“Cuidado com as pessoas que já foram feridas, pois elas sabem que podem sobreviver”. Esta é uma frase-símbolo do excelente filme Perdas e Danos, do diretor francês Louis Malle. Ela se refere à personagem de Juliette Binoche, que, após participar de conflitos que deixam um rastro de destruição, sai de todos eles ilesa. Por isso, alerto: cuidado com os sobreviventes!
Nós temos a tendência a analisar as chagas do mundo sob o ponto de vista individual. Minha família foi ferida, pobre de nós; meus ancestrais foram escravizados, coitada da minha raça; meu povo foi dizimado nos campos de concentração, como sofreu minha etnia.Entretanto, se observarmos sem o individualismo e a ótica do imediatismo, a longo prazo grupos perseguidos tendem a reverter isso ao seu favor. A raça negra sofreu os horrores da escravidão e ainda sofre os seus reflexos, mas é inegável que há políticas de reparação em vigor em vários países como Brasil, África do Sul e Estados Unidos.
Se fosse possível escolher, gerações escravizadas do passado prefeririam não sofrer tal dor mesmo sabendo que no futuro seus descendentes receberiam uma compensação. Seria esse um raciocínio inútil já que é difícil saber o que alguém preferiria em uma situação hipotética como essa? Mas o mesmo raciocínio pode ser projetado para o futuro com deduções menos inseguras. Quem se disporia a sofrer hoje um dano terrível e injusto se soubesse que futuramente seus descendentes seriam reparados? Duvido que haja alguém normal com esse nível de altruísmo.
É paradoxal, mas grande parte dos negros hoje tem pouco conhecimento sobre as misérias da escravidão, não sabendo dela mais do que um branco nas mesmas condições de educação. Como a escravidão ressoa internamente nos descendentes de escravos? Há uma consciência de pertencimento à mesma raça? (ô palavrinha!), uma identificação política, histórica, cultural?
No entanto, existem as cotas. Há políticas afirmativas. Isso traz para a vida prática dessas pessoas a possibilidade de reparação, mesmo que o evento gerador da reparação (a terrível escravidão) não passe de um eco do passado, sem nenhuma reverberação no cidadão negro de hoje.
A educação básica não reforça a identidade negra. A religiosidade de matriz africana, com seus orixás e rituais, mesclou-se ao catolicismo português criando um sincretismo que retirou o caráter tradicional das crenças. Poucos negros sabem se suas raízes são do Congo, Angola, Moçambique ou Sudão. Movimentos negros unificados tornaram-se uma salada de discussões políticas estéreis. Cantos e danças carnavalizados servem mais para os brancos e turistas desfrutarem das batidas afros do que propriamente como expressão da cultura negra. Entre os próprios negros dá-se menos importância a artistas que exaltam a negritude do que àqueles que reforçam a vulgaridade. Por exemplo, enquanto Daniela Mercury reverencia a cultura negra em seus trabalhos, levando o samba-reggae até para o palco do Prêmio Nobel da Paz, Ivete Sangalo entrega-se ao banal e à picardia sem conteúdo, arrastando mais adoradores das classes C e D, no caso da Bahia, majoritariamente composta de afro-descendentes.
É mais fácil defender os sofridos, magoados e injustiçados...Ocorre que esses grupos sobrevivem e saem das situações que os marcaram mais fortes do que quando entraram. Já dizia o filósofo Nietzsche: “O que não nos mata nos deixa mais fortes”. Como esta não é uma tese, não se propõe a decifrar o paradoxo de muitos traços da cultura escravizada terem se amalgamado à cultura da raça escravocrata ao ponto de haver mesmo predominância de elementos do povo dominado como ocorre na culinária, indumentária, no misticismo, na musicalidade etc., mesmo estando tais traços mais difusos no coletivo do que nos espíritos individuais.
É mais fácil defender os sofridos, magoados e injustiçados...Ocorre que esses grupos sobrevivem e saem das situações que os marcaram mais fortes do que quando entraram. Já dizia o filósofo Nietzsche: “O que não nos mata nos deixa mais fortes”. Como esta não é uma tese, não se propõe a decifrar o paradoxo de muitos traços da cultura escravizada terem se amalgamado à cultura da raça escravocrata ao ponto de haver mesmo predominância de elementos do povo dominado como ocorre na culinária, indumentária, no misticismo, na musicalidade etc., mesmo estando tais traços mais difusos no coletivo do que nos espíritos individuais.
