23.10.13

11 ANOS BATENDO PONTO NA MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO

E, finalmente, chegou outubro! Como faço há 11 anos, desde que descobri a existência da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, que este ano chega a 37ª edição, programo minhas férias com um ano de antecedência e bato ponto na capital paulista. Esta é a minha definição de liturgia sagrada e a melhor coisa que faço a cada ano. Não há nada que se compare à orgia cultural que São Paulo exibe com seus inúmeros espaços culturais entre cinemas, teatros, museus, exposições, shows e bienais.

Quase não dá tempo para escrever, afinal tenho que comer, dormir e tomar banho....o resto do tempo é passado nos escurinhos dos cinemas ou em deslocamentos entre as salas. Mas arrumei um tempo não sei como e agora posso comentar os primeiros filmes.

Digo sempre que a agonia dos cinéfilos da Mostra é menos escolher os filmes que verá e mais decidir aqueles que perderá. Como sempre, com um leque de mais de 350 longas e curtas em dezenas de salas de São Paulo, fatalmente os filmes selecionados se chocam e fazem os frequentadores andarem de um lado para o outro com o caderninho de anotações todo rabiscado fazendo malabarismo para encaixar os filmes nos horários disponíveis.

A logística de cada cinéfilo é uma coisa individualíssima. Não há uma que seja igual a outra. Cada um tem seu método particular, indecifrável para o vizinho. As coisas podem até, em teoria, funcionar direito quando se programa cinco filmes em sequência, mas há várias armadilhas no caminho do cinéfilo. Às vezes o filme atrasa, a legenda não funciona ou não chega a tempo, o a sessão lotou e como entre cada sessão o intervalo é de 20 minutos, um atraso mínimo pode comprometer a programação ou uma sessão lotada deixa o cinéfilo perdido. Ou ele encaixa um filme que não havia programado ou fica cerca de duas horas roendo as unhas. Então é comum ver gente fazendo alternativas mirabolantes, planos B e C...gente saindo da sala antes do fim do filme para pegar o próximo, se o próximo for imperdível e o atual não merecer...

Na Mostra vemos os mesmos tipos dos anos anteriores. As pessoas já se conhecem pelos nomes e trocam opiniões. Isso ajuda a escolher e eu mesmo já me peguei pedindo opinião a estranhos ou a velhos conhecidos de outras mostras. O lado ruim são os caras, quase sempre mais velhos e cinéfilos de carteirinha e crachá que falam alto como se todos quisessem ouvir suas opiniões. Já escolado, não deixo de sacar meu MP3.

Outros chatinhos são aqueles estudantes de cinema que ficam trocando ideias sobre planos e enquadramentos ou os que adoram exibir conhecimentos sobre diretores cabeções e seus filmes mais obscuros...onde essa gente tem tempo pra ver tanto filme assim ?

Quando a gente tenta conversar um pouco mais com esse povo da Mostra dá logo para perceber que não são pessoas, digamos, muito normais. E certamente estou entre os estranhos. Sempre tem alguém com uma idiossincrasia séria. É comum perceber que cada um tem um mundo meio periférico em que vive. Gente com os dois pés muito firmes no chão não fica tão envolvida assim com esse mundo cinematográfico. Que o digam esses caras que assistem a filmes de 8,  9 ou 11 horas seguidas.

Um dos frequentadores mais conhecidos da Mostra esse ano está bem velhinho. Ele já esteve até no Jô Soares. Sabe tudo de cinema e todo ano vai para o Festival do Rio em setembro e para o de São Paulo em outubro. Ele deve ter algum problema urinário, pois o cheiro de urina que o acompanha é de conhecimento de todos. Lembro-me dele, mais novo e falante, com voz possante...hoje quase se arrasta e fala baixo, caminha meio sujo e fedendo a urina. Mas como ele sempre sabe dos melhores filmes, sentir o cheiro de urina numa sala é sinal de que o filme será bom. Ele sempre fica isolado por causa do cheiro, deve usar fralda geriátrica ou então talvez seja pela falta do uso que ele cheire tão mal.

