés e restaurantes pra tagarelar e pitar cachimbo e os malditos cigarros eletrônicos que são uma febre. E a faixa etária é totalmente eclética: dos netos aos bisavós, tá tudo dominado por eles.
Mas convém explicar. O problema é de atitude. Não tenho a atitude de alguém que faz do ato de comer uma experiência social. Não é meu cérebro que está agindo quando eu como, mas meu aparelho digestivo. Em Paris, a pessoa quando vai comer, imbui-se de algum espírito que pelo jeito não bate com o meu.
Para mim, comer é algo prático: uma comida a quilo, um bufê, um rodízio de pizza ou carne... Mas aqui é todo um processo. Tem-se que sentar à mesa, pedir o menu, traduzir o menu para sua língua, lutar para fazer o garçom te entender, lembrar que jamais se deve chamar o garçom de garçom (há um tipo de lei criminal para quem faz isso), esperar uma eternidade, respirar a fumaça do cigarro que inevitavelmente vem da rua quando abrem a porta e no final comer um prato miniatura, em mesas bambas e minúsculas, com talheres tão pesados que se caírem no pé causam uma fratura, e pagar caríssimo, saindo com a sensação de que ainda está com fome e não comeu o que achou que tinha pedido. Convenhamos que comer não é para ser estressante.
E quem diria que o que me salvou nessa terra foi a existência de lugares sagrados como Mc Donald’s, Burger King, KFC e Starbucks. Não sei o que seria de mim sem eles com menções honrosas para os Kebabs que os turcos fazem como ninguém.
1.1.23
OS 18 LIVROS LIDOS DE OUTUBRO A DEZEMBRO DE 2022
Há 5 anos publico uma breve resenha dos livros lidos no ano. Para alguns deles dedico resenhas maiores. Minha média anual de leituras continua em 56 livros.
Em 2018
foram 40. Em 2019 foram 68 livros. Em 2020 li 61. Em 2021 o número foi de 55
livros e no ano passado foram lidos 60.
Divido as postagens sempre em três blocos. Foram 21 livros de Janeiro a Maio; outros 21 de Junho a Setembro e aqui estão os 18 livros que li de Outubro a Dezembro do ano passado.
6.12.22
OS BÓRGIAS
Há alguns dias, li essa série de quarto volumes de arte erótica criada pelo desenhista italiano Milo Manara, conhecido pelo seu traço voluptuoso, e que teve roteiro de um dos artistas multitalentos mais reconhecidos, o cineasta e poeta chileno Alejandro Jodorowsky.
A
série tem excelente qualidade em papel couchê e aborda política religiosa,
intrigas palacianas, conspiração pelo poder, luxúria e incesto, um fiel panorama
da Igreja Católica durante a renascença italiana do final século XV.
Os
quatro volumes são ricos em arte pornográfica e heresia, com diálogos crus que devem causar calafrios
em religiosos, mas não há nada nas imagens que não tenha acontecido nos quartos e salões nem tão secretos do Vaticano.
O volume 1: "Sangue Para o Papa" mostra o futuro papa Alexandre VI, ainda o poderoso cardeal espanhol Rodrigo Bórgia, tramando, subornando e matando seus adversários no conclave que ocorreu após a morte do seu predecessor, o Papa Inocêncio VIII, já famoso pela luxúria.
Os quatro filhos de Rodrigo Bórgia: Lucrécia, César, Giovanni e Jofre são cada um mais devasso e perigoso do que o outro e os desenhos dos corpos em combates físicos ou em relações sexuais em detalhes e cores vivas, são a marca registrada do desenhista Milo.
A história dos Bórgias já foi adaptada para tv pelo diretor Neil Jordan (de Entrevista com o Vampiro, Fim de Caso e Traídos Pelo Desejo, este último que lhe rendeu dois Oscars como diretor e roteirista) com o ator Jeremy Irons interpretando o papa Alexandre VI. O escritor Victor Hugo também escreveu uma peça adaptada para a Ópera de Donizetti: Lucrezia Borgia.
É chocante acompanhar o frenesi de violência de Rodrigo Bórgia que manda cortar os pênis de 150 frades amantes do belo cardeal Júlio Rovere, seu concorrente ao papado, além de matar o filho de outro cardeal arrancando-lhe os olhos com uma colher. Rodrigo não hesita em entregar sua própria amante a um velho em troca de voto.
Os volumes seguintes são: “Poder e Incesto”, “As Chamas da Fogueira” e “Tudo é Vaidade”, onde acompanhamos personagens como Leonardo da Vinci, seduzido por César Bórgia com seu próprio corpo para projetar suas máquinas de batalha e o filósofo e político Nicolau Maquiavel aconselhando César na guerra contra a França liderada pelo rei Carlos VIII.
Uma das história que sempre me impressionaram e que está contemplada na série é a guerra aberta do icônico padre dominicano Girolamo Savonarola, inimigo do papa, que levou Florença ao que ficou conhecido como A Fogueira das Vaidades, que levou centenas de fiéis a queimarem, em um verdadeiro frenesi, todos os seus objetos de arte e de luxo, terminando por levar o próprio Savonarola a ser condenado pelo papa à fogueira. É curioso que o termo Savonarola passou a ser utilizado como adjetivo para qualificar pessoas fanáticas, já tendo sido usado para designar o presidente Jair Bolsonaro.
