10.4.12

O Último Dançarino de Mao

Primeiro de tudo: eu não sabia que havia uma tradição de balé na China. Depois: não sabia que durante os anos da Revolução Cultural de Mao Tsé-Tung, os bailarinos tinham que seguir aquela cartilha que os comunistas impunham às outras artes, como aqueles cartazes horrorosos de realismo socialista do tempo de Mao e Stálin, valorizando o homem rude e simples e a revolução comunista. Ingênuo, eu!
Salvou-me da ignorância o cineasta australiano Bruce Beresford (de Conduzindo Miss Daisy) que com O Último Dançarino de Mao demonstra uma direção de extrema sutileza e sensibilidade, contando uma história de determinação e superação, além de nos brindar com belíssimos números de balé. Um filme encantador que merece as lagrimas que arranca. No cinema em que o vi, vários expectadores fungavam.
Impressionatemente o filme é baseado em uma história real, adaptado do livro Adeus China: O Último Bailarino de Mao, de Li Cunxin, e mostra a chegada do próprio Li nos Estados Unidos nos anos 70 para estudar balé em Houston. Com bem dosados flashbacks, acompanhamos a infância pobre de Li ao lado de vários irmãos em uma remota aldeia chinesa e vemos quando ele é selecionado aos 11 anos para estudar em Pequim tornando-se em seguida, a custa de muito sacrifício, bailarino da Academia de Dança Oficial da China.
O filme tem uma perfeita reconstituição de época, uma excelente direção de arte, números musicais e coreografias de tirar o fôlego e os atores que fazem o papel de Li em diversas etapas da sua história são excelentes tanto atuando quanto dançando, o que deve ter dado um trabalhão para encontrar atores que façam tão bem as duas artes.
Impossível não lembrar, na parte em que o bailarino pede asilo nos Estados Unidos, de uma cena belíssima do filme Retratos da Vida (Bolero), dirigido pelo francês Claude Lelouch que mostra o ator e bailarino argentino Jorge Donn, interpretando o russo Sergei Itovitch, também pedindo asilo para fugir de um regime comunista e opressor: um da China de Mao, outro da Rússia de Khrushchev.
Outro filme que não dá para deixar de lembrar ao assistir ao Último Baiarino de Mao e que também trata do tema balé, é o inglês Billie Elliot, que, sem apelar para o viés caricatural, mostra toda a dificuldade que passa quem enfrenta essa vida ao mesmo tempo bela, cansativa, desafiadora e mal compreendida, mas que, no final, garante uma redenção arrebatadora.

12.3.12

Shame


A primeira vez que ouvi falar desse filme foi num debate do Manhattan Connection. Fiquei ansioso pela estréia no Brasil, pois o tema me pareceu bastante interessante e ousado: a história de um jovem executivo novaiorquino viciado em sexo.

Falou-se bastante da coragem do ator Michael Fassbender (O jovem Magneto em X-Men e, mais recentemente, o psicanalista Carl Jung no novo filme de David Cronnenberg) em deixar-se filmar em cenas em que aparece em nu frontal em um drama do diretor inglês Steve McQueen, homônimo do ator americano.

Assisti ao filme na pré-estreia em uma sala bem cheia numa concorrida sessão de domingo à noite. Confesso, tristemente, que esperava mais. O filme tem recebido inúmeros elogios dos críticos e quem sou eu para falar alguma coisa da ótima interpretação do ator (premiado este ano no Festival de Veneza) e da sua coragem em interpretar um personagem tão sombrio e doloroso.

Aliás a beleza do relativamente jovem ator de 34 anos, em perfeita forma física, é algo que chama a atenção. Ele interpreta um bem sucedido executivo, frequenta bons restaurantes e mora num bom apartamento mas sua vida se resume ao trabalho e ao vício em sexo.

Mas essa compulsão não é algo que o prejudique como acontece com os viciados em drogas e álcool. Ele vive sozinho, não atrapalha a vida de ninguém, não é casado, portanto não trai ninguém, e seu vício “sustenta” prostitutas e todo um mercado de sexo encontra em tipos assim sua razão de existir. Ok, o homem se masturba diariamente no trabalho e em casa. E daí?

O problema de Brandon é que para manter aquele ritmo de vida não há espaço para o afeto ou a família. Ele vinha lidando bem com o micro cosmos que criou, mas a súbita aparição de Sissy, uma irmã para lá de problemática (depressiva e com tendências suicidas), personagem da ótima atriz Carey Mulligan revira o mundinho de Brandon. Tudo que ele não precisa é daquela irmã revirando seus armários, bagunçando sua vida, se metendo nos seus assuntos. Uma irmã daquela também ninguém merece, nem precisa ser viciado em sexo.

Eu não queria uma mala sem alça daquelas caminhando pelo meu apartamento. Talvez eu esteja sendo cruel, talvez haja gente com paciência para irmãs assim....ainda mais quando a gente a vê cantando lindamente New York, New York....e aí o diretor Steve McQueen não deixa dúvida de que quer nos seduzir com uma das facetas da complicada Sissy ao deixar a câmera fixa no rosto da atriz enquanto ela canta inteirinho, imortalizado por Frank Sinatra, o hino da Grande Maçã, com um arranjo sexy, romântico, blues na veia...e ainda acompanhada de um belíssimo piano.

Desculpe ser estraga prazeres, também achei a cena linda e também, como o personagem do irmão, derramei uma furtiva lágrima, mas não dá para esquecer de uma cena do documentário Edifício Master, de 2002, do cineasta brasileiro Eduardo Coutinho, em que um “personagem” canta, do mesmo Sinatra, e sem piano algum, My Way. Quisera não ter essa cena na memória para comparar e nem tantas lágrimas nessa cena para competir com aquela (uma minha, outra do irmão Brandon).

Difícil não sentir pena do pobre Brandon, mesmo quando ele se acaba em quartos de hotéis, mesmo sendo quartos com belíssimas vistas de Manhattan, mesmo quando ele tem que se livrar dos seus tesouros pornográficos por conta de uma invasão de uma irmã chata em sua vida.

Há tratamentos para viciados em sexo como há para compulsivos de toda ordem. Um alcoólatra não precisa deixar de freqüentar bares e festas onde há bebidas se ele sabe que a bebida o leva a um poço sem fim, porque o viciado em sexo não pode se contentar em apreciar as mulheres sem querer levá-las todas para a cama? Estava indo tudo tão bem até a chegada daquela irmã....mas afinal, é isso que faz o cinema. Cria um conflito e precipita um drama.

