31.8.17

O Porto dos 11 Anos

Os 11 anos seriam sempre, para ele, um lugar seguro. No redemoinho confuso em que se transformara a sua vida, sempre haveria aquele porto seguro onde poderia se refugiar, onde não o alcançavam as existências medíocres que o cercavam, a todo tempo fazendo com que ele se questionasse se habitava algum universo de seres unidimensionais e onde apenas ele estava condenado a se esbarrar continuamente nas arestas pontiagudas das possibilidades, todas a ele proibidas e por ele vislumbradas através do véu de uma sedutora — e ao mesmo tempo ameaçadora — névoa de promessa.

Aquele lugar, seu porto seguro, eram os 11 anos.

A casa dos avós era o primeiro sinal de um remanso, não ainda o ancoradouro perfeito, a baía inexpugnável. Havia, por ali, dezenas de primos de todos os graus e idades. Brotavam no lugar das suas férias como cogumelos após a chuva. Aqueles dois meses na cidadezinha natal dos seus avós eram a oportunidade para as energias exuberantes da infância se encontrarem. Todas elas, infâncias mais exuberantes do que a sua.

Os primos não precisavam de um lugar seguro. Os mundos de cercas de arame farpado, de estacas pontiagudas, de pedras soltas em lajedos e cachoeiras eram-lhes sedutores e despertavam interesses displicentes, seguidos de desinteresses súbitos. Pequenos selvagens em uma espécie de matilha, floresciam na abundância daqueles lugares perigosos, passando ao largo dos seus grandes temores. Aventureiros, com troféus feitos de feridas secas e machucados. As mordidas das piranhas da velha lagoa eram as medalhas de ouro. Poucos as exibiam, é verdade, só os mais audaciosos, e esses iam se avolumando entre os seus primos, como num rito de passagem para uma existência mais dominante.

Ele não era um daqueles. Ele precisava do ancoradouro.

A estridência das vozes das tias e empregadas, o entra e sai das visitas, o avô - desde sempre na sua lembrança -, inválido, cercado por um mosquiteiro de filó e criando raízes sobre a cama no maior quarto da imensa casa, sempre muito aberta e fresca.

Diziam, as fotos desbotadas pelas paredes e as pessoas mais velhas, que aquele homem franzino tinha tido, em algum momento das eras, seus verdes anos e dias de ouro. Mas ele só conseguia ver um corpo em um pijama, ambos desbotando juntos. Jamais lhe ocorreu que um dia aquele velho avô tivesse tido forças para administrar umas poucas propriedades, uma velha fazenda com algumas cabeças de gado, construir casas, constituir família com dezenas de filhos que se casaram algum dia e lhe geraram inúmeros netos.

Esses eram os seus primos, desde sempre na sua memória em constante desabrochar e perfeita saúde, crescendo, correndo, destruindo jardins, imunes aos espinhos das roseiras, que deixavam lanhos nas peles juvenis, mas já semi-curtidas e temperadas pelo sol onipresente daquele sertão, pequenos diabos que se divertiam a pisotear sapos, perseguir mutucas e destruir casas de joões-de-barro a pedradas, trepando na goiabeira para desespero da tia mais velha: a tirana.

Havia muitos perigos por ali. A casa dos avós ainda não era a enseada, era só o sinal dela, um farol, paragem de repouso em meio à tempestade das infâncias turbulentas dos primos e das ameaças das quais ele não saberia como escapar.

O badalar dos sinos anunciando o meio-dia era a senha para o caminho que o levaria ao lugar seguro dos 11 anos na pequena cidade, eterna cápsula de adobe e cal banhada no calor poeirento do sertão, com suas plantas que pareciam já nascer com folhas cobertas por uma pátina de areia amarronzada; com suas três ruas de paralelepípedos, mato esvaindo pelos encontros das pedras; com duas praças acanhadas e suas duas igrejas; com um armazém de secos e molhados; com um posto de gasolina e vários becos bordados de cansanções e urtigas e pavimentados por poeira.

E uma lagoa tão cercada de juncos e tomada por aguapés que era como se não existisse à vista, mas estava por lá; alguns afogados eram testemunhas da sua existência ameaçadora. Melhor evitar, pensava ele. Os primos e irmãos discordariam, sobrevivendo também aos perigos das águas turvas da lagoa.

