Outro dia, revendo velhas fotografias, me deparei com um retrato meu tirado nos anos 80. Não posso precisar exatamente o ano, era uma foto daquelas máquinas em que a gente tem que revelar o filme para só depois ver se ficou boa.
Pois bem, a foto mostrava um jovem mais de trinta anos mais novo do que eu hoje, bem mais magro, sentado em uma poltrona. Eu vestia a minha camisa favorita de então que trazia a estampa do rosto da criatura de Frankenstein.
Como poderia ter-me esquecido daquela camisa esses anos todos? Era a minha favorita e de tanto que a usava praticamente havia se tornado um traço da minha personalidade. Era vermelha viva com a sombra do rosto da criatura em negro. Como eu gostava daquela camisa! De tanto que usei acabou se estragando e em algum momento se perdeu.
O que havia de mim naquela camisa com o desenho da criatura? Por que eu me identificava tanto com ela? Era de um vermelho vivo e se eu me lembro bem de mim naquele tempo, eu não era uma pessoa muito solar. Pelo contrário, sempre fui avesso ao dia claro e gostava muito de me enfurnar em livros e bibliotecas. O sol não era meu amigo. Mas à noite eu ardia nas sombras.
Então por que a camisa vermelha? Um leonino que se refugia do sol não parece algo muito promissor. O rosto do monstro era como uma efígie dos conflitos que me aturdiam, como se eu pedisse socorro em silêncio, exibindo a figura como um sinal de fumaça, um SOS em código morse para quem pudesse interpretar sem que eu precisasse dizer, talvez até mesmo porque eu não soubesse verbalizar o que acontecia. Por que o sol se escondia da minha alma? Ou para onde ele foi que eu não poderia segui-lo?
Eram perguntas difíceis para um jovem de pouco mais de vinte anos cheio de perguntas difíceis ligadas a áreas da vida muito confusas. O monstro de Frankenstein, olhando o mundo por mim na camisa vermelha, era meu hóspede sombrio, ele próprio feito de partes avulsas, que praticamente não se combinavam e cheio de questões,
Era um tempo de busca angustiada pela construção da própria identidade no meio de pedaços de outras identidades, uma busca por erigir algo de si próprio e um baita receio de que talvez isso não fosse possível sem copiar o que viera antes. Afinal, se éramos feitos do que tinham escolhido para nós, como impor-se único diante do mar de identidades? Um sentimento ao mesmo tempo vago e inevitável de que não restava muito para fazer quando éramos feitos da montagem de outras histórias, histórias talvez muito mais fascinantes do que qualquer uma que poderia construir.
Era um tempo de busca angustiada pela construção da própria identidade no meio de pedaços de outras identidades, uma busca por erigir algo de si próprio e um baita receio de que talvez isso não fosse possível sem copiar o que viera antes. Afinal, se éramos feitos do que tinham escolhido para nós, como impor-se único diante do mar de identidades? Um sentimento ao mesmo tempo vago e inevitável de que não restava muito para fazer quando éramos feitos da montagem de outras histórias, histórias talvez muito mais fascinantes do que qualquer uma que poderia construir.
Pode ser tudo isso, pode não ser nada disso, mas certamente o tempo fez seu serviço para o qual o tempo foi criado. A camisa se foi: o tempo a levou. As respostas às muitas perguntas ou se tornaram desimportantes ao longo dos anos ou se revelaram para mim também com o tempo. E eu me tornei o que sou.
Ainda não me dou muito bem ao sol. Minha alma pegou o gosto da noite, as sombras se afeiçoaram à minha pele pois, de algum modo, o monstro ainda habita lá no interior, confinado, dominado. Olhando hoje para a foto, a camisa, o meu rosto de trinta e tantos anos atrás, sinto certa nostalgia que o tempo também transformou, dessa vez em palavras.
Não tenho saudades da criatura besta que eu era então, mas um certo orgulho de não precisar mais me esconder nas sombras e não mais precisar da efígie da outra criatura para falar por mim.
4 comments:
Um ótimo texto!
Não precisar de outra criatura para nos representar! Fantástico, adoro seus textos! Adoro vc ! O que da no mesmo !
Vencendo a nós mesmos,venceremos o mundo,chegaremos ao topo e teremos nosso Sol.
Todos passamos pela fase de Frankenstein. E você emergiu dessa fase impondo o que vc realmente é. Parabéns!
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