3.3.15

NÃO CRUCIFIQUEM (DEMAIS) 50 TONS DE CINZA


Havia prometido não escrever sobre 50 Tons de Cinza, já que não li os livros, não vi o filme, e nem pretendo fazê-lo. Já que não conheço as obras, não tenho condições de falar sobre suas eventuais qualidades ou defeitos.


Não é sobre a dramaturgia das obras que me interessa falar, mas sobre a reação que elas têm provocado. Especificamente me motiva a última coluna do psicanalista Contardo Calligaris na Folha.

Calligaris explica que não escreveria sobre o filme se não fossem as bizarras críticas que choveram sobre a obra, inclusive com campanhas contrárias de líderes católicos e evangélicos pela suposta “visão degradante do sexo e contrária aos ensinamentos da igreja” ou "glorificação da excitação sexual sem amor" e "o culto ao hedonismo" ou mesmo "o sexo sem compromisso".

O autor aponta o paradoxo desse argumento lembrando que justamente o que livro e filme mostram é o compromisso, condição para que haja uma relação. Parece que há até um termo de compromisso lavrado e assinado pelos protagonistas.

Sadomasoquismo é um tema que muito me interessa. Já assisti, ao vivo algumas sessões SM e frequentei a famosa Folsom Steet Fair, feira sadomasoquista que acontece há anos em plena rua Folsom, em São Francisco, Califórnia, onde tirei as fotos que ilustram um site que criei sobre o assunto quando estudava Jornalismo na UFBA e que provocou certa polêmica na época, com debates acalorados em listas de cybercultura e matérias em sites da internet, na Tarde e no Correio da Bahia. 

O mais curioso sobre as relações SM é o seu inerente caráter consensual. Será praticamente impossível haver uma dupla adepta da prática que não siga regras rígidas que preveem cuidados que as pessoas nem imaginam. Enfim, é algo muito seguro. O grande barato da coisa é a ideia de ultrapassar limites, enfrentar a dor e descobrir-se livre, totalmente à mercê do outro. É muito libertador e embriagante.

Não poderia, em poucas linhas, tratar do tema com o aprofundamento que ele merece, mas me parece que os livros e o filme tratam mesmo é de uma história de amor. As pessoas não sabem, como diz Calligaris, que um casal sadomasoquista é, quase sempre, amoroso, duradouro e unido por um raro respeito recíproco. É paradoxal que o tema mobilize pessoas preocupadas com a violência doméstica contra a mulher. Acreditem: uma relação entre um casal SM se limita à dominação sexual. Restringe-se à alcova. Não se confunde com a esfera doméstica e nem invade a rotina das pessoas. 

Em quase 100% das vezes, é o masoquista quem de fato determina os limites, cabendo ao sádico o papel de objeto da execução dos desejos do masoquista. Por isso, é tão comum que se pague pelo trabalho do sádico e ninguém paga a um masoquista. Este é um mercado bastante rentável para dominatrixes e mestres.

Em uma entrevista que publiquei no meu site com uma famosa dominatrix, ela revela que quase todos os seus clientes são homens que no dia a dia são empresários com grande responsabilidade, pessoas que tiveram que amadurecer muito cedo e encontram como poderosa válvula de escape esses momentos de submissão nas mãos de uma dominadora. Nem sempre envolve sexo, mas rituais de humilhação e dominação. Clientes revelam como saem aliviados dessas sessões, pois se sentem livres de responsabilidade, totalmente entregues, por algum tempo, nas mãos de outra pessoa em quem confiam plenamente. 

Por tudo que li sobre o livro e o filme, me parece que a verdadeira bola fora foi a explicação, desnecessária e tosca de que o tal Christian Grey é daquele jeito por ter sido abusado na adolescência. A psicologia já cansou de provar que tal relação se dá quando os pais provocam nas crianças dissociações cognitivas durante o desenvolvimento da sexualidade, levando os pequenos (futuros masoquistas e não futuros sádicos) a confundirem os momentos de castigo corporal com o necessário e saudável contato físico com os pais. Pais pouco afetivos que batem nos filhos e logo se arrependem costumam dizer para eles que fazem aquilo “para o seu bem” ou “papai faz isso porque te ama”. Este sim é o fermento para o desenvolvimento de uma parafilia, nome real para o que alguns chamam de transtorno. Ao crescerem, os petizes vão associar momentos de dor a momentos de alívio em um círculo de gratificação dissociativa.
Outro ponto que me interessa discutir e que Calligaris sabiamente aponta é outro paradoxo que envolve as críticas dos religiosos sobre a tal glorificação da dor. Como psicanalista, Calligaris já cuidou provavelmente de inúmeros casos em que o erotismo na nossa cultura cristã está intimamente ligado ao prazer visual obtido pela glorificação do corpo supliciado de Jesus Cristo ou São Sebastião, entre outros.

Não é por outra razão que a representação iconográfica e pictórica dos corpos supliciados desses mártires é tão próxima de um ideal de beleza estética e física. Calligaris relata que conheceu dezenas de adolescentes cujas primeiras solitárias experiências sexuais eram justamente inspiradas pelas abundantes imagens da martirologia cristã, com sua suspeitíssima carga erótica.

Calligaris escreve ainda sobre a ironia de a bilheteria de "Cinquenta Tons" concorrer logo com a "Paixão de Cristo", de Mel Gibson, que, desde 2004, era a melhor bilheteria de estreia para um mês de fevereiro. "Cinquenta Tons" passou a Paixão de Cristo e eu me lembro de um artigo que escrevi quando vi a Paixão no cinema em 2004 intitulado: “Pornografia no Calvário: A Paixão Samomasoquista de Mel Gibson” Ali eu comentava sobre o profundo asco que me levou a abandonar a sala após meia hora de exibição da película.


Eu dizia naquele texto: “Estou assistindo a uma cena em que Jesus é chicoteado com uma ferocidade desumana por sádicos que riem da sua desgraça. Qual a necessidade, jamais vou entender, de expor, em câmera super lenta, degradação tamanha de um ser humano. Já vi muitos filmes pornográficos e até com cenas de sadomasoquismo mas nada me revirou tanto o estômago quanto aquela sequência de desgraça suprema de uma pessoa. Há toda uma construção coreográfica visando ao máximo de horror no detalhismo da explosão da crueldade”.

Após louvarem o supremo horror sadomasoquista da Paixão de Cristo, líderes cristãos agora querem crucificar 50 Tons de Cinza? Que hipocrisia! Como quero manter muita distância de qualquer associação com qualquer religião, eu bem poderia, só de birra, falar maravilhas das peripécias do casal Gray e Anastácia.

Mas nem meu masoquismo chega a tanto.

1 comment:

barroso said...

Irretocável esse texto. O incontestável louvor à dor e ao sacrifício, deificados com o martírio, é um dos mais notáveis pilares da Igreja Cristã, num todo.
Basta ter como emblema principal um símbolo de tortura e morte como marca de fé.
Esse texto é coerente e legítimo por isso: dor é dor, santa ou puta, os motivos para sua escolha, aí são "outros 500". A hipocrisia de se sentirem aviltados é o que mais me chama a atenção e que transforma tudo num marketing maravilhoso e tudo termina assumindo tons de piada.