E o rio. Passavam a manhã agitados nos preparativos para o passeio para o rio após o almoço. O ponto alto das férias.

Ele tinha outros planos.

A cidade agora estava silenciosa. O sol, após o meio-dia, encharcava de sonolência as pessoas já almoçadas. Quem não tinha a energia dos primos e dos irmãos, que partiam para o rio como uma revoada de gafanhotos, dormia parte da tarde. O calor abatia-se sobre as casas, sobre as três ruas, as duas praças e os muitos becos. Silêncio. O silêncio sagrado do mormaço e da paz da ausência da algaravia do bando de primos.

Ele sabia que na próxima esquina dormia o casal de tios-avós. Ali estaria o verdadeiro porto e só estaria à sua disposição por pouco tempo, enquanto o sol fosse suficientemente solidário para derrubar a todos. Mesmo a tia tirana que contraíra paralisia infantil e trazia uma das pernas atrofiada e também um braço. Isso não a impedia, no entanto, de castigar com severidade todos os primos. A ele, ela dedicava os mesmos mimos: os famosos beliscões torcidos, temíveis e dolorosos.

A tia não se importava se as mães estivessem por perto, ela castigava os sobrinhos independentemente da presença delas, suas irmãs ou cunhadas. Ela não tivera filhos nem se casara. Talvez por conta disso, as mães não reclamavam quando seus filhos eram castigados. Talvez por algum tipo de piedade por ela não ter tido seus próprios filhos, permitiam que educasse, a seu modo, os filhos das suas irmãs e irmãos.

A única saída era a fuga, facilitada pelo vigor da infância e pela dificuldade de serem alcançados pela claudicante tirana que mancava de uma perna. O único braço bom fazia um belo estrago na pele dos sobrinhos. Os hematomas duravam dias e também eram exibidos como troféus. Eram uma condição inerente ao exercício da infância por ali.

Ele era a criança diferente. Havia aquela doença rara e de nome complicado que lhe reduzia a coordenação, fazendo-o não acertar o chute na bola de futebol, ou mirar a bolinha de gude. Mesmo equilibrar-se sobre uma bicicleta lhe era impossível, o que dirá subir em árvores, pular cercas, escalar lajedos e fugir de cães ferozes. Toda a infância fora marcada de cuidados e dolorosas injeções de antibióticos a cada sábado.

A falta de jeito para os esportes e a limitação para inúmeras brincadeiras o levara a se interessar pelos livros. Começara com a mãe lendo, mas logo estava independente disso, pois nem sempre a mãe estava disponível já que havia mais irmãos, um pai e uma casa para cuidar.

Por que a tia, que tivera um problema parecido, não se identificava com ele e o incentivava a ler? Por que gritava especialmente com ele, exortando-o a sair de casa e brincar com os primos? Por que não entendia que ele preferia mergulhar nas páginas de um romance a nadar nas águas do rio? Não entendia porque o menino, ao seu olhar, com uma imperceptível limitação motora, deixava de correr com os primos para se enfurnar nas páginas de um livro. Ela, que não pudera brincar e correr na infância, não aceitava que alguém que tivesse essa aparente habilidade, preferisse abdicar dela para devorar livros durante horas. Não era seguro ler próximo àquela tia.

Era com uma espécie de dor que ele abandonava, sob suas ordens, livros semilidos. Muitas vezes, tivera que retomar a leitura nas férias dos anos seguintes, continuando do lugar onde deixara uma marca em uma página, no ano anterior.

Mas um dia, em uma visita qualquer à casa dos tios-avós, vislumbrou o porto seguro e foi seu momento de epifania. Sentados à sala daquela outra casa da outra esquina, enquanto a mãe e as tias colocavam as conversas em dia com a tia-avó, ele decidiu explorar aquele novo local.

Seguiu por corredores que ainda não conhecia, entrou em quartos novos, o som das vozes dos familiares cada vez mais distantes à medida em que ele explorava o quintal, retornava pela cozinha, adentrava a copa até encontrar-se diante de uma porta semiaberta com a luz do sol entrando por uma fresta junto ao piso.