Não há importância alguma nos nus frontais de Fassbender, apesar de serem respeitáveis os seus atributos. Em cena particularmente dramática, vê-se o erotismo transmutar-se em pura amargura em plena orgia com duas belas mulheres. O orgasmo, ou algo que atenda por esse nome, torna seu rosto máscara de puro horror. Como não sentir dó?

A frieza das longas tomadas, o distanciamento da câmera, a luz crua e os ambientes quase imaculados parecem querer nos afastar daquele mundo. Talvez coubesse indagar por que a degradação máxima tem que ser necessariamente em um escuro clube de sexo gay? Ali o drama do personagem de Fassbender simplesmente desapareceria envolto por um mar de corpos de outros homens para quem nada daquilo seria novidade e como se o drama do personagem Brandon fosse o de um simples carneirinho diante da “decadência” das orgias gays.

Mas ele sobrevive a tudo e uma redenção se aproxima do horizonte simbolicamente na forma de uma chuva que lavaria seus pecados....mas sempre há um um belo par de pernas no caminho....resistir...quem há de ?

10.3.12

Tom Boy


Para quem não sabe, Tom Boy é uma expressão em inglês que pode ser usada para ambos os sexos e que seria como moleque/moleca. 

Esse filme francês conta com extrema delicadeza a história da Laure que, com dez anos, é uma menina com problemas de relacionamento. Quando seus amorosos pais se mudam para outro bairro de Paris, ela é confundida com um garoto pela forma como se veste e o corte de cabelo à La garçon (como dizem os franceses) e decide tirar proveito disso passando-se por Michael, fazendo amizade com os novos vizinhos, integrando-se àquele grupo divertido e unido e aproximando-se afetivamente a uma garota da vizinhança.


Mas dá pra prever que aquela farsa não vai durar muito, pois as férias da garotada estão acabando, junto com as partidas de futebol, os passeios e toda a diversão. As aulas vão começar e todos vão saber que Michael é Laure. 

Então, acompanhamos o desenrolar de uma tensão crescente e fica claro que a narrativa leve e idílica vai desembocar em algum drama. E é exatamente aí que a diretora francesa Céline Sciamma apresenta sua delicadeza, mostrando a divertidíssima relação de Laure com sua irmã caçula Jeanne e como a família e os vizinhos lidam com a questão.

O filme faz lembrar o filme belga Minha Vida em Cor-de-rosa quando os papéis eram invertidos e era um garoto que queria ser garota, mas aqui Tom Boy deixa margem à interpretação da platéia e não entrega tudo mastigado. O filme venceu o prêmio do público do último Festival Mix Brasil, em São Paulo e o Teddy Bear no Festival de Berlim - prêmio dedicado a produções de temática gay. Um belo exemplo de como o cinema pode ser útil na discussão sobre as questões de gênero e identidade.

À Beira do Abismo


Este filme já saiu de cartaz mas deve estar nas locadoras. Gosto de filmes que envolvem alguma conspiração e que vai se desenvolvendo aos poucos, mesmo tendo um final que a gente já imagina qual é. Dá gosto ver a história ser delineada com algum cuidado e a trama sendo tecida. Não é um filme excepcional, mas vale para passar o tempo. Não é uma obra prima, mas em compensação, não faz feio.

Sam Worthington (de Avatar e Fúria de Titãs) faz o policial Nick Cassidy, que cumpre pena de prisão após ser envolvido em uma arapuca. Ao conseguir escapar por meio de um artifício, encontra um jeito bem original de provar sua inocência. Dependurando-se no peitoril de um prédio em pleno centro de Nova Yorque e atraindo a atenção da mídia e da própria polícia.

Jamie Bell (de Billy Elliot e Jump) faz o irmão mais novo que aproveita a atenção de todos para a ameaça de suicídio para completar o trabalho pretendido pela dupla. O vilão mor aqui é Ed Harris em uma interpretação correta, como é seu bom costume. A surpresa fica por conta da atriz Génesis Rodríguez no papel de uma ladra latina que tem momentos de bastante química e de algum humor com o namorado interpretado por Jamie Bell.

Aproveite para ver num dia em que não estiver a fim de pensar em muita coisa. Dá pra desfrutar. Muita gente da mídia falou mal, a crítica não perdoou, disse que o filme é repleto de clichês, mas eu até que gostei. Devia ser o que meu dia estava precisando.

7.3.12

Dois Coelhos

     Não me lembro de ter visto um filme brasileiro tão cheio de tramas, reviravoltas, perseguições como este. E olhe que assisti a Tropa de Elite 1 e 2 e gostei muito das duas películas, mas aqui em Dois Coelhos o diretor Afonso Poyart, um estreante na tela grande, mas já parece um veterano, leva o filme na unha já que também é o produtor e fez a montagem. 

      O filme tem um elenco muito bom com mérito de ser preparado pela já mítica Fátima Toledo, polêmica preparadora de elenco responsável por extrair preciosidades de atores em filmes como Tropa de Elite, Cidade de Deus, Céu de Suely, Cidade Baixa, Central do Brasil e inúmeros outros.

    Aqui talvez pelo dedo de Fátima Toledo, podemos ver o ator Fernando Alves Pinto, protagonista, sem as suas tradicionais afetações vistas em filmes anteriores como em Terra Estrangeira, Árido Movie, Nosso Lar e Tônica Dominante. Aqui o rapaz tá na rédea curta e isso é muito bom. Não aguentava mais seus trejeitos. Alguém precisava ensinar a ele que no cinema menos é mais.

       O filme é uma pequena pérola, uma brisa refrescante no meio de uma produção nacional que parece mais feita para estudos acadêmicos ou para caçar níqueis, pois foi nisso que o cinema brasileiro se transformou com raras e honrosas exceções. Aqui vemos um roteiro complexo, uma narrativa bem feita que teria tudo para descambar numa mixórdia de explosões e tiroteios, mas tudo se explica no final, e para isso é bom prestar bastante atenção ao filme, pois a trama é complicada mas fascinante.

