É frustrante que para avaliar um filme se tenha que ponderar sobre questões extra-fílmicas. É o caso de Medida Provisória, primeiro filme dirigido pelo brilhante ator Lázaro Ramos. É desgastante ter que, prévia e obrigatoriamente, abordar questões que estão fora da obra.
Todos concordamos que o racismo é intolerável e merece toda crítica possível, mas aqui se trata de um filme e não de um libelo. Não se trata de um panfleto (não há demérito algum na ideia de um panfleto em si, mas na utilidade do que se propõe).
Viu como é chato ter
que fazer tal preâmbulo antes de falar de um filme? Sim, porque Medida
Provisória não é apenas um filme, mas uma denúncia. E nisso reside seu maior
defeito como obra de arte. Perdeu-se, virou outra coisa. Contentasse em ser um
libelo antirracista e estava bem. Mas quer ir além. E está mal.
Quer palmas pela
excelente trilha sonora e representatividade da equipe majoritariamente
de negros? então palmas. Quer aplausos por adaptar a distopia tragicômica
da peça Namíbia, Não?, aplausos até o ponto em que tropeça na adaptação que desrespeita as fronteiras entre
linguagens do palco e das telas. Não é um teatro filmado, mas um filme que não
perde os cacoetes teatrais. E esse é o menor dos seus defeitos.
Incomoda muito o
abuso de piadinhas bobas em meio ao drama, alívios cômicos típicos de peças que
buscam a cumplicidade da plateia para um respiro em meio ao caos, como se precisasse
que o público aguentasse ter esfregado em suas narinas o “fedor” que é exibido,
rindo de certos absurdos apenas para aguentar o que vem a seguir.
Atores do calibre de
Seu Jorge, Taís Araújo, Emicida e Alfred Enoch se desincumbem
bem do que lhes é pedido, assim como as carismáticas Renata Sorrah e Adriana
Esteves, em papéis clichês como vilãs, ecos de suas personagens icônicas Nazaré e
Carminha das novelas Senhora do Destino e Avenida Brasil. Falemos sobre a
facilidade desta ideia?
O filme tem a sutileza
de um elefante numa loja de louças. Ser sutil não é garantia de qualidade. Não
ser é, no mínimo, sintoma de pouca inventividade. Ora, direis: há temas que
precisam ser abordados com contundência. Ok, mas o importante combate ao
racismo justifica a mão pesada na direção? É uma licença prévia para
não ser criativo?
Não entro na questão
do condenável boicote da ANCINE e do governo do genocida de plantão ao filme,
não se trata desse debate, mas de um filme em que personagens gritam
irritantemente ao enunciarem suas falas.
Impossível não lembrar
a cena icônica do ator Lázaro Ramos no filme Ó Paí, Ó, de 2007, em que ele brada
na cara do personagem de Wagner Moura: “...Quando
a gente sua, não sua o corpo tal qual um branco, Boca? Quando vocês dão porrada
na gente, a gente não sangra igual, meu irmão?...Quando vocês dão tiro na gente,
a gente não morre também?” A cena impactante
é mais forte ainda porque se destaca no filme. Em Medida Provisória, o diretor
Lázaro Ramos aparentemente emulou o ator Lázaro Ramos espalhando no seu filme
novo a contundência da cena de Ó Paí, Ó. Como seria de se esperar, a força
da ideia se dilui ao se espalhar em quase duas horas de muitos gritos.
Há uma cena que resume o filme: uma
personagem grávida decide tomar um remédio abortivo e a câmera
mostra em close, escrito à mão na caixa: “Cuidado, abortivo”. Isso já seria ruim,
se não piorasse quando segundos após, outra personagem não tentasse dissuadi-la
do ato. O diretor age como um cozinheiro que nos apresenta um prato, mas não
confiando no nosso poder de apreciá-lo, o mastigasse por nós. Senti como se
minha inteligência fosse pessoalmente agredida. Mas isso vai ficando pior e
pior ainda.
Não discuto a premissa do filme. Em uma obra de
ficção cabe qualquer argumento ficcional, até por ter pés firmes em realidades graves como o racismo de que são
vítimas os descendentes de escravizados, mas o processo narrativo se
perde numa tensão forçada de cenas de perseguição mal construídas, na bidimensionalidade
dos personagens, nas cenas falsamente cômicas como a do ministro degustando um
sorvete de chocolate ou na burocrata dizendo que quer seu café preto, na duvidosíssima
opção do diretor de dividir a tela e esvair o impactante drama do personagem de
Seu Jorge, no uso de um único personagem oriental para dar a empatia que
faltaria aos brancos, numa cena canhestra do único personagem homossexual (como cota dentro da cota) e num final primário e piegas ao exibir quem conduz o
carro. Como quem conduz o filme.
1 comment:
Discordo Luiz. Não sobre aspectos cinematográficos, pq não conheço bem como vc. Mas pelas entrevistas de Ramos, o filme é sim uma distopia, baseado em um livro, sem muita pretensão. E pesquisas apontam o argumento não estar distante do Brasil no pós abolição, na tentativa das elites em embranquecer o País. Os toques cômicos dão uma leveza que até ajuda na recepção da mensagem.
Esse filme é um daqueles essenciais na complexa conjutira hoje.
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