24.5.23

OS 14 LIVROS LIDOS DE JANEIRO A MAIO DE 2023


Há 5 anos, publico breves resenhas dos livros lidos. Para alguns deles dedico resenhas maiores e divido as postagens sempre em três blocos. Aqui estão os 14 lidos de Janeiro a Maio deste ano entre físicos, e-books e áudio-livros. Esse número de 14 livros de Janeiro a Maio deste ano ficou abaixo dos lidos no mesmo período dos últimos (27 em 2019; 22 em 2020; 20 em 2021 e 21 em 2022)

1-UM CONTO DE NATAL - O primeiro livro em áudio-book desse ano e meu segundo de Charles Dickens após A Casa Soturna. Um clássico da Literatura já adaptado com sucesso para o cinema. Conta a história de Ebenezer Scrooge, homem avarento e solitário numa Londres gelada e que odeia o Natal. Uma noite, a aparição de um fantasma o fará repensar seu comportamento e despertará sentimentos adormecidos. Dickens escreveu esse livro para pagar as dívidas e a história virou um sucesso instantâneo de crítica e público. Foi a minha primeira experiência com áudio livros e achei muito confortável para ouvir enquanto caminho, por exemplo.

2-HOUSE CORINO – Li os 6 volumes iniciais da saga Duna, os 2 volumes do universo expandido: Os Caçadores e Os Vermes de Areia de Duna e outros 2 do chamado prelúdio de Duna: A Casa Atreides e A Casa Harkonnen.  Porém, como o volume que encerra os prelúdios não havia sido lançado no Brasil, li em inglês mesmo. Aqui temos a atmosfera dos livros iniciais: guerras planetárias que afetam futuro da humanidade envolvendo comércio da especiaria que só existe no planeta Duna. Quem é fã da saga vai reencontrar os traiçoeiros Dançarinos Faciais, o perigoso barão Harkonnen e as intrigantes madres Bene Gesserit. Mas também os queridinhos Duque Leto e Lady Jessica Atreides. Já li 12 livros envolvendo Duna, mas há mais 14 sequências não lançados no Brasil. Lá se vão meus dólares.

3-A MULHER/OS RAPAZES - Um pequeno livro do filósofo contemporâneo, professor, psicólogo e escritor francês Michel Foucault que aborda o estilo de vida a dois no período greco-romano, retratando os hábitos do casamento  e das relações homossexuais masculinas na época, destacando condutas como: fidelidade, virgindade e relações entre homens. Esse volume é compilado a partir do livro "O Cuidado de Si". O autor cita inúmeros filósofos gregos e romanos trazendo debates que abrem perspectivas desconcertantes, exceto para os interessados em pensar no sujeito com poder sobre si e sobre os outros. 

4-O CORTIÇO – De Aluísio Azevedo. Escrito em 1890, conta a história de João Romão, comerciante português do subúrbio carioca que sonhando em enriquecer, seduz a escava fugida Bertoleza, dona de uma quitanda e aproveita-se dela para criar um cortiço. O livro é repleto de personagens inesquecíveis, como a sedutora mulata Rita Baiana e Pombinha, moça discreta que se prostitui por influência da prostituta lésbica Léonie. Há uma cena de sexo lésbico tão crua que não sei como ele foi indicado para estudantes do ensino médio por tanto tempo. Só posso atribuir ao fato de se tratar de um clássico.

5-PRELÚDIO À FUNDAÇÃO – Após ter lido os 3 livros originais da série Fundação, de Isaac Asimov, faltavam os quatro seguintes. Esperava mais, principalmente nos diálogos, um tanto artificiais, na escolha dos nomes dos personagens, quase impronunciáveis e no excessivo uso de advérbios. Aqui, continuamos a seguir o matemático Hari Seldon, criador da psico-história e personagem principal da série. Nesse prelúdio porém, ele ainda não era o tal. O Império Galáctico ocupa 25 milhões de mundos com a capital no planeta Trantor, gigantesca metrópole com civilização avançadíssima e governada pelo inseguro imperador Cleon I que se sente ameaçado pelo jovem matemático. Seldon passa a fugir por se tornar o homem mais procurado da Galáxia. Run, Seldon. Run!

6-AS TRÊS IRMÃS – Mais um livro do gigante Anton Tchechov, de quem nunca me canso de ler os contos. Essa obra é um clássico de 1900 encenado no teatro milhares de vezes pelo mundo. A história dos irmãos moscovitas Olga, Maria, Irina e Andrei que acompanharam o pai militar para uma cidade provinciana e jamais se adaptaram à vida no lugar. As três irmãs sonham em voltar para Moscou e acompanhamos a sequência de frustrações para seus planos. A obra se apoia nos excelentes diálogos plenos de questionamentos sobre a vida, a solidão e os desejos humanos de uma classe social burguesa decaída. Assistindo personagens à deriva e sem habilidade alguma para colocar suas vidas num rumo, qualquer rumo. 

7-CATARINA DE MEDICI – A história da rainha francesa Catarina de Médici não cabe num único livro de tão rica, cheia de tramas e personagens. Ela passou para a História como uma rainha serpente e sua vida foi repleta de tramas e massacres. Acompanhamos seu nascimento na Itália na poderosa família de banqueiros Médici e seu casamento por um acordo político com o futuro rei da França. Já viúva e regente do filho mais velho, colocou os três filhos no trono da França e ao casar sua filha, a lendária rainha Margot, com o futuro rei Henrique IV, tornou-a também rainha. Um livro repleto de informações preciosas, inclusive a descrição dramática do infame massacre da noite de São Bartolomeu que matou milhares de protestantes franceses.

8-CONTOS DE ANTON TCHECHOV – Um áudio-livro que descobri ser uma excelente forma de ouvir contos curtos. Alguns dos 15 contos do livro são bastante poéticos, outros são dramáticos ou com um humor muito sutil. No primeiro conto, Gricha, Tchekhov fala pelo ponto de vista de um bebê, mas também temos pontos de vista de um soldado e de uma mulher. O conto O Bilhete de Loteria é hilário. Uma das vantagens desse áudio-livro é poder ouvir a pronúncia correta dos nomes dos personagens em russo pela voz do o ator Clóvis Tôrres. A tradução é de Tatiana Belinky, uma das mais consagradas e premiadas tradutoras de Tchekhov para o português.