         Parabéns extras à sonoplastia vibrante e à equipe de pós-produção que adiciona ao filme elementos gráficos que o associam à linguagem das pichações de rua, adequadas ao ritmo acelerado e ao universo marginal em que transitam os personagens. Impossível não lembrar bons momentos de filmes de Quentin Tarantino, Christopher Nolan e Guy Richie. 

       Um filme para espantar o sono.

22.2.12

Histórias Cruzadas


Uma crítica disse que o pior adjetivo que se pode usar para um filme é: correto. Ok, então se for assim, Histórias Cruzadas é isso: correto, mesmo levando um Globo de Ouro e concorrendo a quatro Oscar. Filme, Atriz (Viola Davis) e Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer e Jessica Chastain).
O filme levou os prêmios de Melhor Elenco, Melhor Atriz (Viola Davis) e Atriz Coadjuvante (Octavia Spencer) do Sindicato dos Atores da América e Octavia Spencer, o Globo de Ouro, concorrendo com a mesma Jessica Chastain do elenco.
Então voltemos ao início: é um filme correto, interpretações na medida do que se espera delas, roteiro amarradinho, tudo dentro da receita. Ninguém faz feio, a reconstituição de época dos anos 60 é boa e o tema dá um belo caldo: o racismo no sul dos Estados Unidos. Você já viu esse filme antes? Já e não foram poucas vezes.
Aqui a história gira em torno da luta pelos direitos civis dos negros americanos. Aqui ela aparece com uma escritora branca decidindo enfrentar o código de silêncio em torno da segregação mal disfarçada dos negros na cidade de Jackson, Mississipi (você já viu Mississipi em Chamas!), mas aqui o diretor Tate Taylor opta por narrar a história sem exibir o racismo cru e violento, mas o racismo do dia a dia. Por exemplo, o assassinato do militante negro, Medgar Evers, na própria cidade de Jackson, e do presidente Kennedy, são mostrado apenas pela TV.
A força que o filme perde ao não abordar com contundência o racismo no Mississipi está na canção célebre de Nina Simone: Mississipi Goddam (Maldito Mississipi) que trata exatamente do assassinato de Medgar Evers, no Mississippi, além do assassinato de quatro garotas negras numa igreja do Alabama. Nina Simone compôs a canção que expressa sua indignação: “Alabama’s gotten me so upset/ Tennessee made me lose my rest/And everybody knows about Mississippi Goddam”. (Alabama deixou-me tão irritada/Tennessee me fez perder meu descanso/ E todo mundo sabe sobre o maldito Mississippi).

14.2.12

O Espião Que Sabia Demais

O Espião Que Sabia Demais é uma boa opção se você estiver com sono. Dá até pra roncar. Sinto uma grande pena em dizer isso desse filme. Sabe aquele tipo de filme que você queria muito gostar? Pegaram uma história de espionagem sobre guerra fria do magistral escritor John Le Carré; adicionaram um diretor que já mostrara ser um talento em ascensão como Tomas Alfredson (vide o seu filme cult sueco de vampiro Deixe Ela Entrar); acrescentaram um elenco de primeira a começar pelos sempre ótimos Gary Oldman, Colin Firth e Jonh Hurt…mas resulta num filme monótono, chatinho, excessivamente sombrio e arrastado. A trama de Le Carré é ótima nos seus best sellers, mas no cinema a massa desanda e vira um filme sobre um bando de burocratas matando, torturando e perseguindo uns aos outros.

Aqui, apesar de ótima reconstituição de cenários da época da Guerra Fria, temos uma overdose de elementos ingleses. Parece que o diretor quer em cada mínimo frame do filme nos lembrar que estamos na Inglaterra. Então não há um minuto sem uma xícara de chá, uma rua coberta de fog, sanduiches de pepino (“iguaria” favorita dos britânicos), alguém nadando num lago (passatempo inglês), papéis de parede florais, cães ingleses…fica over. Mesmo nas cenas filmadas em Budapeste e Istambul a gente sente que o diretor quer martelar na nossa cabeça que tudo tem que ter a cor do local.

Inegável, porém, o talento minimalista dos atores, mas o minimalismo pode ser demais até chegar a bons minutos em que um bom ronco não faz mal. Elogiável é a sequência final, em que tudo se explica — ufa, depois de duas horas já estava na hora —, ao som de La Mer, na voz de Julio Iglesias. Ah, e a trilha do filme está concorrendo ao Oscar. Esqueça se você acha Julio Iglesias brega. O homem arrebata com a canção originalmente gravada com uma batida jazzística em inglês com o título Beyond The Sea, usada à exaustão no cinema até na trilha de Procurando Nemo, mas aqui há um vivo frescor francês. Algo de sublime no meio de fog, críquete e sanduiche de pepino. Bons sonhos.

11.2.12

Um Conto Chinês


O cinema argentino virou uma unanimidade por todos os motivos e com todos os méritos, inclusive com Oscar e tudo. À parte o cartaz infeliz deste filme que mostra uma vaca e dá uma idéia errada de que se trata de uma comédia (deviam matar quem escolheu esse cartaz), o filme cumpre tudo aquilo que um bom filme argentino promete a começar pelo ator Ricardo Darín, presente em 9 de cada 10 produções dos nuestros hermanos portenhos (Abutres, O Filho da Noiva, O Segredo dos Seus Olhos, Clube da Lua, Nove Rainhas…)

O filme tem um início estranhíssimo, com uma vaca literalmente despencando do céu. Essa introdução será retomada adiante numa ligação que consegue unir o bizarro e o lírico de modo extremamente original e convincente. Um erro que pode se tornar um acerto, uma busca da solidão que pode se transformar num encontro com o amor, a falta de comunicação tornando o azar em sorte.

Aqui, Darín é Roberto, um mal humorado veterano da Guerra das Malvinas que vive do trabalho para casa, recluso e cheio de manias. Uma delas é colecionar artigos estranhos publicados pelos jornais. Ele encontra por uma casualidade um chinês que não fala uma única palavra de espanhol que é roubado e atirado de um táxi em plena Buenos Aires. Eles não falam uma palavra em comum e seriam as pessoas menos indicadas para conviverem, mas, aos poucos, de um modo surpreendente, essa relação aparentemente impossível revela uma lição que mudará completamente a vida de ambos.

Um roteiro primorosos e repleto de sutilezas que faz a gente se perguntar por que no Brasil não se faz filmes assim.

