No ano 2000 tive uma estranha
experiência ao lado de um amigo enquanto caminhava uma tarde em Nova Iorque,
saindo do Museu Metropolitan a caminho do Guggenheim. Subindo a 5ª avenida, ao
lado do Central Park, nossa visão foi atraída por um movimento estranho do
outro lado da rua. Subitamente, três carros pretos pararam em uma esquina e
fecharam a rua. De um furgão, também preto, saiu um homem meio calvo que
rapidamente entrou num prédio enquanto dois outros homens com escopetas faziam
sua segurança.
Uma cena surreal como aquela no meio
da tarde em pleno coração de Manhattan deixou a mim e meu amigo Jorge Barreto,
aturdidos. Imediatamente vimos de quem se tratava: Salman Rushdie, o escritor
britânico que vivia sob a proteção das autoridades, pois estava condenado à
morte pelo aiatolá Khomeini em uma fatwa por apostasia.
Àquela altura eu não tinha lido
nenhum dos livros de Rushdie, mas achei que estava na hora de me livrar daquela
omissão, uma vez que tive chance de ver o célebre escritor ao vivo em sua
jornada de semiobscuridade. Tive o privilégio de vê-lo novamente e ouvi-lo
neste ano de 2014, na sua brilhante palestra no Teatro Castro Alves, na série
Fronteiras do Pensamento.
Essa longa introdução sobre a visão
surreal do escritor perseguido numa tarde qualquer na 5ª avenida é para
descrever a atmosfera meio fantástica dos seus livros. Lembrei-me disso quando
ouvi Rushdie falar sobre a influência do realismo mágico de Garcia Márquez na
sua literatura. A visão de dois brasileiros paralisados diante de uma equipe de
policiais garantindo a vida de um homem que ousava defender suas ideias sob o
risco de morte parece sair de uma das páginas escritas pelo próprio autor.
O Último Suspiro do Mouro e Vergonha são dois livros impressionantes
e que deveriam ser lidos por todos que desejarem iniciar-se no que é a Índia e
o Paquistão, dois países que desafiam todos os conceitos que nós ocidentais
temos.
A literatura de Rushdie tem uma marca
inconfundível: a mistura de ficção com a História, e sua própria origem mista
(indiana e britânica) serve perfeitamente para retratar temas como o
multiculturalismo, o pós-colonialismo e a construção de uma identidade
nacional.
Tanto em Vergonha como
em O Último Suspiro do Mouro vemos o estilo do autor em
mostrar intrincadas histórias genealógicas fabulares, como em Cem Anos
de Solidão, de Garcia Márquez, que mais do que metáforas ou alegorias,
atravessam o universo real, avançam pelo onírico, sem deixar de retratar o
universo político da Índia e do Paquistão com seus golpes de estado e corrupção
política, sua religiosidade opressiva, seu odioso sistema de castas (são mais
de 3 mil castas e 25 mil subcastas), sua pobreza e atraso material e também sua
inigualável riqueza cultural.
Rushdie é cultíssimo, como se pode ver
em sua palestra e pela leitura dos seus livros e seu brilhantismo é emoldurado
por um bom humor extraordinário e o humor é uma das maiores formas de inteligência,
uma força inquebrantável diante da mesquinhez dos poderosos e da ignorância dos
medíocres.
VERGONHA é o terceiro romance de Rushdie e retrata a
história intrincada de três famílias com seus destinos entrelaçados pela
violência da criação do Paquistão após sua separação da Índia.
Vamos acompanhando em
uma narrativa não linear, histórias de três irmãs misteriosas que se excluem do
mundo, prisioneiras voluntárias de uma mansão gigantesca, “mães” de Omar
Khayyam, um anti-herói gordo e pervertido, sem religião, política ou vergonha; seguimos
também a luta pelo poder de dois primos autoritários: Iskander Harappa, um
playboy milionário, e Raza Hyder, um oficial do Exército; além de uma série de
mulheres estranhas como Sufiya Zinobia, que cora tanto de vergonha que chega a
queimar as mãos de quem a toca; sua irmã Navid Hyder, que dá à luz 27 filhos em
séries de gêmeos, trigêmeos, quadrigêmeos....Mães, filhas e avós com uma
profusão de sentimentos contraditórios de honra, vergonha e medo, um cenário
tecido habilmente pelo autor como uma burca ou um véu para cobrir ou vestir uma
teia de corrupção e intriga, metáforas vivas da história violenta do Paquistão,
país em que Rushdie viveu parte da sua infância.
O trecho a seguir
mostra um pouco da singularidade da vergonha inerente ao sentimento enigmático
do povo do Paquistão. Em um momento em que um grupo de pescadores chantageia um
casal que foi flagrado em pleno ato sexual, algo ultrajante e vergonhoso aos
olhos "puros" dos devotos pescadores, o chantagista líder diz, para
justificar a extorsão: "Uma atitude tão ímpia é ruim para nossa paz de
espírito. Alguma compensação, algum conforto tem de ser fornecido".
Brilhante!
O
ÚLTIMO SUSPIRO DO MOURO foi a resposta de Rushdie à sua sentença de morte pelos fundamentalistas islâmicos, seu
primeiro livro após a publicação do quase fatal “Versos Satânicos”.
Aqui, ele faz uma
vigorosa defesa da tolerância e da pluralidade cultural em uma história
fantástica iniciada na Índia após a chegada de Vasco da Gama, passamos pelo
período da independência do país e sua separação do Império Britânico.
Como em uma fábula, o
livro continua pelas décadas de 80 e 90 retratando uma Bombaim (hoje Mumbai)
multicultural e multifacetada até terminar em um olival ao sul da Espanha, na
Andaluzia, à sombra do Palácio de Alhambra. Toda a história é
contada no estilo das Mil e Uma Noites e gira em torno da
riquíssima personagem de Moraes Zogoiby, o Mouro, como uma Xerazade que narra suas
histórias para continuar vivendo, adiando o que será, inexoravelmente, seu
último suspiro de exaustão.
Conhecemos Mouro
próximo da sua morte e com ele voltamos à sua infância, em cujas veias corre
sangue português, judeu, árabe e indiano, metáfora personificada daqueles que,
como o próprio autor Salman Rushdie, escapam de definições rasas de
nacionalismos, e sectarismos religiosos, étnicos e culturais.
Aqui também, como em Vergonha,
temos ficção e história amalgamadas em uma grande família, descendentes por um
lado de Vasco da Gama e por outro do último sultão de Granada. O livro é como
uma aula de História, mostrando uma Índia caleidoscópica, com pinceladas
generosas de cultura, pintura, cinema e literatura.
Como em Vergonha,
temos aqui uma família repleta de paixões e intrigas para acompanhar em uma
narrativa não linear, com muitas idas e vindas temporais, mas com uma fluidez
impressionante. Seguimos os passos dos bisavós de Mouro: Francisco e Epifânia,
seus avós Camões e Isabela, seus pais Aurora e Abraham, e as irmãs Inamorata e
Filomena.
Salman
Rushdie, com sua literatura repleta de misticismo, tem, ao mesmo tempo, um texto
muito realista. Nada mais adequado do que incluí-lo entre os autores
realistas-fantásticos, com seus personagens belissimamente retratados com todas
as nuances daquilo que faz o ser humano ser, paradoxalmente, tão macabro e tão
belo.
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