Ele era órfão de pai. Aos oito anos a mãe o trocou por uma mula, aos nove, deixou Pernambuco para o Rio, onde morou com uma prostituta e adotou sete crianças. Preso inúmeras vezes, analfabeto, negro, nordestino, pobre, homossexual, tinha tudo para ser mais um excluído social, um excluído absoluto. Mas esse não era um homem comum. Era João Francisco dos Santos, ou melhor, Madame Satã. Um rebelde que não se conformava com a própria exclusão e lutou contra isso bravamente e por toda a vida. Um rebelde em toda a magnitude da palavra. Um mito que transcende seu nome de batismo.
E foi assim que o genial diretor Karim Aïnouz, no seu primeiro longa, nos presenteia com uma verdadeira obra prima que é seu filme Madame Satã que já chega nas telas brasileiras ovacionado com o premo de melhor direção no Festival de Biarritz na França, premiado também no Festival de Cinema de Chicago e melhor longa metragem (cólon de ouro), melhor ator (cólon de prata para Lázaro Ramos) e melhor fotografia (cólon de prata para Walter Carvalho) no Festival de Cine Iberoamericano de Huelva, na Espanha.
O uso da câmara desfocada e o enquadramento incompleto são das ótimas coisas do filme! Metáforas visuais perfeitas do interior dos personagens. Um filme permite que se conte uma história utilizando-se a câmara para retratar outros aspectos que não apenas o óbvio, o que o público vê de imediato. Há diversas camadas muito mais intensas do personagem que podem ser trazidas à luz e à tela com recursos sofisticados que nem sempre são tradicionalmente eleitos pelo público como aceitáveis, ou suportáveis. São apenas menos acessíveis, mas nem por isso uma disposição maior desse público e uma boa vontade podem inviabilizar uma apreciação desses recursos.
A câmara desfocada reflete a tensão dos sentimentos intensos daquelas pessoas, como se lutassem internamente para viver com os pés no chão. As emoções em luta com a razão fazem com que às vezes as coisas percam o foco, turvam o olhar. Se isso acontece conosco, pessoas privilegiadas, o que dirá daquelas pessoas, vivendo sob aquelas condições.
Os limites dos enquadramentos dos personagens são um achado, como que as personagens sendo grandes demais para caber no recorte que o diretor queria dar. É como uma homenagem do diretor, como se ele quisesse dizer: perdoe-me por querer limitá-lo a um quadro de cinema pois sei que vocês estão além desse corte que dou à sua trajetória na vida. A idéia de desmesura é clara. Satã era "um negro que não sabia o seu lugar", ou melhor, que não cabia nele. A imensa força desse filme vem dessa tensão para romper limites. É como se os limites de um fotograma fossem uma prisão a mais para os personagens e o diretor não quisesse se prestar a também essa violência. Muita gente julgou as duas escolhas quase insuportáveis, o foco e o enquadramento.
A mim causou-me extremo prazer estético, tinha uma simpatia muito grande com a história e com tudo que se passava ali na tela. Há gente que achou ruim a opção do diretor em retratar apenas uma parte da vida de Madame Satã. Se ele tivesse feito um filme falando do começo da vida dele quando era pequeno, passando pela adolescência até a morte seria mais como um desses filmes convencionais ou um documentário. O roteiro capta, com o retrato dessa fase da sua vida, a sua máxima densidade.
A fotografia premiada de Walter Carvalho e a mão precisa de Aïnouz reconstituíram notavelmente a Lapa dos anos 30 tanto na cenografia quanto no linguajar do elenco.
Satã sonha em meio ao rebotalho humano que habita o gueto pútrido e violento onde a escória transita como se estivesse na sua sala de visitas. Satã, violento e terno, perigoso e sensível, é feito todo de extremos, sonha em ser a estrela de um espetáculo ao mesmo tempo onírico e sórdido, festivo e tosco, mas inegavelmente extraordinário pela crueza do ambiente em que se desenvolve, surpreendentemente capaz se ser fonte de momentos de pura grandeza, fruto proibido da imaginação que somente poderosas almas profundamente artísticas seriam capazes de ter.
Madame Satã é um filme — perdão do termo desgastado, mas, sinceramente, não há outro, — político. Satã em nenhum momento se vitimiza, ele é vítima sim, inúmeras vezes vítima, mas se rebela a essa fôrma. Não cabe nela, ele se rebela e mostra, luta quase inglória de tão injusta, que pode ser o que ele quer e não o que querem que ele seja. Numa época em que marginal, brigão, cafajeste, boêmio e ladrão eram sinônimos de macheza, Satã mostrava, com seu auto proclamado orgulho homossexual, que era mais macho do que todos os malandros da Lapa juntos, mesmo quando rebolava num palco improvisado num cabaré e gritava: " A vida tem mais graça quando a gente dança".
O que nunca me deixa de espantar é a capacidade absolutamente inesgotável que o ser humano tem em superar a própria hipocrisia. Como diz a crítica Neuza Borges, que entrevistou o diretor logo após a apresentação do filme em Cannes: "Houve um escândalo durante o festival de Cannes por causa das cenas de sexo, várias pessoas deixaram as salas de exibição onde o filme foi mostrado. É difícil imaginar o que terá chocado tanto essa platéia experimentada e que já deve ter assistido a filmes muito mais diretos sobre a homossexualidade, como "Querelle", de Fassbinder, ou "O Último Tango em Paris", de Bertolucci. O diretor concorda e declarou: "Madame Satã terá cumprido, afinal, uma das vocações mais saudáveis do cinema, a de incomodar o que já estava adormecido, cutucar o que já estava acomodado, abrindo janelas para contemplar a diversidade do mundo. Alguns jornalistas saíram na sessão de imprensa. Na sessão de público, também saíram algumas pessoas. Não estamos no Afeganistão, com o Talebã. Mas sexo é uma coisa que incomoda. A intimidade também. Não é nem a questão da prática sexual, mas é a forma como você revela a intimidade entre duas pessoas. O que acho interessante é saber o que incomoda, o que é politicamente permitido ou não. Você tem os filmes do John Woo, em que se cortam não sei quantas cabeças por segundo. Isso, tudo bem! E aí quando você fala em intimidade, ainda se sente isso como perigoso.
Palmas para todos os rebeldes, os malditos, os que incomodam, os corajosos, os marginalizados. Não me surpreendo se esse filme tiver um centésimo do número de espectadores que teve o anti-ético Cidade de Deus. Em Madame Satã você não verá um videoclipe, mas puro e verdadeiro Cinema. Maiúsculo
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