26.4.22

MEDIDA PROVISÓRIA

É frustrante que para avaliar um filme se tenha que ponderar sobre questões extra-fílmicas. É o caso de Medida Provisória, primeiro filme dirigido pelo brilhante ator Lázaro Ramos. É desgastante ter que, prévia e obrigatoriamente, abordar questões que estão fora da obra.

Todos concordamos que o racismo é intolerável e merece toda crítica possível, mas aqui se trata de um filme e não de um libelo. Não se trata de um panfleto (não há demérito algum na ideia de um panfleto em si, mas na utilidade do que se propõe).

 

Viu como é chato ter que fazer tal preâmbulo antes de falar de um filme? Sim, porque Medida Provisória não é apenas um filme, mas uma denúncia. E nisso reside seu maior defeito como obra de arte. Perdeu-se, virou outra coisa. Contentasse em ser um libelo antirracista e estava bem. Mas quer ir além. E está mal.

 

Quer palmas pela excelente trilha sonora e representatividade da equipe majoritariamente de negros? então palmas. Quer aplausos por adaptar a distopia tragicômica da peça Namíbia, Não?, aplausos até o ponto em que tropeça na adaptação que desrespeita as fronteiras entre linguagens do palco e das telas. Não é um teatro filmado, mas um filme que não perde os cacoetes teatrais. E esse é o menor dos seus defeitos.

 

Incomoda muito o abuso de piadinhas bobas em meio ao drama, alívios cômicos típicos de peças que buscam a cumplicidade da plateia para um respiro em meio ao caos, como se precisasse que o público aguentasse ter esfregado em suas narinas o “fedor” que é exibido, rindo de certos absurdos apenas para aguentar o que vem a seguir.

 

Atores do calibre de Seu Jorge, Taís Araújo, Emicida e Alfred Enoch se desincumbem bem do que lhes é pedido, assim como as carismáticas Renata Sorrah e Adriana Esteves, em papéis clichês como vilãs, ecos de suas personagens icônicas Nazaré e Carminha das novelas Senhora do Destino e Avenida Brasil. Falemos sobre a facilidade desta ideia?

 

O filme tem a sutileza de um elefante numa loja de louças. Ser sutil não é garantia de qualidade. Não ser é, no mínimo, sintoma de pouca inventividade. Ora, direis: há temas que precisam ser abordados com contundência. Ok, mas o importante combate ao racismo justifica a mão pesada na direção? É uma licença prévia para não ser criativo?

 

Não entro na questão do condenável boicote da ANCINE e do governo do genocida de plantão ao filme, não se trata desse debate, mas de um filme em que personagens gritam irritantemente ao enunciarem suas falas.

 

Impossível não lembrar a cena icônica do ator Lázaro Ramos no filme Ó Paí, Ó, de 2007, em que ele brada na cara do personagem de Wagner Moura: “...Quando a gente sua, não sua o corpo tal qual um branco, Boca? Quando vocês dão porrada na gente, a gente não sangra igual, meu irmão?...Quando vocês dão tiro na gente, a gente não morre também?”  A cena impactante é mais forte ainda porque se destaca no filme. Em Medida Provisória, o diretor Lázaro Ramos aparentemente emulou o ator Lázaro Ramos espalhando no seu filme novo a contundência da cena de Ó Paí, Ó. Como seria de se esperar, a força da ideia se dilui ao se espalhar em quase duas horas de muitos gritos.

 

Há uma cena que resume o filme: uma personagem grávida decide tomar um remédio abortivo e a câmera mostra em close, escrito à mão na caixa: “Cuidado, abortivo”. Isso já seria ruim, se não piorasse quando segundos após, outra personagem não tentasse dissuadi-la do ato. O diretor age como um cozinheiro que nos apresenta um prato, mas não confiando no nosso poder de apreciá-lo, o mastigasse por nós. Senti como se minha inteligência fosse pessoalmente agredida. Mas isso vai ficando pior e pior ainda.

Não discuto a premissa do filme. Em uma obra de ficção cabe qualquer argumento ficcional, até por ter pés firmes em realidades graves como o racismo de que são vítimas os descendentes de escravizados, mas o processo narrativo se perde numa tensão forçada de cenas de perseguição mal construídas, na bidimensionalidade dos personagens, nas cenas falsamente cômicas como a do ministro degustando um sorvete de chocolate ou na burocrata dizendo que quer seu café preto, na duvidosíssima opção do diretor de dividir a tela e esvair o impactante drama do personagem de Seu Jorge, no uso de um único personagem oriental para dar a empatia que faltaria aos brancos, numa cena canhestra do único personagem homossexual (como cota dentro da cota) e num final primário e piegas ao exibir quem conduz o carro. Como quem conduz o filme.


1 comment:

dm said...

Discordo Luiz. Não sobre aspectos cinematográficos, pq não conheço bem como vc. Mas pelas entrevistas de Ramos, o filme é sim uma distopia, baseado em um livro, sem muita pretensão. E pesquisas apontam o argumento não estar distante do Brasil no pós abolição, na tentativa das elites em embranquecer o País. Os toques cômicos dão uma leveza que até ajuda na recepção da mensagem.
Esse filme é um daqueles essenciais na complexa conjutira hoje.