Há alguns dias,
assisti à minissérie Objetos Cortantes, em uma maratona da HBO. Foram oito capítulos, mas que, na
metade, já me fizeram correr para uma livraria e comprar o livro homônimo da
escritora Gillian Flynn.
Então se deu o
seguinte dilema: ou eu assistiria à minissérie (e assim saberia o final da
trama) ou leria o livro até o fim para mergulhar no drama da solitária
jornalista Camille Preaker? Era uma “escolha de Sofia”, já que saber o final
pela TV inviabilizou a perfeita fruição da experiência do livro. Assim, se você
não puder ver a série, leia o livro. Ou vice versa. Não há como escolher um
formato sem perder o impacto do outro.
Livro e série são um
legítimo suspense policial em que a trama só se fecha na última cena — e nas
últimas páginas —, quando revela quem matou e arrancou os dentes das duas
garotinhas assassinadas do thriller. Ultima cena? Não. A revelação se dá durante
a subida dos créditos do ultimo episódio. Brilhante!
Este foi o primeiro
romance de Gillian Flynn, autora também do livro Garota Exemplar (Gone Girl), que teve premiada adaptação
para o cinema com direção de David Fincher (de Seven, Clube da Luta e Zodíaco).
Já a série Objetos Cortantes foi dirigida por Jean-Marc Vallée (indicado ao
Oscar por Clube de Compras Dallas).
No papel principal de Objetos
Cortantes está a ótima Amy Adams, com suas seis indicações ao Oscar, dois
Globos de Ouro e mais sete indicações para o prêmio. Como coadjuvante de luxo,
temos Patricia Clarkson como Adora, a mãe “vampira” da protagonista e que levou
o Globo de Ouro e o Critics' Choice Award de melhor atriz coadjuvante.
Definir Objetos
Cortantes como um thriller policial é reduzir demais o escopo da obra. Trata-se
de um estudo existencial sobre a solidão e o desamor.
É, para dizer o mínimo, inquietante acompanhar
o vigoroso trabalho de Amy Adams na construção da jornalista Camille,
eternamente à beira do colapso psicológico, tendo que lidar com os dramas do
passado ao ser praticamente obrigada pelo chefe a elaborar uma série de
reportagens sobre assassinatos brutais de duas adolescentes na cidadezinha de
Wind Gap, não por acaso sua cidade natal, de onde ela conseguiu escapar anos
antes, fugindo de uma relação tóxica (na falta de uma palavra mais forte) com
sua mãe Adora, uma das megeras mais descaradamente vis e dissimuladas vistas
nas telas.
Camille trás como
herança da convivência com a mãe e com a cidade centenas de cortes em forma de
palavras rasgadas nos braços, seios, tronco e pernas. A automutilação como
válvula de escape e expiação física para a angústia emocional. Na falta das facas
e navalhas, o álcool em abundância torna-se simulacro líquido para afogar a dor
psicológica de Camille, com a vantagem se ser plenamente aceito e estreitamente
ligado à ideia de socialização. É como se ela ecoasse as palavras de Frida
Khallo: “Tentei afogar minhas mágoas, mas
as malditas aprenderam a nadar”.
As cicatrizes do corpo
de Camille estão cauterizadas, mas ao retornar a Wind Gap, os estigmas da alma
recomeçam a sangrar. Em dezenas de flashbacks, vamos, aos poucos, adentrando o
universo da Camille adolescente: a sensação de inadequação ao ambiente escolar,
o abuso sexual a que se submetia como forma de conquistar afeto e o sofrimento
e morte da meia-irmã Marian, pela qual se culpa, já que a mãe não hesita em
lamentar que não tenha sido Camille a morrer no lugar da favorita. A certa
altura Camille lamenta: “É impossível
competir com os mortos, eu gostaria de parar de tentar”.
A protagonista encontra
uma miríade de dificuldades ao tentar realizar as reportagens. A começar por um
delegado indolente, uma população anestesiada com os crimes, oscilando entre a
xenofobia pela possibilidade de o assassino ser um dos seus moradores e o desejo
vulgar de virar notícia. Não fosse o suficiente, a mãe de Camille, a milionária
Adora, boicota todo o tempo o trabalho, ora definindo a reportagem como de mau
gosto, ora simplesmente impedindo os parentes das vítimas de falarem com a
filha.
A cidadezinha de Wind
Gap é praticamente um dos vilões da história, com sua atmosfera decadente, goticamente
sufocante e soturna, com suas fazendas de porcos confinados e cujo sofrimento
torna tais animais neuróticos e com desejo de morte. Não é à toa que publicações
científicas definem os porcos como animais mais espertos que cães e com nível
de inteligência similar ao dos os chimpanzés. Não por outra razão, Camille
jamais conseguiu comer um presunto na vida após visitar os animais confinados
em baias-prisões em uma das fazendas da mãe. É angustiante ler as descrições
dos matadouros no livro. A série apenas tangencia esse aspecto.
Em meio a essas duas
mulheres problemáticas em eterno embate, temos uma terceira não menos complexa:
a meia-irmã de 13 anos Amma (a atiz Eliza Scanlen dando um show na série), rebelde, manhosa, eternamente nas piores companhias
e em festas regadas a sexo e coquetéis de anfetaminas e maconha. Amma é também a
fêmea alfa que domina uma galerinha insolente de ninfetas patinadoras.
Enquanto age como uma minimegera,
a adolescente Amma é também vítima da mesma mãe superprotetora. Nesse
caldeirão, Camille tem que lidar com a possibilidade de salvar Amma da vil
Adora, como talvez não tenha conseguido fazer com a irmã Marian.
Um livro perturbador
adaptado para uma série ainda mais intrigante. Como diz a autora em determinado
momento: “Uma criança criada com veneno
considera a dor um consolo”. Não deixe de ser uma testemunha privilegiada
desse embate entre a apatia e a catarse.
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