9-A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS – Nono livro que leio da italiana Elena Ferrante. Acompanhamos o crescimento de Giovanna na Nápoles dos anos 90. Já na primeira página, a narradora relata uma frase do pai que determinará sua dificuldade de lidar com a dor do crescimento e perda da inocência quando o pai compara a falta de beleza da filha à da própria irmã Vittoria. Isso faz com que a adolescente associe sua falta de beleza à falta de caráter, marcando-a profundamente numa idade em que essas coisas são muito dolorosas. Essa tia misteriosa se torna uma obsessão e em busca dessa personagem enigmática (e assim em busca de si mesma), Giovanna, aos poucos, escapa do seu bairro chique de Nápoles para a periferia da cidade. 

10-REVIVAL – O 43º livro que li do mestre do terror Stephen King e, em minha opinião, não está entre os melhores nem entre os piores. Aqui não temos aquelas cenas repletas de sustos e medos, típicas dos livros mais famosos do autor. A história é um tanto arrastada. Começa quando o pequeno Jamie conhece o pastor Charles Jacobs, uma amizade que marca profundamente o menino e muitos anos depois, adulto e viciado, Jamie reencontra o antigo pastor e ambos criam um pacto sinistro É considerado o livro com um dos finais mais pessimistas de King. 

11-A CARTOMANTE – Conto de Machado de Assis originalmente publicado em 1884 no jornal Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro e que conta a história do triângulo amoroso composto por Vilela, Rita e Camilo. A bela Rita, em conflito, decide procurar uma cartomante. Ela é casada com Vilela, mas é apaixonada pelo amante Camilo, amigo de infância do marido. A chegada de cartas anônimas ameaça a paz de Rita e o triângulo amoroso vai rapidamente chegando ao seu final trágico. O narrador não faz qualquer juízo de valor sobre os personagens, deixando ao leitor a responsabilidade de julgar o comportamento deles. 

12-AS CAVERNAS DE AÇO – O autor Isaac Asimov publicou este livro na década de 1950 e ele integra a saga Os Robôs, da qual fazem parte os sete volumes da série Fundação. A história se passa em Nova Yorque, vários milênios no futuro quando o assassinato de um roboticista ameaça as frágeis relações diplomáticas entre a Terra e suas colônias siderais. O policial Elijah Baley é encarregado para investigar o crime, mas para sua estupefação, um parceiro inusitado é designado para acompanhá-lo: um robô. Um livro que consegue unir dois gêneros tão diversos: a ficção científica e o romance policial.

13-ESCRAVIDÃO-VOLUME I – Após ter lido a trilogia de Laurentino Gomes (1808, 1822 e 1889), iniciei sua segunda trilogia. O primeiro volume de Escravidão é espetacular e resulta de uma pesquisa de seis anos por 12 países e três continentes. O primeiro volume tem início com o primeiro leilão de escravizados africanos em Portugal e vai até a morte de Zumbi dos Palmares. Além de todo o horror da escravidão, me chama a atenção uma informação não menos absurda: em alguns locais da África, havia tribos em que os escravizados, ao morrerem, eram enterrados nus, com mãos e pés amarrados. Seus proprietários acreditavam que na outra vida, esses cativos mortos continuariam a servir à família morta do dono.

14-O PARQUE DAS IRMÃS MAGNÍFICAS – Primeiro livro que li da escritora trans Camila Sosa Villada que fugiu da família pobre e do pai violento e homofóbico no interior da Argentina para estudar em Córdoba. Para sobreviver e continuar seus estudos, Camila recorreu à prostituição e encontrou no Parque Sarmiento uma nova “família” e onde, pela primeira vez, ela encontrou proteção e carinho entre as “irmãs magníficas” do título, as outras travestis que se restituíam naquele parque: O livro é de uma honestidade crua e por vezes cruel, com relatos pungentes do cotidiano das travestis: a fome, o frio, a violência policial, a desumanização dos clientes, o vício e a AIDS. 


30.4.23

A CARNE MAIS BARATA DO MERCADO


Pode soar como implicância da minha parte ou mesmo a opinião de quem não tem lugar de fala. Acredito até que ambas as impressões podem estar certas, mas como sou implicante por natureza e não sou negro por circunstâncias, vou arriscar assim mesmo.

Falo da belíssima canção gravada por Elza Soares: “A Carne” composta por Marcelo Yuka e Seu Jorge e que tem o poderoso refrão: “A Carne Mais Barata do Mercado é a Carne Negra”. Essa música passou a ser executada recentemente por cantoras como Larissa Luz com o refrão alterado para: A Carne Mais Barata do Mercado ERA a Carne Negra. 

Essa mudança não é uma mera alteração gramatical. Ela afeta mortalmente o sentido da canção original e remete à ideia de que o empoderamento dos negros modificou a realidade desigual do país. Assim, pela nova versão, a carne mais barata do mercado NÃO é mais a carne negra.

Pergunto então o que teria tomado o lugar da carne negra no mercado da “carne”. Qual seria hoje aquela carne que, seguindo o restante da letra original da canção,  vai de graça pra o presídio, pra debaixo do plástico, de graça pra o subemprego e pra os hospitais psiquiátricos?

Sim, porque a alteração para a nova versão empoderada não ficou só no refrão, mas foi além ao cantar que a carne negra IA de graça pra o presídio/E para debaixo do plástico/Que IA de graça pra o subemprego/E para hospitais psiquiátricos”.

A mudança afeta o poder de denúncia da canção uma vez que se a carne negra não é mais a mais barata, tudo seria coisa do passado e já não é mais tão vergonhoso o que o nosso país faz (ou fez, como quer o intérprete) com seus negros. Ficou no passado.