8.2.12

Os Homens que Não Amavam as Mulheres


A fantástica série de livros Milenium, que deu origem a uma produção cinematográfica sueca, exibida no Brasil como uma brisa, com pouco público e pouca divulgação, talvez por ser sueca, agora, o mesmo filme: Os Homens que não Amavam as Mulheres, na versão em inglês: “The Girl with the Dragon Tattoo”, primeiro livro da trilogia, chega com a grife de Hollywood estampada e pode ser que tenha mais sucesso por aqui. Na bagagem carrega uma história de primeira, um diretor de mão cheia como David Fincher (Seven, Clube da Luta e A Rede Social) e um ator em franca ascensão: Daniel Craig (aqui sem os seus biquinhos habituais).

O filme está indicado a quatro Oscars.A série de livros já foi traduzida para mais de 40 idiomas e é um sucesso internacional com mais de 30 milhões de livros no mundo. O que é mais do que impressionante, pois são três livros totalizando 1.874 páginas.O papel mais vibrante do filme é o da hacker punk e bissexual Lisbeth Salander e ele foi parar nas mãos da atriz novata Rooney Mara (de A Rede Social) que se sai muito bem ao ponto de ter sido indicada ao último Globo de Ouro ao lado de veteranas como Meryl Streep e Glenn Close.

Não concordo com a opinião do crítico Thales de Menezes da Folha de São Paulo que diz que David Fincher melhora o livro que já era muito bom. Na verdade, como são duas linguagens narrativas diferentes (livro e filme), pode-se dizer que um é melhor ou pior do que o outro, mas nunca que um melhora o outro. Um filme não pode melhorar um livro. Nada pode, pois o livro é uma obra acabada e assim não pode ser melhorada ou piorada, não é como uma obra que está em construção ou que caiba reformas que a melhore.

Um dos pontos altos do filme é sua abertura espetacular. Nos meus muitos anos de cinéfilo não me lembro de uma abertura (enquanto aparecem os créditos) tão impactante e bem feita. Deveria haver um prêmio para a melhor abertura. Este filme levaria com louvor. Para quem leu os três livros ou viu o primeiro filme, esta versão é boa, mas não tem muito a acrescentar. O primeiro filme não era ruim, como diz o crítico da Folha chamando-o de “rascunho comparado à versão americana”. Tem gente que só valoriza o que vem de Hollywood.

Aliás, esse mesmo crítico acerta num ponto quando diz que a versão de Fincher perde para o original quando revela preocupação estética excessiva na brutal cena do estupro. A cena, na versão sueca, era crua e violenta. A americana, de tão plástica, parece mais uma cena de pornô soft.O filme americano muda o final do original. Para quem é fã da história de Stieg Larsson, fica um gosto meio amargo de um filme que tem um clímax e opta por terminar num anticlímax, com uma cena final chocha.

Os leitores da obra se apaixonam por Lisbeth apesar de ela levar a expressão anti-social ao seu paroxismo. Todos nós embarcamos na garupa da sua moto; nos angustiamos com as perseguições a que ela é submetida, exultamos quando ela consegue se vingar dos que a sacanearam e todos nos perguntamos se tudo valeu à pena, diante do seu sofrimento.

Essa crítica está parecendo mais literária que cinematográfica, mas isto é inevitável tratando de uma adaptação de um livro que é sucesso mundial. Aliás, deixo uma provocação. Cada volume (versão econômica) custa em torno de R$ 30,00 e encanta o leitor por semanas. Um ingresso de cinema custa em torno de R$ 10,00 e garante duas horas de encantamento.

Não dá pra ficar comparando né ?

20.1.12

Os Advogados do “Bom Gosto” Alheio

Todo ano é a mesma ladainha. Basta a Rede Globo estrear uma edição do Big Brother Brasil que logo começa uma campanha e uma feroz patrulha contra o programa e a emissora. Mas nunca vi a coisa ficar tão feroz como desta vez. As redes sociais estão pululando de gente ouriçada, todos loucos para opinar contra o BBB. São os advogados do bom gosto alheio.

E tome clichês como “atrofiar a mente”, “alienar”, “A intenção da Globo é nos emburrecer”, “zoológico humano”... É uma ladainha de lugares comuns.

O BBB, na sua essência, não difere dos outros inúmeros reality shows (há para todos os públicos). Mas os advogados do bom gosto alheio se atiçam especialmente pelo programa que é um tipo contemporâneo de dramaturgia. Você pode gostar ou detestar uma pintura, um romance, uma peça, uma novela, um samba ou um balé, mas não pode negar que todas essas expressões artísticas têm em comum os elementos básicos constitutivos de toda dramaturgia, elementos estabelecidos há centenas de anos por Aristóteles em sua “Retórica”: pathos, ethos e logos.

Pathos representa os elementos dos conflitos estabelecidos, as brigas, os amores, as intrigas; Ethos, a ideia de que o forte pode ser derrotado pela união dos fracos, o caráter das personagens, ou a possibilidade de o bem vencer o mal no final. Ou não. Logos é a narrativa midiatizada pela TV, a linguagem.

O BBB representa apenas um exemplo dos novos formatos que a cultura contemporânea encontrou para disseminar estruturas narrativas diferentes das então existentes. A evolução da tecnologia ao longo da história humana sempre modificou os padrões difusores da dramaturgia.

A se fiar nos contrários a novidades narrativas, nunca se teria escrito a Ilíada e a Odisséia, pois quando os aedos gregos, como Homero, narravam aqueles cantos, fiavam-se apenas na memória. Quando começaram a escrever as histórias, considerou-se um sacrilégio. Quando incorporaram ao teatro apetrechos técnicos que tiravam o foco da interpretação dos atores, inicialmente foi uma heresia, como a inclusão do som no cinema mudo...

Todas as mudanças introduzidas nas narrativas existentes sempre geraram estranhamento e críticas. E as críticas sempre vinham dos conservadores.

O que os advogados do bom gosto acham de tão diferente assim entre um BBB e uma novela ou um livro ou um filme? Não estou entrando no mérito da qualidade da obra, mas do formato delas. Vejamos:

1º) Todas tem um tipo qualquer de representação. O ator encarna um papel diferente de si próprio, um personagem. O BBB tem nisso uma grande jogada: o participante, que não é ator, representa a si próprio. Mas não pode ser 100% ele mesmo, pois as pessoas esperam uma mistura de realidade com show, buscam alguma centelha de encantamento. Essa dosagem misteriosa, esse ponto de equilíbrio delicadíssimo faz com que o participante agrade ou não ao público. Agrada mais aquele que, paradoxalmente, melhor finge o que realmente é. E o púbico é esperto. Assim como os participantes. No cinema/novela/teatro, o ator não pode ser ele mesmo sob pena de desagradar ao público e ser tido como canastrão.

