Atribuo a uma
conspiração os eventos que me levaram a ler “Só Garotos", da multiartista
americana Patti Smith. De repente, para onde olhava, alguém estava falando sobre
o livro. Mas, por um tipo besta de implicância, tendo a resistir quando essas
coisas acontecem. Minha birra natural me faz dizer: “Ah, é? Pois não vou ler!”
Ainda mais que nunca tinha ouvido falar dessa tal Patti Smith!
É assim que a
gente sabe como a gente é besta!
Talvez tenha
cedido à pressão da leitura devido à bela foto da capa do livro, em que Patti
Smith está ao lado do melhor amigo, o fotógrafo americano Robert Mapplethorpe,
de quem eu já era fã. Ou talvez por aquela foto ser na icônica Coney Island,
cenário de inúmeros filmes e lugar onde, mesmo após algumas idas a Nova Yorque,
eu jamais conheci. Um pecado para um cinéfilo.
Ao ler Só
Garotos, difícil foi parar. Em pouco tempo, arrastava um bonde por Patti Smith
e Mapplethorpe, para quem ela escreveu o livro, cumprindo-lhe uma promessa no
leito de morte. O fotógrafo foi uma das vítimas da AIDS em 1989 aos 43 anos, no
auge da fama e sucesso internacionais, muito rico e aclamado como um dos
maiores artistas contemporâneos e corresponsável por elevar a fotografia ao
nível da arte.
No livro,
imergimos na vida desses dois artistas. Smith, em 1967, aos 21 anos mudou-se
para uma Nova Yorque no auge da contracultura,
com uma mão na frente e a outra atrás e uma vaga esperança de ser
famosa. Viveu anos na pior, fazendo bicos e chegou a passar fome. A entrada de
Mapplethorpe em sua vida fez com que tudo passasse a fazer sentido.
Em pouco
tempo, o casal mudou-se para o emblemático Chelsea Hotel, habitat dos
maiores cabeções daquela geração louca, onde conheceram todo mundo que um dia
seria mega importante, como os beatniks Allen Ginsberg e William Burroughs, os
cantores Bob Dylan, Iggy Pop, Jimi Hendrix e Janis Joplin, o artista pop Andy
Warhol e toda uma geração de gente da pesada.
A partir do
Chelsea Hotel, as carreiras de ambos seguiram sempre ascendente, mas ainda com
muitos perrengues, quando não tinham dinheiro para pagar pelo menor quarto do hotel e precisavam optar entre um café da manhã e material de pintura.
Robert, com um
passado familiar fortemente católico, descobriu-se homossexual, prostituiu-se,
experimentou uma infinidade de drogas e mergulhou de cabeça no universo gay
sadomasoquista barra pesadíssima de Nova Yorque. Mas os laços com Patti permaneceram inabaláveis.
Na sequência
de Só Garotos, continuei obcecado pelo casal e emendei com a leitura da
biografia de Mapplethorpe escrita por Patricia Morrisroe, atualmente fora de
catálogo e disponível em sebos físicos e digitais como a Estante Virtual.
Polêmicas
sempre estiveram ligadas à obra de Mapplethorpe, associado primordialmente ao
nu masculino e ao homoerotismo. No ano passado, a censura a algumas das suas
fotografias por um Museu de Arte Contemporânea de Portugal provocou o pedido de
demissão do seu diretor artístico, levando o crítico, historiador de arte e
professor da Universidade de Lisboa Pedro Lapa, ex-diretor de dois museus
portugueses a declarar que “o obsceno, o abjeto, o informe, o pornográfico,
tudo tem lugar na arte. A arte lida com tudo, não exclui”.
No filme Fotos
Proibidas, assistimos à luta do diretor do Centro de Artes Contemporâneas de Cincinatti, Ohio, Dennis Barrie, interpretado pelo ator James Woods, para exibir as
fotografias da Mostra The Perfect Moment, de Mapplethorpe, quando um xerife
decide prendê-lo no dia da estreia da Mostra. O filme retrata um feroz debate
ideológico no qual o júri precisa decidir se as fotos eram pornografia ou arte.
De um lado, um
juiz preconceituoso e um xerife truculento e do outro um homem obstinado,
enfrentando todo um sistema, os riscos de prisão e demissão, além da falta de
apoio da própria família, já que a esposa não compreendia sua insistência em
manter-se fiel à ideia de liberdade artística e pelo direito expresso na
constituição americana de liberdade de expressão. Barrie resistiu até à tentativa
de suborno, quando um cliente anônimo lhe ofereceu US$ 100 mil, o valor total
das suas dívidas, para ele abandonar a causa.
Era o ano de 1990 e a América parecia enlouquecida por políticos conservadores, uma época em que a epidemia de AIDS devastava a classe artística por todo o país, tendo matado o próprio Mapplethorpe um ano antes.
Era o ano de 1990 e a América parecia enlouquecida por políticos conservadores, uma época em que a epidemia de AIDS devastava a classe artística por todo o país, tendo matado o próprio Mapplethorpe um ano antes.
O filme
retrata os embates ao longo do julgamento, que envolveu especialistas de todo o
país defendendo a obra de Mapplethorpe e ressaltando suas excepcionais escolhas
de luz, sombra, perspectiva, profundidade de campo, composição...Os membros do
júri, todos cidadãos simples que nunca tinham visitado um museu, inocentaram os
acusados, liberaram a mostra e garantiram a liberdade artística. Uma frase de
um dos jurados é emblemática: “Eu não entendo nem gosto de Picasso, mas quem
entende diz que é arte. Então eu acho que é arte”.
No Brasil, 30
anos depois, vemos hordas de moralistas ignorantes voltarem a mostrar suas
unhas sujas, novamente envolvendo o trabalho de Mapplethorpe além da exposição
“Queermuseu – Cartografias da Diferença na Arte Basileira”, cancelada pelo
Santander por pressão de grupos fascistas. É impressionante que a nudez num
museu gere tamanho desconforto nos pudicos de plantão, levando-os a agredirem
artistas, como no MAM de São Paulo e vituperarem contra a exposição "Histórias
da Sexualidade" do MASP.
Como ainda
hoje fazem faltam pessoas ousadas como Robert Mapplethorpe.
6 comments:
Amei!!!
Me deixou com muita vontade de ler o livro... da para sentir a vibração causada pela leitura.
Querido, amei seu texto, e digo mais, não somos dessa época. Caímos aqui por acaso. Sempre culpo a minha cegonha do universo ter uma tosse, quando passava sobre os planetas e me deixou cair aqui na Terra. Os evangélicos, os evangélios, o comércios das fés, jamais aceitaram essa forma de ver a artes e muito menos aceitar o nú, o sexo, como uma coisa da natureza e que não tem nada haver com as leis de Deus, e Deus existe????? Infelizmente temos que conviver com essas aberrações da humanas. Obrigada pela leitura.
Amigo, muito interessante sua interpretação e como continua vivo todo tipo de preconceito nos dias atuais, apesar de tanto tempo ter se passado. Parabéns!!!! Muito bom!!!
Como te expressas bem meu querido! Da vontade de ler todas as tuas indicações
Gostei, e gostei tanto que vou ler este livro!
Primo querido, li e como você não consegui parar. Lindo, em tempos de ódio, intolerância e dicotomia como estamos atravessando no Brasil, a história de vida dos dois é um bom exemplo de amor, dedicação e lealdade. Boa leitura, vale a pena.
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