Recentemente, no programa The Masked Singer Brasil na TV Globo, a cantora Larissa Luz cantou essa versão, como faz sempre em seus shows. Em um deles, disponível no YouTube em  https://www.youtube.com/watch?v=J4JsK7iazA8, ela faz um discurso proselitista em que justifica o porquê de a carne mais barata não ser mais a carne negra. Diz: “Agora não é mais assim porque a gente tem voz pra falar do que gosta e do que não gosta e como a gente quer que seja”. 

O fato de os negros, como diz Larissa Luz, terem (supostamente) apenas hoje voz para protestar contra o racismo, por si só não modifica a realidade do racismo. Foi exatamente o fato de que Elza Soares e os autores negros da canção tinham voz para falar sobre o tema que já cantavam que a “CARNE MAIS BARATA É A CARNE NEGRA”. Não é de agora que os negros têm voz para protestar. 

Assim, Larissa Luz se apropria, para si e para seus contemporâneos, da existência de tal voz atual, que seria tão poderosa ao ponto de modificar a realidade. De quebra ela ainda nega a existência das vozes dos que a precederam, incluindo as de quem cantou e de quem compôs a música original

Ao buscar importante e necessário empoderamento, a artista, infelizmente, erra ao fraudar uma obra de arte original, negando a existência de uma contínua marginalização. Se se pode fazer isso com uma canção, talvez os empoderados se achem no direito de fraudar outras obras de arte. O que será que pensariam disso Elza Soares e os autores Marcelo Yuka e Seu Jorge?

27.4.23

A VIDA MENTIROSA DOS ADULTOS

Este é o nono livro que eu leio da badalada autora italiana Elena Ferrante que, como sempre faz em suas obras, aborda com maestria histórias de protagonistas femininas. Ferrante fez isso na sua Tetralogia Napolitana e nos romances Dias de Abandono, Um Amor Incômodo e A Filha Pedida, a maioria deles adaptados para as telas, como é o caso do seu novo livro: A Vida Mentirosa dos Adultos, lançado em plena pandemia e que agora pode ser conferido em seis episódios na Netflix.

Aqui, acompanhamos o crescimento da pós-adolescente Giovanna, filha de intelectuais de esquerda na Nápoles dos anos 90. Já na primeira página do livro, a narradora relata uma frase entreouvida do pai que a marcará profundamente e determinará sua dificuldade de lidar com a dor do crescimento e a perda da inocência e da ingenuidade.

"Dois anos antes de sair de casa, meu pai disse à minha mãe que eu era muito feia. [...] Tudo — os espaços de Nápoles, a luz azul de um fevereiro gélido, aquelas palavras — ficou parado. Eu, por outro lado, escapei para longe e continuo a escapar também agora, dentro destas linhas que querem me dar uma história, enquanto, na verdade, não sou nada, nada de meu, nada que tenha de fato começado ou se concretizado: só um emaranhado que ninguém, nem mesmo quem neste momento escreve, sabe se contém o fio certo de uma história ou se é apenas uma dor embaralhada, sem redenção.”

O pai compara a falta de beleza da filha com a da sua própria irmã Vittoria, ovelha negra banida da família, e tal comparação faz com que a adolescente associe a sua falta de beleza à falta de caráter, marcando-a profundamente numa idade em que essas coisas são extremamente dolorosas. Essa tia misteriosa se torna uma obsessão e em busca dessa personagem enigmática (e assim em busca de si mesma), Giovanna, aos poucos, escapa do conforto do seu bairro chique de Nápoles para a periferia industrial e cinzenta da cidade. O livro a segue nessa jornada e, ao final, veremos como todos os percalços farão nossa jovem narradora se tornar uma mulher. Não é um final redondo, como é comum acontecer nos romances de Elena Ferrante mas é, indiscutivelmente, uma jornada de crescimento interior e que só acontece quando aprendemos a lidar com as inevitáveis dores do crescimento.

Impossível não tratar da excelente trilha sonora da série da Netflix. Um verdadeiro acompanhamento de luxo para a leitura do livro. Quer um conselho? leia o livro ouvindo a trilha disponível inteirinha no site https://soundtracki.com/pt-pt/televisao/a-vida-mentirosa-dos-adultos-temporada-1-trilha-sonora, ou em qualquer tocador de música online. 

Destaco a ótima abertura da série com a canção Nun te Scurdà (Não Vou Te Esquecer) e também a cena linda em que Vittoria e Giovanna dançam juntas ao som de Edith Piaf com Non, Je Ne Regrette Rien

Outra canção ícone dos anos 90, All That She Wants dos suecos do Ace of Base está na série, mas na minha opinião a abertura do episódio 4, intitulado Solitudine (Solidão), com imagens de trás para frente e em câmera lenta, é um escândalo de tão bela e merecia, por si só, um prêmio, sobretudo porque é acompanhada da canção  In a Broken Dream, na voz rouca de Rod Stewart. É um tiro no coração.

 Afinal, o que você está fazendo que não correu para ler o livro, assistir a série ou ouvir a trilha sonora? 

19.4.23

PARIS É PARA OS FORTES E CHIQUES

          Então o quê eu estou fazendo aqui?

Brigitte, você já soube a última do Voltaire?
Brigitte, você já soube
a última do Voltaire?

     Escrevo este texto no quinto dos sete dias que passarei aqui em Paris. Esta é   a minha quarta vez na cidade e estou me perguntando, desde que aqui cheguei, se estou mesmo no lugar certo. Pode parecer uma heresia dizer isso, até mesmo soar blasé ou boçal, mas vou arriscar assim mesmo. Não nasci pra Paris. Nem roupa pra Paris eu tenho!

      Talvez seja algum tipo de fadiga de material, mas talvez eu devesse ter escolhido outro destino. Acho que quatro vezes em Paris pode parecer demais quando não se conhecem ainda lugares como Praga, Viena, Budapeste, São Petersburgo, Milão... Por que Paris?