2º) Todos os formatos dramatúrgicos envolvem algum tipo de dinheiro. Ou alguém acha que um escritor ou diretor ou roteirista escreve ou dirige por sacerdócio? O que incomoda tanto no fato de um participante do BBB ganhar 1 milhão? Muitos atores ganham isso. Aliás, isso é de uma falta de importância tão grande que atribuo as críticas focadas nesse aspecto do programa ao puro despeito ou inveja. Ou coisa pior, um elitismo disfarçado (só quem pode ganhar esse dinheiro é alguém que tenha estudado dramaturgia ou ralado na lida dos palcos e telas).

3º) Toda dramaturgia é um tanto de ilusão. Ninguém suporta excessos de realidade e ironicamente o reality show é uma realidade dourada. As festas são inclusões artificiais, a relações são profundas ou superficiais, há uma fachada que é evidenciada em cada aspecto, mas ao mesmo tempo busca seu disfarce. O paradoxo é fascinante. Cada um quer ganhar o prêmio máximo, quer ganhar a fama, a atenção, o carinho, o voto. É um simulacro da realidade, uma emulação dos conflitos da vida real maximizados e estimulados. O voyerismo é uma das condições da existência de qualquer obra de arte. Um exemplo disto está na célebre entrevista em que o diretor francês da nouvelle vague, François Truffaut, ídolo da esquerda, dá uma aula aos patéticos jornalistas americanos, explicando-lhes, e deixando-os de queixo caído, porque Janela Indiscreta, de Alfred Hitchcock, é uma obra prima.

4º) Toda história tem um autor-narrador. O BBB tem milhões. A história vai se desenvolvendo à medida em que os conflitos e alianças se estabelecem. A cada dia, a casa pode adquirir novo formato a depender das performances dos seus integrantes e do humor da audiência. Todo livro, novela, peça, música tem apenas os seus autores.

Cabe aos leitores, espectadores e ouvintes o papel passivo de desfrutar da obra ou não. No BBB estabelecesse uma cumplicidade e a plateia tem a sensação de que pode fazer a história adquirir um rumo ou outro. Uma dramaturgia sem texto, ou melhor, com uma infinidade de textos possíveis.

Acho um perigo quando começam a definir o que é de interesse público e o que não é. Acho muita arrogância de intelectual pretensioso criticar o que as pessoas gostam. Acho que o maior termômetro para saber se algo está agradando é a audiência. Vejo um vídeo disseminado pelos advogados do bom gosto alheio do artista plástico Antonio Veronese criticando o BBB a partir de uma matéria do jornal O Globo em cujo caderno cultural publicou quantas vezes as meninas se masturbaram dentro do programa. Para ele é inconcebível que o “país pare” para ver duas pessoas conversando abobrinhas na cozinha.

Ele diz ainda que o BBB idiotiza as pessoas, mas se esquece de que a tv aberta mesmo oferece programas de "qualidade" que não atraem a audiência, vide os índices da TV Cultura. As pessoas não se conformam em não assistir ao programa, elas querem que os outros também não assistam. Elas não se conformam em não gostar, incomodam-se que outros gostem. E usam essa desculpa esfarrapada de que não é do interesse público ou que não é de bom gosto. Ninguém está obrigando ninguém a assistir. Para isso existem controles remotos e a programação cult da TV Cultura.

A Rede Globo como as demais emissoras são empresas privadas e têm anunciantes. Assiste quem quer. O que não dá é para ficar impondo a vontade em nome de um bom gosto ou moralismo e querer que uma empresa privada faça o que os intelectuais boçais querem. E se os anunciantes querem pagar para aparecer no programa é porque dá lucro para eles. O governo não tem nada a ver com isso. Os intelectuais adoram se meter no gosto dos outros e quando não conseguem o que querem pedem a interferência do governo.

Acho isso tão perigoso que nem sei por onde começar a me preocupar. Só queria saber de início quem são os sabidos que vão escolher o que é adequado. Quem são esses inteligentes que vão dar os parâmetros do que é bom e o que não é. O mais democrático é que cada um escolha o que lhe convém. Não para os advogados do bom gosto alheio, eles sabem o que é bom para o povo. Para mim, só resta lembrar a advertência do robô de Perdidos No Espaço: “Perigo! Perigo!”.

Para moralistas contrários ao programa, o BBB deve se suspenso “em defesa da família brasileira” (juro que li esse argumento na internet). Então vemos uma aliança estranha, os moralistas, os esquerdistas e os intelectuais contra o programa da Rede Globo.

Para quem reclama de um programa exibir durante horas imagens banais de pessoas conversando abobrinhas, lembro que o pintor e cineasta underground americano, Andy Warhol, pai da pop art e ícone pós-moderno, exibiu, em 1963, o seu filme Sleep, que era simplesmente um plano-sequência de um homem dormindo por cinco horas e vinte minutos. Mais tarde, Warhol apresentou um plano-sequência de oito horas de filme. E Andy Warhol continua a ser considerado um gênio pelos intelectuais. Será que esse dois filmes seriam considerados adequado para o tal “povo” ?

Conversando com uma amiga ouço o seu comentário: “Não entendo como alguém inteligente como você pode gostar desse programa”. Explico minhas razões. Ela reage assim: “Mas isso o povo não sabe”. Eis o que esses advogados do bom gosto alheio pensam: Elas pensam que sabem o que é melhor para o povo.

