Há
quase 20 anos, fui “apresentado” por um amigo à poeta americana Elizabeth
Bishop através do livro “Flores Raras e Banalíssimas”, de Carmem Oliveira. Até
então, jamais ouvira falar de Bishop ou da sua companheira, a brasileira Lota
Soares ou sequer imaginava que no Rio de Janeiro dos anos 50 duas mulheres tão
importantes para a poesia e a arquitetura pudessem ter vivido uma relação de
amor tão intensa por quase duas décadas.
A partir da leitura do livro, fiquei
fã de ambas. Em seguida, comprei o livro “Uma Arte”, em que a Cia das Letras
publicava, em mais de 700 páginas, parte da enorme correspondência da poeta.
São registros preciosos e precisos da visão de uma estrangeira sensível do
Brasil dos anos 50 e 60, período em que Elizabeth Bishop viveu por aqui, entre
Rio de Janeiro e Ouro Preto. Li as sete centenas de páginas como se estivesse recebendo
as cartas de uma amiga, pois passei a admirar enormemente aquela mulher que
ganhou todos os maiores prêmios da literatura americana, incluindo o
prestigiado Pulitzer. Quando a atriz Regina Braga
encenou o monólogo Um Porto Para Elizabeth Bishop, lá estava eu nas primeiras
fileiras do TCA para reverenciá-la.
Todos esses longos parágrafos
introdutórios são para explicar porque aguardei por quase 20 anos que alguém
filmasse essa belíssima história, levando para mais pessoas a vida dessas duas
mulheres já que o Brasil não lhes dá o devido valor. Uma mulher extremamente
forte, Lota, e outra incrivelmente frágil, Elizabeth, ambas vivendo no auge das
suas potencialidades, crescendo juntas graças ao seu amor.
O pouco conhecimento no Brasil sobre
ambas se deve, provavelmente, ao fato de Lota ser mais conhecida (e talvez nem
tanto quanto mereceria) no Rio de Janeiro, por ter sido a idealizadora,
realizadora e defensora do impressionante Parque do Aterro do Flamengo; e por Bishop
ser mais conhecida por quem gosta de poesia.
O diretor Bruno Barreto, com seu filme:
Flores Raras, traz a história de amor das duas mulheres para um público maior,
já que livro e poesia, urbanismo e teatro não são tão populares no Brasil
quanto cinema.
Li de um crítico que o filme é um
tanto acadêmico com tomadas e ângulos pouco inspirados e muito sóbrios. De
fato, Bruno Barreto não ousou nos enquadramentos, mas isso não diminui a beleza
do filme. Esse mesmo crítico afirma que a película lembra propaganda da
Embratur ao mostrar o Rio que estamos acostumados a ver, com a praia de
Copacabana ao som de uma música da Bossa Nova. Fiquei atento à tal cena. Trata-se
de praticamente um quase frame de segundos mostrando Copacabana em ângulo
aberto quando já se passava mais de 40 minutos do filme e não mais se vê outra
vez. Sobre a Bossa Nova, afinal qual o estilo musical e a praia eram símbolos internacionais
do Rio de Janeiro naquela época?
Outra crítica que li é quanto à forma
como Glória Pires interpretou Lota: como uma lésbica machona. Outra falha do
crítico, pois a verdadeira Lota era ainda mais masculinizada do que Glória
Pires a interpretou e não seria uma mulher delicada que enfrentaria de igual
para igual um político experiente como o governador Carlos Lacerda, e homens
como o paisagista Burle Marx, que trabalhou sob o tacão de Lota que nem
arquiteta formada era.
Glória Pires e Miranda Otto estão
muito bem nos seus papéis. As cenas de sexo entre ambas são elegantes sem
perder o erotismo e o filme consegue mostrar bem a extrema timidez de Bishop,
sua relação intensa com a poesia (levava meses e até anos para concluir um
poema) e sua carga de problemas com o alcoolismo, a asma, o trauma da orfandade
e a depressão.
De fato, não vemos um filme muito
arrojado podendo até ser conservador em alguns pontos, mas vale à pena pela
beleza da história contada.
Chamo
a atenção para o início do filme, quando a poeta lê para seu melhor amigo, o
também poeta americano Robert Lowell,
ainda em Nova Yorque, o até então
incompleto poema Uma Arte (A arte de perder não é nenhum mistério/tantas
coisas contém em si o acidente/de perdê-las, que perder não é nada sério./Perca
um pouco a cada dia. Aceite austero,/a chave perdida, a hora gasta bestamente./A
arte de perder não é nenhum mistério./Depois perca mais rápido, com mais
critério:/lugares, nomes, a escala subsequente/da viagem não feita. Nada disso
é sério./Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero/lembrar a perda de três
casas excelentes./A arte de perder não é nenhum mistério./Perdi duas cidades
lindas. Um império/que era meu, dois rios, e mais um continente./Tenho saudade
deles. Mas não é nada sério./Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)/não
muda nada. Pois é evidente/que a arte de perder não chega a ser um mistério/por
muito que pareça (escreve) muito sério.)
No final, vemos Elizabeth ler o final do mesmo célebre poema para o mesmo
melhor amigo, no mesmo banco do Central Park, após todos os tumultuados anos vividos
no Brasil quando foi muito amada e amou demais, já reconhecida e multipremiada.
Um fechamento perfeito para um final de um ciclo, de uma história, retratando quanto
tempo ela demorava para terminar um poema, quantas perdas viveu e ainda conseguiu,
mesmo com toda a sua enorme fragilidade, sobreviver graças ao seu talento e o
seu amor à poesia.
6 comments:
Goulart,
Você sabe que sou sua fã. Obrigada pela dica do filme.
Um grande abraço,
Márcia
Ao final do texto me esqueci completamente de quem o escrevia, do meu amigo, e porque tinha começado a lê-lo. Suponho que isso seja muito bom. E eu ainda nem li o livro, não vi o filme, algo que providenciarei imediatamente.
leve... como as flores!
Adorei o artigo !
Fiquei ainda mais interessado em ver o filme depois do seu artigo, apesar do spoiler. Rsrs. Parabéns por nos brindar com este belo texto e está bela dica.
Parabéns. Muito bom seu artigo.Estou curiosa para assistir ao filme, principalmente, pela discussão de um tema tão polêmico em nossa sociedade.
Texto leve e delicado
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