   Vamos por partes: 

CLIMA – Imaginava eu que vir na Primavera seria uma boa ideia já que nas outras vezes vim em outras estações, mas qual a minha surpresa ao me deparar com um frio indecente e uma tão grande explosão de pólen na atmosfera que, conjugados, me levaram a uma alergia dupla. E tome-lhe antialérgico e nariz escorrendo e garganta arranhando. Como disse, não tenho roupa para ser elegante e acho que mesmo que me vestisse de Gucci ou Hugo Boss da cabeça aos pés, não passaria de um soteropolitano disfarçado.

MODA - E por falar em grifes, uma coisa que chega a ser irritante em Paris é a chiqueza das pessoas. Não sei nem o nome dessas roupas, desses tecidos, dessas combinações e marcas, mas vá ser chique assim lá na Fashion Week! Mas confesso que dá sim um certo prazer culpado em ver essas mulheres desfilando como se estivessem numa propaganda de perfume e esses homens elegantes usando umas roupas que mesmo que eu as vestisse, não passaria de um espantalho. Paris, inegavelmente, não é minha praia. Minha deselegância não combina com os bulevares arborizados e perfumados daqui.

IMIGRANTES - Mas tenho uma ressalva. A cidade tem uma população estrangeira que salta aos olhos, seja pelo biotipo seja pela atitude e vestimentas. Paris tem números colossais de imigrantes, principalmente africanos, asiáticos, latinos e orientais de modo geral. Essas pessoas assumem quase todos os empregos que ou os franceses não têm interesse em ocupar ou são mal remunerados ou as duas coisas. Em praticamente todos os hotéis, quitandas, restaurantes, supermercados, metrôs, em todos os lugares é impossível não encontrar árabes, haitianos, marroquinos, argelinos, indianos, paquistaneses. É um mundo à parte. E roupas à parte também.

IDIOMA- Para uma pessoa como eu que só fala uma dúzia de palavras em Francês, convenhamos que é muita ingenuidade achar que vai se sair bem aqui. Todo mundo sabe que os franceses sabem falar Inglês, mas se recusam a fazê-lo por um tipo de nostalgia do tempo em que o Francês era a língua mais falada no mundo (mesmo que nem mesmo os avós deles viveram esse período), ou por pura implicância e mau humor mesmo. Se já é difícil falar com um deles sem falar Francês, é impossível falar com um imigrante sem falar o Francês. A não ser com os indianos das quitandas, que falam um Inglês incompreensível, o que resulta no mesmo.

DINHEIRO – Vir para Paris num período em que o valor do Euro está custando mais de R$ 5,60 é saber que vai se gastar mais de R$ 100,00 por prato de comida e uma simples coca cola custará R$ 25,00. Na verdade, pensando bem, não é o preço das coisas aqui que está alto, mas nosso real é que está muito desvalorizado.

CIGARRO E BOEMIA – Acho que eu estou cada vez mais velho e ranzinza, mas não entendo o prazer que tantos parisienses têm em ficar na beira de uma calçada, do lado de fora de um restaurante, bebendo o que quer que um parisiense beba e fumando como umas chaminés.
O ambiente é insalubre, frio, poluído e com uma tagarelice que incomoda até meus pensamentos quando passo perto na calçada, apenas pelo segundo de tempo suficiente para atravessar a aglomeração. Então fico pensando como é que as pessoas que se sentam nas mesas vizinhas fazem para conversar e se entender. Mas uma coisa eu tenho que reconhecer: aqui não pegou a praga da música ao vivo, que em Salvador se entende por aquela num volume proibitivo para a saúde humana.
Voltando à boemia parisiense, minha alma ranzinza fica se questionando se um cidadão que mora numa cidade linda como esta, cheia de história, museus e tanta beleza, como essa pessoa não fica em casa refletindo sobre como é privilegiada ou lendo um livro de Filosofia....mas não, esse povo vai tudo pra os cafés e restaurantes pra tagarelar e pitar cachimbo e os malditos cigarros eletrônicos que são uma febre. E a faixa etária é totalmente eclética: dos netos aos bisavós, tá tudo dominado por eles.

RESTAURANTES – Esse aqui se tornou o ponto mais crítico da minha viagem. Vou dizer uma heresia imensa, mas preciso fazer isso: NÃO SE PODE COMER BEM EM PARIS. Eu jamais imaginei dizer isso se tratando de um lugar internacionalmente reconhecido pela excelência da sua culinária. Mas meu estômago não sabe mentir, então eu não sei se estou na cidade errada ou então eu não sei o que é comer.
Mas convém explicar. O problema é de atitude. Não tenho a atitude de alguém que faz do ato de comer uma experiência social. Não é meu cérebro que está agindo quando eu como, mas meu aparelho digestivo. Em Paris, a pessoa quando vai comer, imbui-se de algum espírito que pelo jeito não bate com o meu.  
Para mim, comer é algo prático: uma comida a quilo, um bufê, um rodízio de pizza ou carne... Mas aqui é todo um processo. Tem-se que sentar à mesa, pedir o menu, traduzir o menu para sua língua, lutar para fazer o garçom te entender, lembrar que jamais se deve chamar o garçom de garçom (há um tipo de lei criminal para quem faz isso), esperar uma eternidade, respirar a fumaça do cigarro que inevitavelmente vem da rua quando abrem a porta  e no final comer um prato miniatura, em mesas bambas e minúsculas, com talheres tão pesados que se caírem no pé causam uma fratura, e pagar caríssimo,  saindo com a sensação de que ainda está com fome e não comeu o que achou que tinha pedido. Convenhamos que comer não é para ser estressante.
E quem diria que o que me salvou nessa terra foi a existência de lugares sagrados como Mc Donald’s, Burger King, KFC e Starbucks. Não sei o que seria de mim sem eles com menções honrosas para os Kebabs que os turcos fazem como ninguém.

1.1.23

OS 18 LIVROS LIDOS DE OUTUBRO A DEZEMBRO DE 2022

 


Há 5 anos publico uma breve resenha dos livros lidos no ano. Para alguns deles dedico resenhas maiores. Minha média anual de leituras continua em 56 livros. 

Em 2018 foram 40. Em 2019 foram 68 livros. Em 2020 li 61. Em 2021 o número foi de 55 livros e no ano passado foram lidos 60. 