19.1.12

Os Imortais


Há uma máxima em Hollywood segundo a qual “jamais alguém perdeu dinheiro na indústria cinematográfica por subestimar a inteligência das platéias”.
Eis um desafio: escrever a respeito de um filme sobre o qual não encontrei absolutamente nada de bom para falar. Sou, desde criança, leitor compulsivo de mitologia grega, apaixonado pela história dos deuses e heróis desde criança, introduzido ao tema pela coleção Sítio do Pica-pau Amarelo de Monteiro Lobato. Os dois volumes dos 12 Trabalhos de Hércules foram o gás para vôos mais longos e profundos até conhecer mitologia grega como conheço a história dos meus amigos.
Essa longa narração é para explicar ao leitor que apesar de eu não ser leigo no assunto, mesmo conhecendo muito bem a história de Teseu com o Minotauro, Fedra, Zeus etc, fiquei muitas vezes perdido na história. Fico imaginando um expectador que não conheça tão bem o tema. O filme é uma farsa que não respeita sequer uma mínima coerência interna. Ele tem tantas falhas e é tão mal feito (me surpreende que seja da mesma equipe do espetacular 300), que precisaria dividi-lo em partes para começar a apontar os defeitos.
Primeiro, creio que o tema já foi explorado abundantemente e recentemente em Fúria de Titãs (refilmagem de um clássico) e também tivemos 300 e Tróia, esse último, outro filme que falhou demais com a mitologia.
Segundo, o que se via no cinema através daqueles óculos horrorosos de filme 3D era uma mutilação de um filme (para utilizar um termo bem adequado ao enredo). Muitas vezes, eu preferia tirar os óculos e ver borrões e não ler as legendas, pois a opção com os óculos era não distinguir os contornos dos rostos já que parecia que era sempre noite e uma névoa marrom cobria a tela prejudicando a visão.
Terceiro: Em cinema uma das principais atividades é a do produtor de elenco, a pessoa que seleciona os atores. Há uma expressão em francês, mas que se usa comumente em qualquer país, que é “physic du rôle”, ou, traduzindo, físico adequado ao papel. Pois bem, foram poucos os filmes em que vi um elenco tão mal escolhido. O ator que representa Zeus parece um jardineiro mexicano com um bigodinho ridículo. O personagem clássico Zeus é o que pode haver de mais monumental e ameaçador. Há uma iconografia consagrada nas estatuárias espalhadas pelo mundo e obras de arte mostrando-o como um homem barbudo e forte com ar dominador. Pegaram um ator que dava para ser um jardineiro, colocaram um bigodinho ridículo e disseram: você vai ser Zeus! Pelos deuses, que gente burra é essa?
Aliás o miscasting é disseminado. Fiquei com pena de ver o grande John Hurt com um papel tão humilhante para o seu talento que brilhou em clássicos como O Homem Elefante, Perfume, o primeiro e melhor filme da série Alien, 1984 e tantos outros.
Quarto problema: A História. Imagine se eu quiser contar uma história baseada no Velho Testamento e misture as coisas colocando Abraão na arca de Noé ou Moisés sendo amante do Faraó….coisas desse gênero. Obviamente, muita gente ia reclamar com razão. Pois então por que diabos esses roteiristas resolvem misturar tudo que tem a ver com a história de Teseu? Teseu era um príncipe que virou rei de Atenas, era filho do poderoso rei Egeu, matou o minotauro que era um monstro no labirinto da ilha de Creta, uma história consagradíssima, cheia de simbolismos, detalhes saborosíssimos e que esse filme simplesmente retalha como uma picanha no espeto. E Fedra era filha do rei Minos de Creta e não tinha nada de sacerdotisa mas era uma mulher comum que inclusive seduziu o flho de Teseu, Hipólito que lhe resisitiu e por isso, falsamente acusado por ela, foi morto pelo pai. Então se vê que a história do filme é uma farsa, um deliberado saque de uma rica tradição por um bando de bárbaros da industria do cinema para, com os despojos, conseguir o entretenimento de incautos.
Quinto problema: A montagem do filme deve ter sido comprometida durante as cenas de açougue. Explico: Esse é o filme em que a violência é mais explicita e grotesca em relação aos filmes do gênero. Quiseram mesmo fazer um filme ou um açougue? As locações estavam mais para um matadouro do que para um templo ou um túnel ou o que quer que seja. Para facilitar a compreensão das platéias, as montagens costumam rapidamente identificar o local em que a cena se passa quando há a transição da narrativa de um ponto para outro.
Exemplo: estávamos num penhasco onde aconteciam cenas. Há um corte e outra cena é mostrada em outro local e assim sucessivamente. Não há a menor preocupação em fazer um take mínimo como ilustração para que a gente saiba que vai ver outro lugar. É tudo misturado e confuso. Não surpreende que as pessoas não entendam.
O diretor Tarsem Singh, que estreou no gótico fantástico A Cela, abusando, no bom sentido, das cores vivas, dos figurinos elaborados e dos cenários espetaculares, aqui cai numa armadilha estética que ultrapassa de longe o grotesco, uma queda de qualidade de rachar crânios, bolsos e reputações.
Sexto problema: Por que só perto do final do filme se diz o nome de Fedra? O tempo todo a gente não sabe como chamá-la. E os deuses? Por que só três deles têm nomes? Zeus, Atena e Poseidon. Ninguém fala nada dos outros e eram tantos: Ares, Artêmis, Afrodite, Hera, Hefaistos, Deméter, Héstia, Hermes, Apolo, Hades, Perséfone….Nomes existem para serem usados. Faltou pesquisa na produção, virou uma mixórdia, faltou talento e sobrou arrogância….um filme todo errado, sem um único mérito. É um desafio encontrar um adjetivo negativo para resumi-lo. A crítica do New York Times chamou-o de “ESTÚPIDO”. Para mim, trata-se de um filme DESNECESSÁRIO!
Mas, como ninguém perde dinheiro ao subestimar inteligências alheias, o filme deve ter seu público. Há quem goste de açougues e matadouros com saiotes, elmos, espadas, sandálias e arcos mágicos.

1.12.11

Por que não deixam os ateus em paz?

Outro dia, almoçando com minha amiga Conceição Moraes e outra colega, comentei que Conceição reza a Ave Maria todos os dias. Conceição então apontou para mim e disse: “Ele é ateu! Tenho pena desses ateus!”.

Respondi: “Também tenho. Seria uma vida tão mais fácil se eu acreditasse em Deus”.

O mais interessante foi o choque da outra colega. Em seu rosto uma miríade de expressões: incredulidade, como se eu fosse uma aberração; pena: como se eu precisasse de socorro; incômodo: por respirar o mesmo ar que eu. Tive vontade de dizer-lhe: “Ela disse que sou ateu e não que sou pedófilo”.

