O
Pintassilgo é uma espécie de saga contemporânea, quase como se, em vez de
acompanharmos durante anos os infortúnios do seu protagonista, o pré-adolescente
Theo Decker, envolvido com uma pintura roubada de valor inestimável,
alongássemos as desventuras do também impúbere Holden Caulfield da obra máxima de
J.D.Salinger, O Apanhador no Campo de Centeio. Passamos apenas um fim de semana
com o angustiado Holden pelas ruas de Nova Yorque, mas com Theo somos
arrastados por anos numa espécie de limbo niilista.
Há diferenças
cruciais entre os dois protagonistas. Se Holden virou ídolo de gerações de
jovens pelo seu inconformismo e rebeldia, Theo é levado a um abatimento profundo
quando vaga sem destino, arrastado pelas marés da fatalidade.
É pelas
mãos da sua mãe (o destino) que é levado a um museu onde uma explosão terrorista
lhe mata justamente a mãe nas primeiras páginas do livro. Dá para sentir o que
virá a seguir nas palavras de Theo: “As
coisas teriam sido melhores se ela estivesse viva. Mas minha mãe morreu quando
eu era criança; e, embora tudo o que aconteceu comigo desde então seja
exclusivamente culpa minha, quando a perdi também perdi de vista qualquer farol
que poderia ter me conduzido a algum lugar mais feliz, a uma vida mais plena e
agradável”.
E tudo
que se segue a esse atentado é movido pelo roubo de uma obra valiosíssima do
museu, exatamente o quadro que dá título ao romance. Todas as pessoas com quem
Theo se envolve ao longo de vários anos são fugidias e escapam-lhe como água
entre os dedos. Mortes sucessivas acontecem à sua volta, perdas físicas e
emocionais, e ele permanece à margem, escapando dos vícios em álcool e jogo, destino
do seu pai, mas envolvendo-se com todo tipo de drogas pesadíssimas, viciando-se
em remédios, sempre à busca do oblívio e flertando com o irremediável.
O
Pintassilgo é a única chama de vida que ele possui, um quadro pintado em 1654 e
o único sobrevivente de toda a obra do genial Carel Fabritius, aluno de Rembrandt, destruída no atelier do
artista num incêndio que matou o próprio pintor, assim como a explosão do museu
levou embora a única pessoa viva que Theo realmente amava. Tudo lhe é tomado e
a única coisa que ele pode dizer que realmente possui não é de fato dele, mas roubado.
E ele não pode dividir essa informação ou a beleza da obra com pessoa alguma.
Em outro
paralelo entre Theo e Holden, dois adolescentes perdidos nas impiedosas ruas de
Manhattan, parece até que Theo ouviu o último conselho de Holden na última
linha do romance de Salinger: "Nunca
conte nada a ninguém. Se você o fizer, mal acaba de contar e começa a sentir saudade
de todo mundo". Theo sabe que o seu segredo é algo inconfessável e que
pode custar-lhe a liberdade.
O
Pintassilgo é o que faz com que ele não sucumba por completo ao destino de
muitos niilistas extremos. Nos momentos de maior desespero basta que Theo contemple
o quadro por alguns minutos para que o pássaro, sobrevivente de séculos, de
dois incêndios e de várias mortes, o faça desejar viver. Um pássaro pintado mas
com uma dignidade extrema, indiferente ao fato de estar preso por uma argola no
pé.
Mas o
livro é difícil de transpor. Longe de ser monótono, é talvez excessivamente
caudaloso, recheado de digressões e descrições. Algumas vezes páginas e mais
páginas são gastas para descrever uma sala ou narrar as sensações de uma viagem
narcótica.
A luz
no fim do túnel que pode ser a salvação de Theo ou a locomotiva que vai
destruí-lo de vez, aparece na figura do seu praticamente único amigo, o também
adolescente Bóris. Se esse fosse um livro sobre o russo Bóris, seria um relato solar,
repleto de aventuras, música, vodka, mulheres loucas, assassinos perigosos, prostituição,
tráfico de drogas e muito sexo, mas como é um livro sobre Theo, temos uma
atmosfera oposta. Tudo é sombra e amargura. Em alguns momentos chega-se a ficar
de saco cheio de Theo que parece que atrai desgraças para onde vai. Percebemos
que Theo é um chato de galocha na primeira das 728 páginas e vamos ter que
aguentar sua chatice até o fim. Ainda bem que Bóris aparece para dar um pouco
de cor a esse rapaz perdido, nem que seja levando-o para porres espetaculares.
Há
quem ache que a obra não mereceu o Pulitzer. Não me decidi ainda, mas fico
feliz que Theo tenha finalmente encontrado a solução para os seus problemas. O
Pintassilgo vai me levar adiante, e é isso que a arte faz, e tem tudo a ver com
a frase da autora no final da obra: “No
meio do nosso morrer, enquanto saímos do orgânico e afundamos ignominiosamente
de volta nele, é uma glória e um privilégio amar o que a Morte não toca. Pois
se desastre e esquecimento seguiram essa pintura através do tempo, o amor
também o fez”.
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