Perdi os filmes do primeiro dia, 18/10, pois havia manifestação na Paulista e o ônibus que saía de Guarulhos para a Avenida Paulista, próximo do meu hotel, não estava funcionando. Cansado demais, só queria descansar e me preparar devidamente para a maratona.

Nos 4 primeiros dias vi 14 filmes. Em grande parte deles, os diretores estavam presentes para apresentar os filmes para as plateias.

CONFISSÃO DE ASSASSINATO – Este ano, a Mostra faz uma homenagem especial ao cinema da Coreia do Sul e este é um excelente filme daquele país. Trata de história de um homem que publica um livro em que confessa uma série de brutais assassinatos de dez mulheres. Como o crime prescreveu o livro é um best seller instantâneo e ele vira uma celebridade também pela sua bela aparência. O detetive responsável pelo caso faz de tudo para lidar com o tema até porque sua esposa foi uma das vítimas. Enquanto isso um grupo de parentes das vítimas planeja vários modos de matar o assassino inclusive sequestrando-o. Como acontece sempre com o cinema sul coreano, um filme frenético, com muitas lutas coreografadas, câmera lenta bem estilosa e atuações surpreendentes com roteiro bem elaborado e trama bem urdida e reviravoltas da história. As cenas de perseguição a pé e de carro são das melhores que já vi.

BENDS – Na fronteira de Hong Kong e da China, uma madame rica tenta manter a fachada de seu estilo de vida após ser abandonada pelo marido enquanto seu motorista tenta levar a esposa grávida para Hong Kong a fim de evitar a pesada multa pelo segundo filho na China. Cada um, ao seu modo, tenta lidar com a pressão da situação em que a única coisa que têm em comum é o carro. E ele será fundamental para o desenvolvimento e o desfecho da história. Um filme bom e honesto.

A GAROTA DO 14 DE JULHO – Este foi o pior filme da Mostra até agora. Insuportavelmente chato, deixei-o na metade. Além de ser uma comédia francesa, e eu detesto comédias francesas de um modo geral, esse filme traz muitas gags e piadinhas bobas que somente quem conhece o estilo de vida e de humor francês entende e aprecia, o que definitivamente não é o meu caso, nem conheço, nem entendo, nem aprecio. Vi que muita gente deixou o filme também no meio e esperei para perguntar a algumas pessoas que saíram no final se tinham gostado. Uma mulher a quem perguntei disse que adorou e quando eu disse que detestei ela ficou surpresa. Quando eu comentei que achava que aquelas piadas só eram compreensíveis por que morou na França ela acabou concordando comigo e revelou que de fato ela morou na França. Na mosca! Trata-se de uma bobagem sem fim sobre um grupo de parisienses que resolve viajar no feriado para o litoral. Só idiotice.

A FULLER LIFE- Um bom documentário americano sobre o fabuloso escritor, diretor e jornalista Samuel Fuller que ficou conhecido e respeitadíssimo no cinema. O filme mostra cenas dos seus filmes e se baseia em sua autobiografia The Third Face. São 12 segmentos, cada um com um admirador de Sam Fuller lendo suas memórias. O filme é dirigido pela sua filha Samantha Fuller, presente na sessão. Fuller é considerado por críticos como um dos maiores cineastas americanos de todos os tempos. Como eu não vi nenhum dos seus filmes, o documentário me deu vontade de assistir a eles. A Mostra tem essa característica importante de nos mostrar, mesmo a quem acha que conhece muita coisa, coisas que nós ainda não conhecíamos.

PARADJANOV- Outro filme sobre um diretor consagrado de cinema, mas desta vez não é um documentário, mas uma co-produção da Armênia, França, Geórgia e Ucrânia. Baseado na história verídica do cineasta soviético de origem armênia Sergei Paradjanov, de quem eu nunca ouvi falar antes e que foi um gênio provocador que criou grandes filmes e ganhou respeito internacional, mas por ser muito rebelde, foi preso com acusações falsas. Mesmo banido do mundo do cinema, seu amor pela beleza lhe dá forças para continuar a criar mesmo preso. Um dos atores do filme, também produtor, italiano, estava na sala. No filme ele interpreta Marcello Mastroiani.

