A Netflix disponibilizou, há algumas semanas, o imperdível documentário
What Happened, Miss Simone? Ninguém deve perder a oportunidade de mergulhar na surpreendente
história da vida e da carreira da inigualável Nina Simone.
O filme revela a diva norte-americana do jazz e do blues a partir
da sua origem pobre no sul profundo dos Estados Unidos, passando pela sua
transformação em uma das maiores cantoras e pianistas do mundo, incluindo o
período dramático em que militou ferrenhamente em prol dos direitos civis dos
negros dos EUA até seu autoexílio na África e na Europa.
Um grande achado do filme é a exibição de trechos inéditos dos
diários pessoais da artista e fotos nunca vistas antes. Tem-se a sensação de entrar
na intimidade da cantora, algo que qualquer fã irá considerar um privilégio com
uma pontinha envergonhada de voyeurismo.
A partir de um texto da ativista e poeta negra Maya Angelou, também
amiga, como Nina Simone, de Martin Luther King e Malcolm X, o documentário
ganhou o seu enigmático título. Maya Angelou, natural da mesma Carolina do Norte que Nina Simone, perguntava no seu artigo: “Senhorita Simone, a senhora é idolatrada,
mesmo amada, por milhões hoje em dia. Mas o que aconteceu, senhorita
Simone?".
Essa resposta está no filme. Assistir a ele foi como relembrar o
momento em que, muitos anos
atrás, ouvi, pela primeira vez, a voz rouca, forte e, à primeira vista, estranha,
de uma deusa negra do blues e do jazz, uma voz que nunca mais me abandonou,
ficou nos meus ouvidos, grudou na minha alma e me acompanhou em momentos bons e
ruins na vida.
Desde
que descobri que existia alguém como Nina Simone, deixei de ter vergonha de me
sentir melhor do que os outros, pelo menos melhor do que os que não a conheciam.
Parei de negar que sou mesmo um privilegiado por ter vivido para ouvi-la.
Houve
momentos da minha vida que foram melhores e inesquecíveis porque Nina Simone
estava lá cantando Here Comes The Sun, dos Beatles, e o sol vinha de algum
lugar quente, como a sua voz, para tornar sonoramente insubstituíveis esses
momentos. Muitas das minhas tristezas mais banais tornaram-se tristezas únicas porque
eram embaladas pela voz de Nina Simone cantando Ne Me Quitte Pas e eu tentava
adivinhar, por trás de cada palavra, um mar inteiro de dor e abandono.
A
melodia da sua voz em Wild is the Wind sempre me lembrará uma paisagem do
litoral da França onde comprei o primeiro dos seus vários CDs. Black is the
Collor of My True Love’s Hair, um blues carregado de sentimento na voz e na
alma, é repleto de verdade e de entrega. I Put a Spell On You, um soul
suavíssimo, estará permanentemente, para mim, envolto na sensualidade de uma
conquista. Sua versão definitiva do clássico da dance music Don’t Let Me Be
Misunderstood é insubstituível, com todo suingue e sensualidade das deusas
negras da soul music.
Mas
é My Baby Just Cares For Me que me completa. Quem gosta de cinema, como eu,
terá ouvido a canção nas trilhas dos filmes Todos Dizem: Eu Te
Amo, de Woody Allen; Beleza Roubada, de Bernardo Bertolucci; Cova Rasa, de
Denny Boyle; ou Para o Resto das Nossas Vidas, de Kenneth Branagh. Quando ouço essa música minha mente vagueia pela Toscana, entre as montanhas azuladas do filme de Bertolucci;
passeia pelos canais de Veneza, onde a lua deslumbra o coração mais duro e, sob
a neve, patina no Central Park ou dança sob uma ponte de Paris, como no filme
de Woody Allen; respira a atmosfera do fog em pubs escoceses entre cervejas e cigarros,
como no claustrofóbico filme de Danny Boyle.
Nina
Simone tornou a mim uma pessoa mais metida a besta, mas o que ela fez de mais
importante, apenas com o poder de sua voz e do seu piano mais do que perfeito,
foi, sendo mulher, pobre e negra, representar um símbolo das lutas dos negros
americanos pelos direitos civis numa época, não tão distante, em que crianças
negras eram queimadas vivas. Nina Simone compôs e cantou a música Mississippi
Goddamn (Maldito Mississippi) em protesto contra o racismo norte-americano. Os versos
“Alabama's got me so upset,/ Tennessee's made me
lose my rest, /and everybody knows about Mississippi goddam” eram tapas sonoros e diretos na face feia e racista
dos Estados Unidos.
Na sua versão amarga para Strange Fruits, ela soluça contra
o linchamento covarde de negros pendurados em árvores, como frutas escuras e sangrentas: "As árvores do Sul estão carregadas com um estranho fruto/ Sangue nas folhas e sangue na raiz/Um corpo negro balançando na brisa sulista/Um estranho fruto pendurado nos álamos"
Ela
jamais esqueceu a dor de ver seus pais, que tanto lutaram para que ela
estudasse piano, serem obrigados, por serem negros, a se retirar da primeira fila
do teatro onde ela fazia a sua primeira apresentação. Rejeitada em escolas de
música apesar do enorme talento simplesmente por causa da cor, viveu uma vida
repleta de dramas e bruscas reviravoltas do destino.
No
documentário What Happened, Miss Simone? descobrimos o
preço que essa mulher magnífica precisou pagar para estar ao lado dos deuses.
Não foi nada barato. Mas se fosse, não seria a obra de uma deusa.
2 comments:
Luiz, acabei de ver o documentário, excelente, que deusa viveu entre nós? Que vida..
Noé
Texto maravilhoso, repleto de emoção retratando a luta de uma pessoa que soube enfrentar a vida de frente, levar as pancadas no peito e seguir adiante.
Porque se encolher não nos leva a lugar nenhum, é preferível se projetar para receber o impacto e seguir em frente.
Jennifer Lingerfelt Araujo
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