Empurrou a porta e viu-se, pela primeira vez na vida, diante de uma imagem que nunca o abandonara: estantes imensas, repletas de livros, centenas, milhares de livros de todos os tipos, cores e tamanhos. Prendeu a respiração e, instintivamente, olhou para trás com medo de que a tia estivesse por perto, ameaçando-o expulsá-lo dali.

Nunca vira antes uma biblioteca. Todos os livros que lhe caíam às mãos apareciam de modo estranho, sempre beirando o clandestino, ora encontrados esquecidos numa mesa, achados num canto do quarto do tio mais novo, parte de coleções incompletas que ninguém saberia dizer como foram originalmente parar ali, ora emprestados de colegas. Mas uma biblioteca assim, jamais imaginara.

Foi a partir daquela tarde que em sua mente não habitava outra ideia que não fosse a de estar sozinho ali dentro, de ter aquele universo fantástico de livros unicamente para si. Chegava a sonhar estar sentado só ali, na cadeira de madeira escura, assento duro e espaldar alto, pés balançando sem chegar a tocar o chão, à borda da grande mesa de jacarandá, tão grande que nem conseguia imaginar como atravessara a porta. Imaginava que o cômodo fora construído em volta daquela mesa. A cidade inteira fora construída em volta daquelas estantes sagradas.

Ali dentro, cercado de histórias, deixava-se navegar e ser navegado pelas palavras, sentindo o cheiro único dos livros, como se lhes trouxessem aromas de tâmaras e outras frutas exóticas do deserto, como se lhe bafejasse o rosto a maresia de litorais e de terras insulares, odores que ele, por não conhecer, em razão da pouca idade, imaginava, assemelhando-lhe, na mente, os miasmas dos pântanos franceses ao cheiro acre do leite das vacas azedado na cozinha da tia; ou o perfume de odaliscas exóticas aparentando-lhe, ao olfato, aos diferentes olores de talcos da penteadeira da avó. Exalava sangue das batalhas travadas nos livros que lia, mas aquele cheiro ele conhecia das galinhas mortas no quintal da casa da tia pela velha empregada gorda.

Não havia som algum por ali, apesar de o quarto ser contíguo à rua. Naquelas horas modorrentas, horas de sono dos velhos e aventuras dos novos, nem mesmo os carros de bois passavam por perto, mas em sua mente havia música de cítaras e címbalos de países distantes, estrépitos de corcéis em combates, gritos de vitórias em idiomas sinistros, ribombar de canhões ou pedidos de socorro que se perdiam em florestas obscuras.

Lia os livros aleatoriamente, parte de um, pedaço do outro, retirando-os e devolvendo-os aos escaninhos, cuidadosamente, misturando, em sua mente ávida, todos os segredos que eles guardavam. Em um dia, no seu futuro, haveria uma orgia. Não se compararia àquela sensação que para sempre se faria tão tátil.

As estantes se erguiam até próximo ao telhado e ele as escalaria para atingir os livros mais altos, onde se escondiam as melhores histórias, como os primos escalavam as imensas baraúnas e jatobás e atingiam os topos das altíssimas mangueiras para recolher seus frutos.

Ali, naquele porto seguro, descobrira que nenhuma correnteza de rio, redemoinho de águas ou beliscões da tia tirana o atingiriam. Ali, seguiria protegido, rumo a planetas distantes e viagens submarinas; lutando em batalhas por honra ou por donzelas em perigo; aventuras em busca de ouro pelos sete mares e escalando íngremes e geladas montanhas, acompanhado por seus fiéis escudeiros: uma boneca de pano falante, um gênio em forma de sabugo de milho, um feio corcunda com um coração gigante, um boneco de madeira com um nariz autônomo e um menino que se vestia de verde e nunca crescia; cercado por inúmeros deuses irados, super-heróis e monstros em naves gigantes e por reinos inteiramente novos com rainhas, reis e cavaleiros sem-fim.

FIM

2 comments:

barroso said...

Um delicado e sublime relato do fascínio da leitura, do prazer em entrar clandestino no Éden, e a transição peculiar da adolescência, tudo isso com o delicioso sabor de férias de verão! Uma joia!

Maria Moraes said...

Memórias de infância em poética prosa; muito bonito texto.