A BELA VIDA – Um filme francês de que gostei muito por não ser uma comédia. Conta a história de dois irmãos adolescentes, vivendo nas montanhas, criando ovelhas e criados escondidos pelo pai, meio cigano, que os sequestrou da mãe. Como o pai deles é condenado pela justiça, ele não pode se apresentar, sob pena de ser preso. Os dois irmãos se adoram e gostam muito do pai, mas começam a sentir necessidade de contato com pessoas da idade deles, de conhecer moças. Um dia eles são descobertos e são forçados a se mudarem mais uma vez. O irmão mais velho desaparece e o mais novo tem que optar entre quatro destinos: ficar com o pai, voltar para a mãe, reencontrar o irmão ou ficar com a sua linda primeira garota e primeira paixão que promete a ele uma vida nova.

ESTRADA PARA O NORTE – Um road movie finlandês mas com uma pegada de filme internacional pois poderia se passar em qualquer país. Conta a história do reencontro de um respeitado pianista com o pai que ele não conheceu. Ambos viajam rumo ao norte onde ambos descobrem coisas sobre o outro que não imaginavam. Reencontram pessoas importantes da vida de ambos que estavam à margem das suas vidas. Os cinéfilos da Mostra, aqueles de cabelos brancos comentaram depois da sessão que este até que é um filme leve desse diretor de quem eu nunca ouvi falar antes mas pelo jeito esses cinéfilos da Mostra sabem de tudo...

EXÉRCITO DA SALVAÇÃO – Filme franco-marroquino que conta a vida do primeiro escritor árabe e marroquino a assumir publicamente sua homossexualidade. O filme mostra sua vida em Casablanca, quando o jovem Abdellah passa seus dias em casa, com uma família complicada e tendo relações sexuais com homens pelas ruas da cidade. Dez anos depois, ele vive com seu amante suíço, deixa Marrocos e vai para Genebra, rompe com o amante e começa uma nova vida, pedindo abrigo em um posto do Exército da Salvação. O filme merecia um roteiro mais intenso já que trata da vida de um escritor. O garoto não exibe nenhuma emoção, é extremamente passivo e mesmo depois de adulto não exibe emoção. A única cena em que se emociona é exatamente a última cena do filme quando ouve um conterrâneo marroquino cantar para ele uma canção do seu país.

LA PARTIDA - Outro filme com a temática da homossexualidade. O diretor espanhol estava na sessão para apresentar o filme e debater com a plateia. A história se passa em Cuba sobre dois rapazes cubanos que adoram futebol e vivem quase na marginalidade e lutam para levar uma vida juntos quando se descobrem apaixonados. Mas a vida é muito difícil para ambos. Um trabalha cobrando e batendo em pessoas que devem ao seu sogro e o outro, casado e com um filho pequeno, se prostitui nas ruas de Havana para pagar as contas de sua família que sabe que ele se prostitui. Ambos são muito jovens e nada para eles é fácil. O amor é um complicador nessa equação tão dolorosamente difícil. Quase dá para resumir o filme na famosa frase da música: “Love hurts” ou na canção de Chico Buarque “Viver do Amor”, da Ópera do Malandro: “ O amor/Jamais foi um sonho/O amor, eu bem sei/Já provei/E é um veneno medonho”

LIÇÕES DE HARMONIA – Um filme do Cazquistão que conta a história de um menino de 13 anos que  vive com a avó numa fazenda e estuda numa escola onde uma gang de alunos explora e humilha os colegas. Nesse ambiente de violência e criminalidade o garoto, executa um plano para livrar a escola da gang mas o resultado não é o que ele espera e a violência assume contornos assustadores. Gostei do filme que mostra que se faz bom cinema em todo o mundo.