Fiquei fã da arte de Milo Manara, que não conhecia. Agora já quero muito ler sua biografia ilustrada do pintor italiano Caravaggio, mestre supremo do chiaroscuro renascentista. Também me interessei pelo jogo Assassin's Creed em que Lucrécia é uma antagonista ao lado de César e do pai Rodrigo. O jogo retratada abertamente a relação incestuosa entre os irmãos César e Lucrécia.
27.11.22
UM MOMENTO DE LOUROS VERDES
Este livro, esgotado no Brasil, foi lançado nos anos 50 quando o autor estava com pouco mais de 20 anos. Ele era de uma família rica de políticos famosos, assumidamente homossexual, analista brilhante e que chegou a ser candidato ao senado nos EUA.
Dos sete contos deste
livro, que de um modo ou outro tratam do tema da homossexualidade, gostei
especialmente de três: “O Papo Roxo” tem um final belíssimo sobre a perda
brusca da inocência de duas crianças que tentam com dificuldade matar um
pássaro que sofria com uma asa quebrada “Ficamos ali parados de pé muito tempo,
sem olhar um para o outro, com a pilha de pedras entre nós. O sol brilhava,
esplêndido. Nada havia mudado no mundo, mas, de súbito, sem uma só palavra e no
mesmo momento, ambos começamos a chorar.”
O conto “Três Estratagemas” que se passa no litoral da Flórida, conta a história de um americano viúvo, aposentado, de meia-idade e com dentes postiços que passa os dias ociosamente tomando sol e bebendo rum enquanto aborda belos rapazes na praia: “É preciso ser prático. Não é POR QUE recebemos certas atenções e sim as atenções em si mesmas” e o fato de os rapazes que ele aborda não terem dinheiro lhe é conveniente: “Não é pior a pessoa ser amada por seu dinheiro do que por algo tão espúrio e efêmero quanto a beleza”.
Nos dois contos os personagens são tão masculinos que por não demonstrarem qualquer aparência estereotipada, surpreendem a todos pelo carinho deles. Tanto Gore Vidal quanto Caio Fernando Abreu fazem seus ‘heróis’ darem a volta por cima após a expulsão, como um tipo de redenção, o que é surpreendente no caso de Vidal que tem uma famosa veia cínica.
Ambos os finais são inesquecíveis. O do conto de Caio Fernando Abreu: “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz. Quase todos tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. E o do conto de Vidal: “Ofuscado pelo clarão do sol, ele [o professor que expulsa os rapazes], atravessou o quadrângulo, cônscio de que nada havia que pudesse fazer”.
26.11.22
O MINISTÉRIO DA FELICIDADE ABSOLUTA e O DEUS DAS PEQUENAS COISAS
O primeiro livro que li da autora e ativista indiana Arundhati Roy foi seu livro de estreia: O Deus das Pequenas Coisas que trata do amor proibido entre pessoas de castas diferentes na Índia. Fiquei tão encantado pela maneira sensível da autora contar a história, que a incluo nos meus livros favoritos da vida toda. A obra deu a Roy o privilégio de ser a primeira pessoa indiana a vencer o Man Booker Prize, a mais importante láurea literária do Reino Unido.
No seu segundo livro, O Ministério da Felicidade Absoluta, Arundhati Roy traça, 20 anos após o sucesso de O Deus das Pequenas Coisas, uma teia intrincada envolvendo Anjun, uma mulher transgênero muçulmana (uma hijra), uma criança abandonada que quer ser chamada de Saddam Hussein e uma jovem arquiteta perseguida pela sua luta pela libertação da Caxemira, entre vários outros personagens interessantíssimos numa ode aos excluídos da Índia, pungente retrato das discriminações e violações de direitos humanos em todos os possíveis e terríveis aspectos do seu país.
Em um dos trechos, repleto de dolorosa ironia, ela escreve: “Nada assustava mais aqueles assassinos do que a perspectiva de azar. Afinal, era para afastar o azar que os dedos a segurar espadas cortantes estavam cobertos de pedras da sorte e que os pulsos brandindo cassetetes de ferro estavam adornados com fios vermelhos amorosamente amarrados por mães zelosas”.
O livro reflete que num país com 300 milhões de deuses, a banalidade e naturalidade das doenças, da fome, corrupção, torturas, guerras civis, mendicância, acidentes de trem, filas gigantescas em hospitais imundos, cemitérios habitados por indigentes, vazamentos de gás, mutilações... são tão naturais que não chamam mais atenção, como uma paisagem que sempre esteve lá. Em outro trecho ela consegue trazer um pouco de humor negro, como quando diz: “Depois de uma festa, elas resolveram andar um pouco e tomar o ar fresco. Naquela época, havia algo como ar fresco na cidade”.
Surpreende também que apesar de tudo, a obra consiga ter tanto humor fino em meio aos horrores, um respiro para que o leitor consiga avançar pelas tragédias como em momentos em que descreve os hábitos das mulheres trans: “Ela aprendeu a se comunicar com a assinatura hijra de bater palmas com os dedos estendidos, como um tiro, e que podia significar qualquer coisa – sim, não, talvez, a piroca da sua irmã, você nasceu pelo cu. Só outra hijra era capaz de decodificar o que significava especificamente o estalo específico, naquele momento específico”.