Eu já deveria estar acostumado. Poucas classes são mais mal vistas do que a dos ateus. Pesquisa do Gallup nos EUA mostrou que entre 95% e 80% dos americanos votariam em uma mulher, um católico, um judeu, um negro, um mórmon ou um homossexual para presidente, mas menos de 50% votariam em um ateu. No Brasil, 84% votariam em um negro para presidente, 57% dariam o voto a uma mulher, 32% votariam em um homossexual, mas apenas 13% votariam em um ateu. Entre as minorias (racial, sexual, de gênero...), a mais rejeitada é a anti-religiosa.

A historiadora Eliane Moura Silva, especialista em religião, analisa: "O brasileiro ainda entende o ateu como alguém sem caráter, sem ética, sem moral. É um entendimento que se espalha de modo homogêneo por todas as classes sociais.”

A jornalista Eliane Brum escreveu o artigo: “A dura vida dos ateus em um Brasil cada vez mais evangélico” em que descreve o diálogo com um taxista. O homem afirmara ser evangélico e perguntou sua religião. Quando a jornalista disse que era ateia o motorista saiu com um

- Deus me livre!

Eliane retrucou – Engraçado isso. Eu respeito a sua escolha, mas você não respeita a minha. Eu sou uma pessoa decente, honesta, trato as pessoas com respeito, trabalho duro e tento fazer a minha parte para o mundo ser um lugar melhor. Por que eu seria pior por não ter uma fé?

Eliane reflete sobre como a vida dos ateus é dura num Brasil cada vez mais evangélico pentecostal. “Por que os ateus são uma ameaça às novas denominações evangélicas? Porque as neopentecostais são constituídas no modo capitalista. Nessas novas igrejas, não há como ser um evangélico não praticante. É possível pular de uma para outra, como um consumidor diante de vitrines. Essa dificuldade de “fidelizar um fiel” obriga as neopentecostais a uma disputa de mercado. É preciso que os fiéis estejam dentro das igrejas para consumir um dos muitos produtos milagrosos ou para serem consumidos por doações. O templo é um shopping da fé”.

A Igreja Católica, atualmente mais tolerante com os ateus do que as pentecostais, tem também uma história de forte mercantilismo e utiliza movimentos carismáticos para reduzir a sangria de fiéis.

“Não há nada mais ameaçador para o mercado do que quem está fora do mercado por convicção. E quem está fora do mercado da fé? Os ateus. É possível convencer um católico, um espírita ou um umbandista a mudar de religião. Mas é bem mais difícil – quando não impossível – converter um ateu. Para quem não acredita na existência de Deus, qualquer produto religioso não tem qualquer apelo. Tenho muitos amigos ateus que me contam que têm evitado se apresentar dessa maneira porque a reação é cada vez mais hostil.”

No site de uma igreja a jornalista encontra um aviso: “O perigo da tolerância” e afirma que Deus não é tolerante e incita os fiéis a não tolerar o que não venha de Deus. “Hoje em dia, o mal da sociedade tem sido a Tolerância (em negrito e em maiúscula)”.

“A liberdade de credo – e, portanto, também de não credo – determinada pela Constituição está sendo solapada na prática do dia a dia. Se Deus existe, que nos livre de sermos obrigados a acreditar nele.”, concluiu.

Já na Folha de São Paulo do dia 24/11 deparo-me com o artigo do jurista Ives Gandra Martins intitulado: “Fundamentalismo ateu”. Quase ri do inevitável oximoro, mas não havia nenhuma poesia na contradição dos termos como no Claro Enigma de Drummond.

Ives Gandra diz que sustentou, pela CNBB, no STF, a inconstitucionalidade da destruição de embriões para fins de pesquisa. E recorre a um silogismo (“pois são seres humanos, já que a vida começa na concepção”).

Esse é um tipo de argumento fraudulento. O pois indicaria que a opinião do jurista é suficiente para servir de premissa. O pois seria apenas uma “conclusão lógica do argumento e o argumento é a própria opinião”. E continua “já que a vida começa na concepção”.

Isto é que é fundamentalismo! Se a vida começa na concepção, resta saber se aquela vida é um ser humano. Aliás, há vida em um pedaço de carne que se tira numa cirurgia. Um amontoado de células é vida, mesmo que seja num tumor. A questão é mais profunda. Esta vida é protegida como um ser humano é? Deve-se dar a um embrião de dez dias o mesmo tratamento de um ser humano? E a se crer nesse argumento, há milhões de “seres vivos” congelados em laboratórios de fertilização, embriões fertilizados. Essa “gente” não tem direitos não?

Ives Gandra, ao sustentar que a Igreja é a detentora da verdade, esquece dos milhõesque morreram por desafiar a verdade da Igreja Católica.

Seria cômico se não fosse perigoso ler um jurista dizer que há uma “guerra ateia contra aqueles que vivenciam a fé cristã e cumprem seu papel, nas mais variadas atividades, buscando a construção de um mundo melhor”.

Se dependêssemos do mundo melhor dos religiosos ainda estaríamos com o Sol girando em torno da Terra e queimando mulheres e cientistas nas fogueiras da inquisição.

Para Gandra, ateus só não são iguais aos fundamentalistas do Oriente Médio porque não há terroristas entre eles. Puxa, uma diferença realmente pequena....Uns saem matando pessoas e explodindo prédios e jornais que publicam caricaturas de Maomé enquanto os ateus não explodem ninguém, não queimam ninguém. Não querem convencer ninguém a nada. Só querem que os deixem em paz.

A capacidade de influenciar pessoas é tão desproporcional entre religiosos e os poucos ateus que surpreende que possamos incomodar tanto essas sumidades. Não fosse falta de humildade seria por arrogância ou pura falta de bom humor. Recentemente, a Benetton foi obrigada a suspender parte da sua sempre polêmica campanha publicitária em que mostrou líderes mundiais trocando selinhos. Sob o sugestivo nome de UNHATE (Não ao ódio),sintomaticamente, o único cartaz suspenso foi o que do papa beijando um imã.

Se eles se beijassem mais talvez se esquecessem de nós.

26.11.11

Os Amores Imaginários

Assisti a Amores Imaginários no ano passado na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Somente agora ele estreia em Salvador. Antes tarde do que nunca, pois o filme é uma pequena joia. Você não deve deixar passar a oportunidade de conferir o trabalho do diretor canadense Xavier Dolan, que também atua no filme, premiado em Cannes e indicado ao Cesar (o Oscar francês) como filme estrangeiro.