OBRIGADO POR NADA- Um excelente filme, co-produção Suíça-Alemanha e um dos melhores que vi na Mostra. Um grupo de 3 deficientes físicos em graus diversos planejam roubar um posto de gasolina para provar que não são perdedores. Uma tarefa que já seria difícil para pessoas comuns torna-se uma odisseia para quem vive em cadeiras de rodas. O personagem principal é um rapaz que foi um atleta, mas ficou preso a uma cadeira de rodas após um acidente com esqui na neve. Durante uma temporada em uma instituição para deficientes físicos ou mentais ele se vê apaixonado por uma bela enfermeira e decide bola um plano para assaltar o posto de gasolina onde trabalha o namorado da moça. Enquanto isso o grupo ensaia para uma apresentação de Hamlet para deficientes com um diretor visionário.

SOMENTE EM NOVA YORQUE - Um filme americano-palestino muito divertido com muitas semelhanças com as comédias de Woody Allen. Um jovem palestino vive em Nova Yorque com os pais e está ficando desesperado para arrumar uma namorada. Completamente viciado em sexo, está cansado de os pais tentarem arrumar para ele uma noiva palestina até que conhece uma judia israelense que precisa de um green card. Para desespero da família, ele resolve se casar com a moça não para ajuda-la mas pelo sexo. Até que as coisas assumem outros contornos e eles descobrem que gostam mesmo um do outro e outros obstáculos aparecem. O ator principal não me pareceu no começo muito carismático mas no decorrer do filme vi que ele é muito engraçado e tem piadas muito boas, dignas dos diálogos dos filmes cômicos de Woody Allen com a mesma temática ligada a religião e sexo.

ESCUDO DE PALHA- Um filme japonês muito bem produzido, com ótimo roteiro (lembra um pouco o triller 16 Quadras com Bruce Willys), mas é melhor. Muito bem dirigido, conta a história de um assassino de crianças que precisa ser escoltado até Tóquio para ser julgado pelos seus crimes quando um multibilionário oferece pelos jornais 1 bilhão de ienes a quem matar o assassino da sua neta. Todo mundo se torna um matador em portencial, inclusive todos os policiais, médicos e pessoas comuns. Um grupo de policiais de elite tem que escoltar o assassino arriscando para isso as próprias vidas numa viagem de mais de mil quilômetros de carro e trem. Uma perseguição infernal onde qualquer pessoa pode ser um matador, inclusive os próprios membros da escolta.

UMA VIDA COMUM – Produção britânica de um diretor de quem nunca ouvi falar: Uberto Pasolini e o melhor filme a que assisti este ano. Simplesmente uma perfeição, uma pequena obra prima. A história de um homem sozinho, sem amigos ou família que é obcecado por organização e meticuloso ao extremo. Ele trabalha em um departamento do governo encarregado de encontrar parentes de pessoas que morreram sozinhas. Como quase nunca aparece alguém, ele é o único a assistir aos funerais. Como não tem amigos, ele coleciona, em um álbum, as fotos dos mortos enquanto eram vivos. São imagens de pessoas felizes. Mas o departamento em que ele trabalha é extinto para reduzir despesas e ele é demitido. Só tem um último caso para resolver e ele decide levar até o fim a busca por familiares de um morto que morava em frente à janela do seu apartamento e deixou apenas alguns discos e fotos. Na busca pela família e amigos deste homem, ele descobre que a vida pode ser muito mais surpreendente do que ele imaginava. Até que o destino mostra-se muito mais caprichoso do que ele poderia imaginar. Final triste e belíssimo. Um filme para ver e chorar muito tamanha a sua beleza e simplicidade. Uma história das mais comoventes que já vi. Conversando com outros frequentadores da Mostra percebo que é uma unanimidade.


1 comment:

Raissa Biriba said...

Muito bom!
Aprecio a sua paixão pelo cinema e seus ensinamentos por trás das câmeras..
e hei de concordar, as comédias francesas são realmente fruto de uma curiosa pedância parisiense, por assim dizer!

Fiquei com vontade de assistir o documentário e a vida comum!!

beijao, sucesso pra vc e esse blog delicioso!