O
escritor japonês Haruki Murakami é o mais popular entre os eternamente
favoritos ao Prêmio Nobel de Literatura, aparecendo, a cada ano, em todas as apostas
para levar a láurea máxima, mas sendo constantemente esnobado pela Academia Sueca,
para tristeza dos seus milhões de fãs no mundo, entre os quais, com orgulho, me
incluo.
Talvez
Murakami, fã de música e maratonista, não tenha o perfil sisudo ou engajado que
se espera dos autores premiados com o Nobel. Ele transita com desenvoltura no
universo pop e cotidiano, talvez com desenvoltura excessiva para os padrões
acadêmicos. Murakami, traduzido em mais de 40 idiomas, considera mais relevante
abordar questões íntimas e pessoais dos seus complexos personagens do que fazer
recortes sociais e políticos nos seus romances.
Este
ano li três deles: “Minha Querida Sputnik”, “Norwegian Wood” e “O Incolor
Tsukuro Tazaki e seus Anos de Peregrinação”, considerado um de seus melhores
livros, que na primeira semana de lançamento vendeu 1 milhão de cópias no
Japão, já tendo superado os 4 milhões de exemplares no país.
As
três obras têm em comum jovens protagonistas sensíveis demais para os ambientes
das metrópoles em que se encontram. Outsiders introvertidos, chicoteados pelo
espicaçar da consciência, lê-los é como olhar por um buraco de fechadura o
interior desnudo de pessoas prestes a saltar para fora do mundo. É um olhar que
fascina e incomoda.
Em
Minha Querida Sputnik, acompanhamos Sumire, uma adolescente apaixonada por Miu,
mulher 17 anos mais velha. Sumire erra pelas páginas de Murakami, vagando à
procura de uma identidade própria, repleta de um grande vazio interno. O autor,
enquanto nos envolve nas questões íntimas da personagem, faz com que tenhamos a
necessária empatia para nos dedicarmos à narrativa, ao mesmo tempo em que nos
impele a defrontar com os defeitos de Sumire, com o distanciamento mínimo para
sentirmos certa compulsão pelo desenvolvimento da história.
Quem
sabe o que nos atraí mais: os dramas ou os defeitos? Em que medida esses
defeitos e questionamentos já nos habitaram quando éramos jovens como os
personagens de Murakami. “Por que será que estamos condenados a ser assim tão
solitários? Qual a razão de tudo isto? Há tanta, tanta gente neste mundo, todos
à espera de qualquer coisa uns dos outros, e, contudo, todos irremediavelmente
afastados. Por quê? Continuará a Terra a girar unicamente para alimentar a
solidão dos homens?”
Norwegian Wood – Toru Watanabe
narra-nos a sua história dos 16 aos 20 anos. Sabemos que seu melhor amigo de
infância se suicida enquanto a namorada deste, aos poucos, aparenta perder
também a sanidade. Enquanto estuda Arte Dramática na universidade, Toru lida
com a dificuldade de se relacionar com os demais colegas. Praticamente sem
amigos, ele busca desenvolver algum tipo de relacionamento humano e encontrar
uma espécie de brecha para uma identidade minimamente própria. A lacuna deixada
pela morte do amigo e a alienação da amiga são um espinho cravado em sua alma.
Caso
Murakami não tivesse apontado no próprio livro, seria de se espantar se os
leitores não notassem as inegáveis similitudes de Toru com o personagem Holden
Caufield de “O Apanhador no Campo de Centeio”, de J.D.Salinger ou as várias
referências a “O Grande Gatsby” de F. Scott Fitzgerald, lido e relido por Toru
ao longo do romance.
O
livro tem o título homônimo de uma canção dos Beatles e aqui vemos uma das
obseções de Murakami: a música. Ele não se cansa de incluir em seus romances
inúmeras referências musicais. Houve quem encontrasse mais de 3 mil títulos de
canções espalhadas pelos seus livros. O próprio autor possui mais de 10 mil
discos de vinil na sua coleção.
No
último capítulo, a personagem Reiko, como em uma bela e pungente cerimônia de
réquiem, toca simplesmente de enfiada 51 canções para o protagonista, entre
elas: Norwegian Wood, Eleanor Rigby, Yesterday, Michelle, Something, Here Comes
the Sun, Fool on the Hill, Penny Lane, Blackbird, Julia, When I’m Sixty-Four,
Nowhere Man, And I Love Her e Hey Jude, todas dos Beatles. E a lista continua
com canções de Burt Bacharach, Tom Jobim, Harry Mancini, Gershwin, Bob Dylan,
Ray Charles, Carole King, The Beach Boys, Stevie Wonder...É ou não uma ode à
cultura pop mundial?
Os
personagens reagem movidos mais pelo imprevisível do que pelas suas buscas
pessoais. A libertação vem através do incontrolável, do confronto inevitável
com o universo do outro. É como se ouvíssemos o eco de um poema de Fernando
Pessoa: “Grandes são os desertos, e as almas desertas e grandes. Pobre da alma
humana com oásis só no deserto ao lado!”.
O
Incolor Tsukuro Tazaki e seus Anos de Peregrinação tem no personagem título
mais um dos solitários protagonistas de Murakami vivendo um drama do passado.
Quando estudante, seus quatro amigos inseparáveis eram o seu Norte: Akamatsu, o
“pinheiro vermelho”, Ômi, o “mar azul”, Shirane, “a raiz branca”, e Kurono, o
“campo preto”. O único deles sem uma cor no nome era justamente
Tsukuro. Anos depois, adulto, ele não consegue se libertar do trauma ocorrido
quinze anos antes, quando foi expulso do grupo de amigos.
Tsukuro
é impelido a reencontrar os quatro amigos do passado para saber por que foi
inexplicavelmente expulso do grupo. Sua busca, se fosse um filme, seria um road
movie, já que a jornada quase espiritual o leva a perscrutar o passado e tentar
descobrir a jornada pessoal de cada um e de si mesmo. O desconhecido pode ser
ameaçador, mas também é libertador.
Aqui
novamente encontramos o eco da musicalidade de Murakami com as diversas
citações ao longo do romance do compositor húngaro Franz Liszt, autor das
sinfonias intituladas exatamente "Os Anos de Peregrinação".
Todos
os desfechos das obras de Murakami possuem em comum o uso das narrativas
abertas em finais beirando o inconcluso. Não se verá uma ruptura abrupta ou uma
catarse, longe disso. Se as buscas dos personagens aparentemente terminam, a
estrada finaliza apenas para inferir-se que haverá novas buscas e novos
caminhos a percorrer, desta vez com uma bagagem nova, adquirida ao longo do
percurso. Bagagem que ironicamente encontrará um peregrino mais leve, repleto
de autodescobertas e feridas lancetadas.
Ao
reler o texto acima, temo ter dado a impressão de que os livros de Murakami são
muito densos ou lúgubres demais. Não poderia haver engano maior. A narrativa
fluida e o uso de elementos da cultura pop contemporânea se aliam a um humor um
tanto ácido, mas ainda assim, humor. Tudo isso dá o toque de imensa humanidade
que se vê derramar ao longo de cada uma das suas páginas.
Longa
vida aos complexos personagens de Murakami.
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