Divido as postagens sempre em três blocos. Foram 21 livros de Janeiro a Maio; outros 21 de Junho a Setembro e aqui estão os 18 livros que li de Outubro a Dezembro do ano passado.

1- O SR. GANIMEDES, de Alfredo Gallis – Romance português publicado em 1906. O título é referência ao belo efebo grego por quem até Zeus se apaixonou e antecipa a questão da disforia de gênero e do erotismo do travestismo. História de uma viúva rica que se apaixona por Leonel, jovem esbelto e afeminado, apaixonado pelo rude Liberato que gostava de o ver vestido de mulher. Apesar da homofobia, nas três oportunidades que o livro tem para falar dos dois homens na alcova, não esconde a atmosfera quentíssima ao tratar das cenas em que pessoas espiam o casal gay durante sexo, algo indisfarçavelmente saboroso já que nenhum dos demais casais do livro tem mais química do que a deliciosa dupla Leonel e Liberato.

2-CONTOS GÓTICOS RUSSOS Volume com seis contos: O primeiro: O Retrato, de Nikolai Gógol, é sobre um pintor pobre que recorre a forças demoníacas para melhorar de vida e é considerado um conto de terror em estado puro.  Os dois contos seguintes são: A Família do Vurdalak e O Encontro 300 Anos Depois, de Alexei Tolstói. Um trata da figura lendária do upyr russo, considerado entre os melhores do gênero vampiresco e o conto seguinte é sobre um cavaleiro e uma dama que tentam rechaçar, com uma cruz milagrosa, seus pesadelos. O quarto conto é Os Fantasmas, de Ivan Turguênev, que narra as viagens de um fazendeiro ávido por emoções.  O quinto conto é Bobok, de Fiódor Dostoiévski, que satiriza os temas góticos e o último é O Monge Negro, de Anton Tchêkhov, onde um professor contracena com um ente sobrenatural. 

3- CAIXA DE PÁSSAROS – Livro de Josh Malerman, adaptado para o cinema com Sandra Bullock como protagonista, uma mãe que precisa sobreviver com seus filhos num mundo pós-apocalíptico. Eles tentam a todo custo escapar de criaturas imateriais que, ao serem vistas, fazem com que as pessoas que as veem tornem-se suicidas e assassinos. De olhos vendados, eles navegam num rio para chegar à segurança de um refúgio onde não sabem se conseguirão atingir. O livro tem narrativa não linear, o que quebra a atmosfera de suspense que o filme conseguiu solucionar melhor. A história faz um interessante paralelo com a do também pós-apocalíptico: Um Lugar Silencioso, em que uma família tem que sobreviver no máximo silêncio possível para não ser morta por criaturas misteriosas muito sensíveis ao som. 

4- CONTOS CLÁSSICOS DE VAMPIRO – Coletânea com sete dos mais importantes contos sobre a figura clássica do vampiro. O primeiro conto é "Trecho de um Romance" de Lord Byron, que inspirou John Polidori para "O Vampiro", segundo conto, publicado há mais de 200 anos e considerado uma das mais influentes histórias vampirescas da literatura, que introduziu o estereótipo do vampiro aristocrata . O terceiro conto é "O Hóspede de Drácula" de Bram Stoker, publicado postumamente pela viúva do autor. O conto seguinte é o gótico: “Porque o Sangue é Vida” de Francis Crawford, trágica história de uma vítima de assassinado que retorna como vampira. “A Morta Amorosa” de Théophile Gautier, é o último e trás uma vampira sensual que seduz um padre.

5- SOB A REDOMA- Dos mais de 78 livros do mestre Stephen King, este foi o 42º que li e um dos maiores escritos pelo autor. Devorei suas 960 páginas em apenas nove dias do tanto que foi minha incapacidade de abandonar a leitura. Foi adaptado para série de TV com três temporadas horríveis. Uma redoma invisível e intransponível surge subitamente, isolando do mundo os moradores da pequena Chester's Mill, no Maine. As pessoas presas precisam encontrar seus próprios meios de sobreviver com os recursos sendo reduzidos e tensões crescendo exponencialmente. Tem um dos melhores vilões dos livros King (Big Jim), um casal protagonista tão certinho e com a química de duas pedras sendo o homem um militar sem nenhum sex appeal e com o inacreditável nome feminino de Dale "Barbie" Barbara. 

6- UMA HISTÓRIA DOS POVOS ÁRABES – Um livro clássico de Albert Hourani que nos permite conhecer os elementos que construíram o mundo árabe. Tem início nos primórdios do Islã com o surgimento de Maomé e as suas divisões que geraram diferentes correntes do islamismo. A segunda parte trata do ápice da civilização islâmica até seu enfraquecimento entre os séculos XI e XV. A obra transporta o leitor para o mundo muçulmano, suas aldeias, desertos, palácios e mesquitas. Ele aborda a era Otomana, as guerras mundiais e do papel servil da mulher na cultura árabe onde o costume dizia que uma mulher só deveria sair de casa três vezes na vida: para ser conduzida à casa do marido, no enterro dos seus pais e quando ia ser enterrada. 

 

7- O RECICLADOR- Esse livro é um spin-off meio bastardo da famosa série Wild Cards, editada por George R. R. Martin, autor de Game of Thrones  e organizador dos livros de Wild Cards escritos por um consórcio de mais de 40 autores sobre o espalhamento de um vírus alienígena que contamina milhões de pessoas pelo mundo, matando a maioria dos infectados (as Rainhas Negras) e alterando o DNA de outros, conferindo poderes estranhos a alguns poucos (os Ases) e deformações horríveis aos demais (os Curingas). Nesse pequeno livro, David Levine criou um infectado favelado carioca que descobre o poder de criar um tipo de carapaça protetora feita de lixo. A história é muito bobinha e sem emoção e cujo único atrativo é ter um personagem brasileiro integrando a galeria dos infectados pelo vírus “Carta Selvagem”. A série já teve mais de 20 livros lançados nos EUA, com infelizmente apenas 9 deles no Brasil.

