17.10.21

CRÔNICA DA CASA ASSASSINADA

Escrito pelo mineiro Lúcio Cardoso em 1959, esta obra-prima integra o livro 1.001 Livros Para Ler Antes de Morrer e é considerado um dos dez melhores romances brasileiros de todos os tempos. Acabo de lê-lo e, em minha opinião, está empatado em 1º lugar com Grande Sertão Veredas, de Guimarães Rosa, e ganha de Memórias Póstumas de Brás Cubas e de Dom Casmurro, de Machado de Assis, tal sua qualidade.

A obra, pouco lida e comentada no Brasil, ficou esgotada por anos, chegando a ser comercializada por mais de um salário mínimo. Felizmente, este ano, a Cia das Letras relançou o romance em uma edição caprichada.

Crônica da Casa Assassinada é um romance epistolar, composto por cartas, diários e depoimentos de dez personagens com narrativa não linear e fragmentada por pontos de vistas diferentes e às vezes contraditórios. O capítulo inicial é um soco no estômago e o capítulo final deixa o leitor de queixo caído pela capacidade de ainda ser surpreendido, após quase 550 páginas num desfecho inimaginável. A pessoa que terminou de ler esse livro, dificilmente será a mesma que iniciou sua leitura, tal o impacto que continuará por um bom tempo na sua memória.

Essa é a história de uma família em decadência no interior de Minas Gerais vivendo na sede da Chácara dos Menezes, uma casa dilapidada que é talvez o personagem mais importante da obra, já que não só é habitada pelos Menezes, como os aprisiona a um passado que jamais retornará.

Os Menezes são três irmãos totalmente diferentes: Demétrio, primogênito mais afetado pelo passado, Valdo, o mais comum, e Timóteo, homossexual e vergonha para todos, meio louco, eternamente escondido num dos quartos da velha casa,  engordando imensamente e tramando uma vingança contra os demais.

A chegada da bela Nina, recém-casada com Valdo, desencadeia todas as crises que se estabelecerão. O que se urdia no subterrâneo da família aflora e Nina torna-se o centro de uma dinâmica totalmente destoante do que até então imperava. Ela recebe o amor frio de Valdo, os ciúmes da cunhada Ana, a paixão doentia de Demétrio, a aliança de vingança com Timóteo, a relação tumultuada com o filho André, a relação passional com o Coronel e com o jardineiro Alberto. Todos os sentimentos violentos surgem com a presença de Nina e ela não poderá ficar impune. A Casa, como uma entidade, em si, ou através dos que nela habitam, não saberão aceitar paixões tão intensas.

Chico Felitti, escritor do prefácio do livro, aponta que a matriarca da casa é a própria casa com sua atmosfera fantasmagórica. O livro tem ecos do romance gótico norte-americano O Som e a Fúria, de William Faulkner, acerca da decadência de uma família através das vozes de diferentes narradores; e também de O Morro dos Ventos Uivantes, de Emily Brontë, que aborda desavenças e paixões familiares em torno de uma velha propriedade isolada.

Neste trecho Nina aconselha o filho André sobre como lidar com o pecado: “Assuma o seu pecado, envolva-se nele. Não deixe que os outros o transformem num tormento, não deixem que o destruam pela suposição de que é um pusilânime, um homem que não sabe viver por si próprio. Nada existe de mais autêntico em sua pessoa do que o pecado— sem ele você seria um morto”. É uma exortação para a liberdade, mas para os Menezes, a liberdade é um passado voando com gaiola e tudo.

Lúcio Cardoso foi um homem inteligentíssimo e atormentado que viveu intensamente e abusou do álcool e da boemia. Muito católico e homossexual assumido, esta dualidade está fortemente representada nos seus diversos livros, sendo A Crônica da Casa Assassinada sua magnum opus e exemplo da maturidade como escritor. Em um depoimento para um documentário sobre o autor, sua amiga Raquel de Queiroz lembra que Lúcio era um homem muito bonito. Ele sumia por alguns dias do convívio dos amigos e ao ser perguntado onde esteve, respondia: “Estive no inferno”.

Crônica da Casa Assassinada foi indicado pela BBC como um dos livros que precisavam ser lidos no verão de 2016 e em 2017, ganhou o prêmio BTBA de Melhor Livro Traduzido. Seus direitos foram vendidos para uma editora holandesa e vai virar um filme.

Evoé, Lúcio Cardoso!

2 comments:

Manoel Pinto said...

Fiquei curioso, dá vontade de ler, excelente crítica

Cláudio Melo said...

Não conhecia o autor. Sua resenha despertou em mim a vontade de conhecê-lo por meio da leiutura de sua obra maior.