Mas isso é o que menos importa quando está em jogo a necessidade da reparação. Obviamente, se mais negros tivessem perfeito conhecimento e completa identificação com a sua origem, com a riqueza da sua cultura, mais força haveria na busca da reparação. O que reforça a tese de que os machucados se curam e se tornam mais fortes.
Recentemente conversava com uma amiga que voltou ao Brasil após anos nos Estados Unidos. Lá, como aqui, também houve escravidão e as políticas afirmativas são mais antigas. No caso norte-americano, a cicatriz racial é mais profunda e há um abismo entre as culturas negra e branca. O negro norte-americano construiu um nicho, com códigos próprios, onde até mesmo uma repreensão a um trabalhador negro por uma falha profissional é encarada como racismo, mesmo não tendo nada de racista. Ou, por outro lado, por causa do passado racista, os negros norte-americanos põem-se em um papel de duplamente intocáveis. Ninguém os atinge.
O escritor João Silvério Trevisan em seu livro Pedaços de Mim pergunta se “A função dos marginalizados não seria justamente, e com toda simplicidade, continuar à margem dos sistemas, sem nenhuma conotação de abnegação e sim buscando no elemento marginal a sua força? O paradoxo encontra-se na sua condição de sombra. Reprimindo, só consegue o oposto: revelar o que estava escondido, trazendo-o à tona de maneira irrefreável, simplesmente porque esconder a sombra é o modo mais indicado de fazê-la manifestar-se. Os derrotados da história têm assim a possibilidade de se vingar, influenciando brutalmente os vencedores”.
Há semelhança com os judeus após o Holocausto. Para não serem tachados como racistas, brancos deixam funcionários negros em paz, não reclamando por ineficiência nos seus serviços e alemães carregam o trauma de terem criado o massacre judeu, trazendo essa mancha que não sai nunca, como o sangue nas mãos de Lady Macbeth, verdadeira nódoa na alma. Os judeus, por outro lado, enriqueceram, e hoje, a pretexto de defesa, dizimam os palestinos. É um povo inteiro sendo massacrado por um velho povo sobrevivente do Holocausto. E estamos sempre criando novos sobreviventes para o futuro.
O escritor João Silvério Trevisan em seu livro Pedaços de Mim pergunta se “A função dos marginalizados não seria justamente, e com toda simplicidade, continuar à margem dos sistemas, sem nenhuma conotação de abnegação e sim buscando no elemento marginal a sua força? O paradoxo encontra-se na sua condição de sombra. Reprimindo, só consegue o oposto: revelar o que estava escondido, trazendo-o à tona de maneira irrefreável, simplesmente porque esconder a sombra é o modo mais indicado de fazê-la manifestar-se. Os derrotados da história têm assim a possibilidade de se vingar, influenciando brutalmente os vencedores”.
Há semelhança com os judeus após o Holocausto. Para não serem tachados como racistas, brancos deixam funcionários negros em paz, não reclamando por ineficiência nos seus serviços e alemães carregam o trauma de terem criado o massacre judeu, trazendo essa mancha que não sai nunca, como o sangue nas mãos de Lady Macbeth, verdadeira nódoa na alma. Os judeus, por outro lado, enriqueceram, e hoje, a pretexto de defesa, dizimam os palestinos. É um povo inteiro sendo massacrado por um velho povo sobrevivente do Holocausto. E estamos sempre criando novos sobreviventes para o futuro.
E já que comecei com uma referência cinematográfica, encerro com outra. No filme Casa de Areia e Névoa, os personagens de Jennifer Connelly e Ben Kingsley são duas pessoas magoadas diante do mesmo interesse. Como lobos feridos, cada um busca se livrar do problema que representa o outro. Como em Perdas e Danos, os que sofreram restam como sobreviventes. O mesmo não se pode dizer dos dois filhos (nos dois filmes os filhos têm finais trágicos) que ficam no meio desse embate (amoroso em um caso, litigioso no outro). Não há lugar para fracos na luta pela sobrevivência. São todos inocentes, mas só quem já foi ferido sabe que pode sobreviver.
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