8 a 11- OS BÓRGIAS – Essa série de quarto volumes de arte erótica, criada pelo aclamado desenhista italiano Milo Manara e com roteiro de um dos artistas multitalentos mais reconhecidos, o chileno Alejandro Jaborowsky tem excelente qualidade em papel couchê e aborda política, religião, intrigas palacianas, conspiração pelo poder, luxúria e incesto, um fiel panorama da Igreja Católica durante a renascença italiana do final século XV. Os quatro volumes são ricos em arte pornográfica e heresia, o que deve causar calafrios em religiosos, mas não há nada nas imagens que não tenha acontecido nos quartos nem tão secretos do Vaticano. 

No volume 1: Sangue Para o Papa mostra o futuro papa Alexandre VI ainda um poderoso cardeal tramando, subornando e matando seus adversários no conclave que ocorreu após a morte do seu predecessor, o Papa Inocêncio VIII já então famoso pela luxúria. Os quatro filhos de Rodrigo Bórgia com a amante Vanozza, são Lucrécia, César, Giovanni e Jofre, cada um mais devasso e perigoso do que o outro. 

O desenho dos corpos em detalhes e cores vivas são a marca registrada do desenhista Milo. É chocante acompanhar o frenesi de violência de Rodrigo Bórgia que manda cortar os pênis de 150 frades amantes do belo cardeal Júlio Rovere, seu concorrente ao papado, além de matar o filho de outro cardeal arrancando-lhe os olhos com uma colher. Rodrigo não hesita em entregar a sua amante a um velho em troca de voto.  Há uma edição em capa dura que reúne os quatro volumes.


Nos volumes “Poder e Incesto”, “As Chamas da Fogueira” e “Tudo é Vaidade” acompanhamos personagens como Leonardo da Vinci seduzido por César Bórgia com seu próprio corpo para convencer o pintor a desenhar máquinas de guerra e o filósofo Nicolau Maquiavel aconselhando César na guerra contra a França contra o rei francês Carlos VIII. É ilustrada também a campanha do dominicano Girolamo Savonarola que levou Florença ao que ficou conhecido como Fogueira das Vaidades convencendo fiéis a queimar todos os objetos de arte e luxo, terminando por ser condenado à fogueira.


12- UM MOMENTO DE LOUROS VERDES - Terceiro livro que li do escritor, ensaísta e dramaturgo norte-americano Gore Vidal. Este livro foi lançado nos anos 50 quando o autor tinha 20 anos. Dos sete contos, gostei especialmente do “Troféu Zenner”, que tenho certeza que inspirou Caio Fernando Abreu a escrever Aqueles Dois, do seu livro Morangos Mofados. Nos dois contos, a homossexualidade dos personagens nunca é citada, mas eles são expulsos do colégio e da repartição devido ao seu afeto mútuo suspeito. Ambos os finais são inesquecíveis. O do conto de Caio: “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. E o do conto de Vidal: “Ofuscado pelo clarão do sol, ele [o professor que expulsa os rapazes], atravessou o quadrângulo, cônscio de que nada havia que pudesse fazer”.

13- SE A RUA BEALE FALASSE – Segundo livro que li do norte-americano, ativista gay e militante negro James Baldwin após o maravilhoso O Quarto de Giovanni.  Este segundo livro teve adaptação para o cinema que deu o Oscar e o Globo de Ouro à atriz Regina King. História de Tish que se descobre grávida do noivo Fonny, preso injustamente pelo estupro de uma porto-riquenha. A mãe de Fonny viaja a Porto Rico para confrontar a suposta vítima do estupro, ela também uma vítima do sistema, cena que no demonstra o enorme talento de Regina King. Os protagonistas negros enfrentam o peso do racismo sistêmico da polícia e do Judiciário: “Acho que não tem um branco neste país que não fique de pau duro ao ouvir um preto gemendo de dor”, diz o atormentado Fonny.

14- O MINISTÉRIO DA FELICIDADE ABSOLUTA - Segundo livro que li da autora e ativista indiana Arundhati Roy mas que não me encantou tanto quanto o seu livro de estreia: “O Deus das Pequenas Coisas”. Neste segunda obra, a autora traça uma teia intrincada envolvendo uma mulher transgênero muçulmana, uma criança abandonada que quer ser chamada de Saddam Hussein e uma jovem perseguida por sua luta pela libertação da Caxemira, entre vários outros personagens numa ode aos excluídos da Índia, retrato das violações de direitos humanos em todos os terríveis aspectos do país. O livro reflete que num país com 300 milhões de deuses, a banalidade e naturalidade das doenças, da fome, corrupção, torturas, guerras civis, mendicância, filas gigantescas em hospitais imundos, cemitérios habitados por indigentes... são tão naturais que não chamam mais atenção, como uma paisagem que sempre esteve lá. 

15- SHALIMAR, O EQUILIBRISTA – O 10º livro que li de Salman Rushdie e que curiosamente aborda o mesmo tema do livro da sua conterrânea Arundhati Roy: os conflitos na Caxemira. Como sempre, Rushdie dá um show sem se desviar do seu característico humor fino, tornando este um dos seus melhores trabalhos. Uma história épica de amor e vingança em meio a revoluções, atentados políticos, xenofobia, limpezas étnicas e tabus religiosos que transcorrem em sessenta anos no século XX. O relato tem início com a paixão súbita e proibida de um embaixador americano na Índia por uma bela dançarina da Caxemira, o que desencadeia acontecimentos trágicos.

16 - A CASA DOS ESPÍRITOS – Primeiro livro que li da chilena Isabel Allende e seu maior sucesso. Confesso que por muito tempo tive um preconceito mal justificado pelas obras da autora mas, felizmente acabei com isso e fiquei apaixonado pela sua escrita. O livro trata de três gerações de uma família movida pelo amor, ódio e pela vingança, uma saga familiar que se mescla com a turbulência política em um país latino-americano não identificado. Uma frase do protagonista Esteban Trueba resume o espírito dramático e sociológico da possibilidade de revolução: “O marxismo não tem a mínima possibilidade na América Latina, pois não contempla o lado mágico das coisas. É uma doutrina ateia, prática e funcional. Não pode ter êxito aqui”. 

