A péssima
escolha do título em português para este belíssimo filme é plenamente
recompensado pela espetacular atuação de Quvenzhané Wallis, uma pequena grande
atriz que, a esta altura, todo mundo já sabe que foi a mais nova a ser indicada
ao Oscar (e a que tem o nome mais complicado). Além disso, o filme e seu
diretor e roteiro também concorreram à estatueta máxima de Hollywood sem contar
os prêmios nos festivais de Cannes e Sundance.
A tradução
mais fiel ao original “Beasts of the Southern Wild”, Bestas do Sul Selvagem, refletiria
muito mais fielmente o espírito do filme: a vida dificílima de famílias semiabandonadas,
mas extremamente unidas, de uma comunidade pobre do sul dos Estados Unidos, na
região alagada do rio Mississipi.
Nesse lugar
devastado, insalubre e completamente enlameado, conhecido como A Banheira,
habitam pessoas que poderiam perfeitamente estar num daqueles lixões que
estamos acostumados a ver nas grandes cidades brasileiras ou em imagens de
favelas indianas e miseráveis aldeias da África, mas é estranho ver esse tipo
de pobreza no país mais rico do mundo.
A pequena Hushpuppy,
de apenas 6 anos, é uma das crianças da comunidade, onde praticamente todos os
adultos buscam no álcool uma fuga para as dores da sobrevivência. Ela vive
apenas com o pai doente. A vida de Hushpuppy é uma sucessão de perdas: a mãe a abandonou
quando ela era muito nova, os amigos vivem morrendo com as constantes
inundações do rio e em breve o pai também irá morrer.
Do mesmo
modo como os adultos da Banheira buscam uma fuga no álcool, Hushpuppy, como
toda criança, encontra na imaginação e nas fantasias, uma saída equivalente,
como nos diálogos com a mãe ausente.
Não
basteassem a pobreza e tantas privações, Hushpuppy e seu pai doente enfrentam
uma forte tempestade que inunda toda a comunidade e eles passam a viver em um
barco precário com alguns amigos sobreviventes. O drama poderia parecer forte
demais, quase insuportável de assistir, mas nas mãos inspiradas do diretor
novato Benh Zeitlin, a película assume um tom lírico e quase de realismo fantástico.
A relação
da menina e seu pai é o motor do filme. Como o pai de Hushpuppy sabe que vai
morrer e que a filha ficará sozinha, ele a cria para ser uma sobrevivente,
quase um pequeno animal, como aqueles que eles estão habituados a comer. E
assim, nesse ambiente de hostilidades, não há espaço para demonstrações de
afeto, para fragilidades ou para lágrimas.
É realmente
espantoso que um diretor tão jovem (30 anos) tenha conseguido construir, com
esse material, um filme tão terno e utilizando não atores. A princípio, duvidei
que ele conseguisse, pois desde a primeira tomada, com uma câmera nervosa e
nenhuma beleza aparente, o filme parece convidar o espectador para uma
rejeição. Mas logo vemos que a ternura está nos pequenos momentos, nos gestos
simples da menina, nas suas fantasias e na sua narração de criança diante das
adversidades, em sequências de beleza improvável.
Há cenas de
grande impacto como duas particularmente especiais. Em uma delas, o momento
sempre adiado em torno do segredo da doença do pai, quando dá uma tremenda tristeza
ver que tanta inocência não resiste à crua realidade ao vermos Hushpuppy gritar
no rosto do seu pai: “Você pensa que eu não sei?” Mas não se
permitem lágrimas por ali. Nenhuma
criança deveria passar por algo assim. É como amadurecer a fórceps.
Em um dos momentos mais líricos, a
menina atira-se ao mar, como teria feito a sua mãe para fugir daquele local.
Acompanhada de três outras meninas, são resgatadas por um barco e levadas para
uma espécie de bordel flutuante, onde elas recebem algo que nunca tiveram, o
carinho das mulheres que ali vivem e que poderiam ser suas mães, como poderia
ser sua mãe, a mulher que nina Hushpuppy.
Ao fundo, emoldurando toda a cena, uma
canção, um belo e triste blues, como devem ser os melhores blues, na belíssima
voz de uma daquelas cantoras negras sulistas, com seu inconfundível timbre
anasalado. A letra da canção diz: “Eu posso
ser um escravo para você/Eu posso ser um patife para você/Se isso não é
amor/Faça de conta que é/Enquanto o verdadeiro amor não chega”.
Que pena que as palavras no papel não
tragam, junto, a melodia da canção. Só assim se poderia compartilhar o sentimento
de que a letra da música é o retrato fiel da relação daquele pai e daquela
filha que fazem de conta que não tem um pelo outro um amor verdadeiro, já que o
amor é um luxo a que não se permitem as bestas do sul selvagem, um local em que
tudo pode se perder a qualquer instante.
Mas ele está lá, pronto para ser perdido
de todas as maneiras possíveis e então é melhor fingir que ele é outra coisa.
Mas seu nome é amor e não se perde algo precioso assim sem muitas lágrimas.
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