1.10.10

Caim e o preconceito da crítica


Recentemente terminei a leitura de Caim, último livro do escritor José Saramago. Costumo ler todos os artigos a respeito dos livros que estou lendo no momento e, com relação à última obra de Saramago, impressionou-me a quantidade de críticas preconceituosas.

A maioria das críticas acusa Saramago de fazer em Caim um livro menor, de ter deixado de lado a literatura para fazer um libelo ateísta, de transformar a arte em panfleto ou um manifesto. Vejo intolerância da parte desses críticos. É como se Saramago fizesse do ateísmo uma profissão
de fé (desculpe o trocadilho).

O escritor já publicou 26 livros que tratam de temas diversos como em A Caverna, Memorial do Convento, Ensaio Sobre a Cegueira, Todos os Nomes, A Jangada de Pedra, Ensaio Sobre a Lucidez, O Homem Duplicado, A Viagem do Elefante, As Intermitências da Morte... todos eles livros espetaculares. Só no incomparável O Evangelho Segundo Jesus Cristo Saramago demonstra fartamente sua implicância com a religião. E o faz de modo brilhante em livro memorável.

Caim é um romance de ficção como todos os demais do Nobel Saramago, com o mesmo estilo de escrita bem humorado e único, com parágrafos imensos e pontuação original. A narrativa pode ser fantasiosa ou fantástica, mas isso não destoa do seu tipo de ficção que tanto agrada a milhões.

Creio que quase todos que lêem Saramago sabem do seu comunismo e do seu ateísmo e não se incomodam com isso, pois seus livros vendem muito. O que me impressiona não é nem a má vontade da crítica com o livro, mas o evidente preconceito dos que ao escreverem a respeito, não percebem que deixam escapar sua intolerância com o direito desse brilhante escritor de abordar ao seu modo, uma história com todos os ingredientes da boa ficção.

Entre várias críticas na mesma linha, selecionei a de João Pereira Coutinho, na Folha de São Paulo, que dá ao título da sua coluna o nome Ensaio sobre o Fanatismo. Diz que Saramago não somente não crê em Deus, mas detesta-o com a força de um fanático. Diz, com ironia, que Saramago é a criatura mais religiosa da literatura contemporânea. Uau. E o homem só escreveu dois livros sobre o tema entre 26 obras.

Talvez o problema seja que faltem autores que escrevam com a coragem de Saramago. Se ele tivesse mais concorrentes não seria...como é mesmo... “a criatura mais religiosa da literatura contemporânea”.

E o crítico desfia seu rosário: “A narrativa é pobre, sobretudo nas descrições sexuais, vulgar e risível... o Deus de Saramago é uma caricatura das divindades pagãs, colérico, mesquinho, traiçoeiro, cruel”. Para Coutinho, Caim é pintado como um terrorista disposto a sabotar um sistema absurdo e demencial. “Uma visão dessas só é possível na cabeça maniqueísta de um fanático", opina.

Para o crítico estão enganados os que dizem que a ideologia política de Saramago deve ser separada da sua criação literária. “Em Saramago, ideologia e literatura cumprem o mesmo papel. Doutrinar.” E vemos a seguir uma defesa de quem? Da Bíblia. Previsível!

Saramago expõe sem meias palavras ou retoques as chagas de Jó, as misérias de Abraão e o sacrifício de Isaque; as carnificinas perpetradas por Josué e Moisés em suas limpezas étnicas no Sinai, em Jericó e Canaã; o genocídio dos inocentes de Sodoma...O trecho seguinte é da mais fina ironia: “Naquela época as maldições eram autênticas obras-primas literárias, tanto pela força da intenção como pela expressão formal em que se condensavam. Não fosse Josué a crudelíssima pessoa que foi, até o poderíamos tomá-lo como modelo estilístico pelo menos no importante capítulo das pragas e maldições, tão pouco freqüentado pela modernidade”.


As qualidades ou defeitos do livro deveriam ser analisados unicamente no campo da literatura. A
crítica à personalidade do autor não deveria interferir na fruição do texto. Eu prefiro Saramago a Deus, mas muita gente pode ter uma escala de preferência diferente e ainda assim gostar de Caim, principalmente na hilária parte em que ele ensina ao criador o princípio de Arquimedes e explica porque a arca de Noé não flutuaria se construída no seco, forçando deus (assim mesmo, em minúscula), a mudar toda a engenharia do dilúvio. São só 172 páginas, não vai matar ninguém.

*Ilustrando este texto, quadro do pintor expressionista alemão Lovis Corinth. Em Caim e Abel, o artista congela o dramático momento do fratricídio. A pintura está no Kunst Palast Museum de Dusseldorf. A foto foi tirada por mim em janeiro deste ano em visita ao museu.

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