17- A ARTE DA GUERRA- De Sun Tzu. Confesso que não sei por que li esse livro, já que o não me interessa. Minto. Li porque ele é citado em tantos filmes e  obras da cultura pop que achei que precisava ter uma opinião. Obra clássica do pensador chinês Sun Tzu, escrita mais de 500 anos antes de Cristo, é considerado o mais perfeito manual estratégico para conflitos armados, mas que pode ser aplicado em outras áreas da vida, tendo se transformado num tratado sobre planejamento e liderança e virado uma febre entre os empreendedores modernos e até esportistas e artistas. Introduzido no Japão antes do século I, desempenhou grande um papel na unificação do país. O próprio Napoleão Bonaparte usou os ensinamentos nas suas guerras contra o resto da Europa. 


18 - POESIA REUNIDA – De Martha Medeiros. Nunca tinha lido nada dessa autora gaúcha que já vendeu mais de um milhão de livros no Brasil e é considerada uma das nossas maiores cronistas. Este volume é uma seleção de poesias de seus quatro primeiros livros Strip-Tease, Meia-Noite e um Quarto, Persona Non Grata e De Cara Lavada, escritos entre 1985 e 1995. Fiquei agradavelmente surpreso com a descoberta dos textos dessa autora que tem uma profunda voz feminina com uma poesia direta, sensual e ao mesmo tempo simples e riquíssima. Exemplos: “fui vista em festas que nunca fui/esquiando na neve que nunca vi/falando com gente que sequer conheço/incrível como minha vida evolui/nas horas em que não me pertenço”. Ou em quase haicais como “fica o dito/pelo maldito” e “quando dou pra ti/sou mulher/quando dou por mim/solidão”.

 

 

 




6.12.22

OS BÓRGIAS

Há alguns dias, li essa série de quarto volumes de arte erótica criada pelo desenhista italiano Milo Manara, conhecido pelo seu traço voluptuoso, e que teve roteiro de um dos artistas multitalentos mais reconhecidos, o cineasta e poeta chileno Alejandro Jodorowsky.

A série tem excelente qualidade em papel couchê e aborda política religiosa, intrigas palacianas, conspiração pelo poder, luxúria e incesto, um fiel panorama da Igreja Católica durante a renascença italiana do final século XV.

Os quatro volumes são ricos em arte pornográfica e heresia, com diálogos crus  que devem causar calafrios em religiosos, mas não há nada nas imagens que não tenha acontecido nos quartos e salões nem tão secretos do Vaticano.

O volume 1: "Sangue Para o Papa" mostra o futuro papa Alexandre VI, ainda o poderoso cardeal espanhol Rodrigo Bórgia, tramando, subornando e matando seus adversários no conclave que ocorreu após a morte do seu predecessor, o Papa Inocêncio VIII, já famoso pela luxúria.

Os quatro filhos de Rodrigo Bórgia: Lucrécia, César, Giovanni e Jofre são cada um mais devasso e perigoso do que o outro e os desenhos dos corpos em combates físicos ou em relações sexuais em detalhes e cores vivas, são a marca registrada do desenhista Milo. 

A história dos Bórgias já foi adaptada para tv pelo diretor Neil Jordan (de Entrevista com o Vampiro, Fim de Caso e Traídos Pelo Desejo, este último que lhe rendeu dois Oscars como diretor e roteirista) com o ator Jeremy Irons interpretando o papa Alexandre VI. O escritor Victor Hugo também escreveu uma peça adaptada para a Ópera de Donizetti: Lucrezia Borgia

É chocante acompanhar o frenesi de violência de Rodrigo Bórgia que manda cortar os pênis de 150 frades amantes do belo cardeal Júlio Rovere, seu concorrente ao papado, além de matar o filho de outro cardeal arrancando-lhe os olhos com uma colher. Rodrigo não hesita em entregar sua própria amante a um velho em troca de voto.

Os volumes seguintes são: “Poder e Incesto”, “As Chamas da Fogueira” e “Tudo é Vaidade”, onde acompanhamos personagens como Leonardo da Vinci, seduzido por César Bórgia com seu próprio corpo para projetar suas máquinas de batalha e o filósofo e político Nicolau Maquiavel aconselhando César na guerra contra a França liderada pelo rei Carlos VIII. 

Uma das história que sempre me impressionaram e que está contemplada na série é a guerra aberta do icônico padre dominicano Girolamo Savonarola, inimigo do papa, que levou Florença ao que ficou conhecido como A Fogueira das Vaidades, que levou centenas de fiéis a queimarem, em um verdadeiro frenesi, todos os seus objetos de arte e de luxo, terminando por levar o próprio Savonarola a ser condenado pelo papa à fogueira. É curioso que o termo Savonarola passou a ser utilizado como adjetivo para qualificar pessoas fanáticas, já tendo sido usado para designar o presidente Jair Bolsonaro.

Fiquei fã da arte de Milo Manara, que não conhecia. Agora já quero muito ler sua biografia ilustrada do pintor italiano Caravaggio, mestre supremo do chiaroscuro renascentista. Também me interessei pelo jogo Assassin's Creed em que Lucrécia é uma antagonista ao lado de César e do pai Rodrigo. O jogo retratada abertamente a relação incestuosa entre os irmãos César e Lucrécia. 



27.11.22

UM MOMENTO DE LOUROS VERDES

Este foi o terceiro livro que li (após Criação e Ao Vivo do Calvário) e o primeiro livro de contos de autoria do romancista,  ator, tradutor, ensaísta e dramaturgo norte-americano Gore Vidal. 

Este livro, esgotado no Brasil, foi lançado nos anos 50 quando o autor estava com pouco mais de 20 anos. Ele era de uma família rica de políticos famosos, assumidamente homossexual, analista brilhante e que chegou a ser candidato ao senado nos EUA. 

Dos sete contos deste livro, que de um modo ou outro tratam do tema da homossexualidade, gostei especialmente de três: “O Papo Roxo” tem um final belíssimo sobre a perda brusca da inocência de duas crianças que tentam com dificuldade matar um pássaro que sofria com uma asa quebrada “Ficamos ali parados de pé muito tempo, sem olhar um para o outro, com a pilha de pedras entre nós. O sol brilhava, esplêndido. Nada havia mudado no mundo, mas, de súbito, sem uma só palavra e no mesmo momento, ambos começamos a chorar.”

O conto “Três Estratagemas” que se passa no litoral da Flórida, conta a história de um americano viúvo, aposentado, de meia-idade e com dentes postiços que passa os dias ociosamente tomando sol e bebendo rum enquanto aborda belos rapazes na praia: “É preciso ser prático. Não é POR QUE recebemos certas atenções e sim as atenções em si mesmas” e o fato de os rapazes que ele aborda não terem dinheiro lhe é conveniente: “Não é pior a pessoa ser amada por seu dinheiro do que por algo tão espúrio e efêmero quanto a beleza”.

Mas o conto mais bonito é “O Troféu Zenner”, publicado em 1950 e que, tenho certeza, inspirou o escritor Caio Fernando Abreu a escrever Aqueles Dois, conto publicado no seu livro Morangos Mofados, de 1982. Tanto no conto de Vidal quanto no de Caio Fernando, a homossexualidade dos personagens nunca é citada, mas nos dois casos eles são expulsos do colégio e da repartição devido ao seu suspeito afeto mútuo. Até seus nomes são curiosamente semelhantes: Sawyer e Flynn e Saul e Raul.

Nos dois contos os personagens são tão masculinos que por não demonstrarem qualquer aparência estereotipada, surpreendem a todos pelo carinho deles. Tanto Gore Vidal quanto Caio Fernando Abreu fazem seus ‘heróis’ darem a volta por cima após a expulsão, como um tipo de redenção, o que é surpreendente no caso de Vidal que tem uma famosa veia cínica. 

Ambos os finais são inesquecíveis. O do conto de Caio Fernando Abreu: “Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz. Quase todos tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram”. E o do conto de Vidal: “Ofuscado pelo clarão do sol, ele [o professor que expulsa os rapazes], atravessou o quadrângulo, cônscio de que nada havia que pudesse fazer”.


26.11.22

O MINISTÉRIO DA FELICIDADE ABSOLUTA e O DEUS DAS PEQUENAS COISAS

O primeiro livro que li da autora e ativista indiana Arundhati Roy foi seu livro de estreia: O Deus das Pequenas Coisas que trata do amor proibido entre pessoas de castas diferentes na Índia. Fiquei tão encantado pela maneira sensível da autora contar a história, que a incluo nos meus livros favoritos da vida toda. A obra deu a Roy o privilégio de ser a primeira pessoa indiana a vencer o Man Booker Prize, a mais importante láurea literária do Reino Unido.

No seu segundo livro, O Ministério da Felicidade Absoluta, Arundhati Roy traça, 20 anos após o sucesso de O Deus das Pequenas Coisas, uma teia intrincada envolvendo Anjun, uma mulher transgênero muçulmana (uma hijra), uma criança abandonada que quer ser chamada de Saddam Hussein e uma jovem arquiteta perseguida pela sua luta pela libertação da Caxemira, entre vários outros personagens interessantíssimos numa ode aos excluídos da Índia, pungente retrato das discriminações e violações de direitos humanos em todos os possíveis e terríveis aspectos do seu país.

Se sua primeira obra, que é o maior best-seller indiano, levou a autora a responder a um processo por “obscenidade”, esse segundo livro lhe rendeu ameaças de morte por retratar criticamente o conflito na Caxemira. Um parlamentar indiano propôs que Roy fosse utilizada pelo exército como escudo humano. 

Em um dos trechos, repleto de dolorosa ironia, ela escreve: “Nada assustava mais aqueles assassinos do que a perspectiva de azar. Afinal, era para afastar o azar que os dedos a segurar espadas cortantes estavam cobertos de pedras da sorte e que os pulsos brandindo cassetetes de ferro estavam adornados com fios vermelhos amorosamente amarrados por mães zelosas”.

O livro reflete que num país com 300 milhões de deuses, a banalidade e naturalidade das doenças, da fome, corrupção, torturas, guerras civis, mendicância, acidentes de trem, filas gigantescas em hospitais imundos, cemitérios habitados por indigentes, vazamentos de gás, mutilações... são tão naturais que não chamam mais atenção, como uma paisagem que sempre esteve lá. Em outro trecho ela consegue trazer um pouco de humor negro, como quando diz: “Depois de uma festa, elas resolveram andar um pouco e tomar o ar fresco. Naquela época, havia algo como ar fresco na cidade”.

Talvez o leitor brasileiro menos informado sobre a conflituosa história da Índia, não aproveite tanto os capítulos em que a autora trata das guerras da Caxemira e os conflitos civis envolvendo indianos, muçulmanos paquistaneses e aguerridos caxemires, realmente com muitas informações que não estamos acostumados, mas é reconhecível por qualquer um o drama da discriminação sofrida pelas pessoas trans em praticamente todo o mundo: “Em urdu, a única língua que ela conhecia, todas as coisas – tapetes, roupas, livros, canetas, instrumentos musicais, tinham gênero. Tudo ou era masculino ou feminino. Tudo, menos seu bebê. Sim, ela sabia que havia uma palavra para os iguais a ele: 'hijra'. Duas palavras, na verdade: 'hijra' e 'kinnar'. Mas duas palavras não fazem uma língua”.

Surpreende também que apesar de tudo, a obra consiga ter tanto humor fino em meio aos horrores, um respiro para que o leitor consiga avançar pelas tragédias como em momentos em que descreve os hábitos das mulheres trans: “Ela aprendeu a se comunicar com a assinatura hijra de bater palmas com os dedos estendidos, como um tiro, e que podia significar qualquer coisa – sim, não, talvez, a piroca da sua irmã, você nasceu pelo cu. Só outra hijra era capaz de decodificar o que significava especificamente o estalo específico, naquele momento específico”.