Xavier Dolan não é apenas uma carinha bonita no cinema (se bem que ele tem uma bela estampa). O moço já dirigira o ousado Eu Matei Minha Mãe, sua estreia como diretor de um filme que ele também roteirizou com apenas 16 anos. Um fenômeno precoce.

O rapaz (hoje ele tem 22 anos) demonstra grande ousadia ao pegar um tema extremamente batido como o do triângulo amoroso e conseguir extrair dele algum frescor.

A delicadeza com que o jovem diretor trata o tema é talvez reflexo da sua juventude e da sua sexualidade (Dolan é gay). Muitos jovens passam pelos mesmos dissabores que os personagens atravessam nos dois filmes.

Aqui, o triângulo amoroso tem como foco uma relação platônica entre a descolada Marie e seu melhor amigo gay (papel do diretor Dolan) pelo angelical Nicolas que, pelo jeito, quer mesmo é só a amizade enquanto os dois amigos se engalfinham pelo belo querubim de cachinhos dourados que flerta com os dois sem garantir o principal.

Vemos que a relação dos inseparáveis amigos passa a sofrer um duro revés. Será que vão superar o angelical (ou diabólico) Nicolas?

O filme já seria interessante se mostrasse apenas essa história, mas ele fica ainda melhor e ganha força quando insere depoimentos de outras pessoas que contam suas tragédias amorosas particulares. Há depoimentos bizarros, há sentimentos em borbotões, há dor legítima, há loucuras por amor e fracassos românticos. E ainda, como cereja do bolo, belas cenas em câmara lenta ao som de Bang Bang, sucesso original de Nancy Sinatra (da trilha de Kill Bill), mas aqui interpretada em italiano pela cantora Dalida, cult como um Tarantino, kitsch como um Almodóvar.

Desculpem os críticos amargos e cheios de fel, mas só alguém muito azedo para não se deixar deslumbrar por cada cena deste filme delicado. Por que se preocupam tanto em apontar uma suposta pretensão do jovem diretor e se esquecem dos diálogos bem elaborados e das interpretações cheias de nuances? Dolan, além de tudo, sabe dirigir bem seus atores.

Um filme, como não poderia deixar de ser, repleto de exageros, exagero de dor, de amor, de amizades e rupturas. A fotografia, a cenografia, a trilha sonora, o figurino e a direção de arte mostram esse exagero estético com um cenário belíssimo, repleto de objetos vintage. Referências explícitas aos ícones James Dean e Audray Hepburn dão um toque ainda mais camp.

O que muitos críticos condenam no filme é, em minha opinião, exatamente o que ele tem de melhor. Dolan assume sua estética gay (se é que se pode classificar assim) e exagera mesmo. Afinal, o filme trata dos exageros. Críticos dizem que ele abusa de um virtuosismo redundante e se esquecem de que o filme trata exatamente da repetição de erros amorosos, das reiteradas armadilhas em que caímos quando nos apaixonamos, e como nos colocamos sempre nas mesmas arapucas. E por que se malha tanto Dolan por abusar das câmaras lentas quando para Wong Kar Wai (meu diretor favorito) só há elogios para as mesmas tomadas ao som de baladas tão melosas (e belas) quanto? Dá vontade de, ao sair do cinema, comprar correndo a trilha sonora.

Um crítico do jornal A Tarde assina um atestado de fel nas entranhas na sua coluna do jornal em que comenta o filme. Praticamente não há uma linha que não seja dedicada a falar mal da obra. Desde a primeira linha diz: “Na pressa para apontar novos talentos, a imprensa celebrou o jovem diretor canadense Xavier Dolan, que, aos 20 anos, cometeu Eu Matei Minha Mãe (2009), assinando o roteiro, a direção e trabalhando como ator e coprodutor. A obra tem momentos de apelo dramático, mas sucumbe diante de uma superficialidade mal disfarçada”.

Ora, para um filme (Eu Matei Minha Mãe) conquistar três prêmios na Quinzena dos Realizadores do Festival de Cannes, o Prêmio Internacional do Júri na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, o Prêmio da crítica no Palm Springs Internacional Film Festival e ainda representar o seu país no Oscar com apenas 20 anos de idade e já no primeiro filme e o crítico dizer que o diretor “cometeu” o filme....Esse crítico parece que sabe mais do que o pessoal de Cannes e do Oscar.

O amargo crítico continua: “...a câmera de Dolan se dedica ao onanismo pseudo esteta, que derrama influências as mais diversas, desde o viés romântico do italiano Bernardo Bertolucci até a arte minimalista do cineasta Wong Kar-Wai (de Hong Kong), passando por idealizações que lembram, por exemplo, Jules e Jim (1962), do francês François Truffaut”. Então eu pergunto: Todas essas são influências ótimas, de grandes diretores e que se o filme traz referências a esses mestres, melhor do que se derramar por porcarias que andam por aí nos circuitões. Mas “onanismo pseudo esteta” é de lascar!!!! onde esse homem foi encontrar isso?!!!

O crítico chama de perfumaria as cenas que norteiam a narrativa e afirma que o diretor as forja sem qualquer efeito prático senão o de provocar algum prazer visual. Quero crer que o crítico prefere cenas em que o visual cause desprazer. Ora, as cenas a que ele se refere são retratos da vida de personagens que têm, sim, uma existência afetada e que vivem em festas, mas essa é a vida deles. As cenas que o crítico reclama de não terem efeito prático são exatamente as cenas que mostram a circularidade dessa vida. Se fosse assim, cenas de grande filmes que exibem momentos de “pouco efeito prático”, deveriam ser abolidas, mesmo que integrem organicamente o próprio filme como, só para citar um, o clássico O Deserto dos Tártaros, em que acompanhamos um personagem durante longas tomadas em que praticamente nada “de efeito prático” acontece e que nos faz, como ele, personagem, esperar que algo aconteça e quebre a sua monotonia pela espera permanente de algo que não acontece nunca.

Esse crítico de A Tarde estava mesmo num dia ruim. Para ele, as questões existenciais de Amores Imaginários “cabem na profundidade de um pires e as pretensões de Dolan incomodam pela maneira como descambam num desarranjo sem qualquer horizonte de consistência”.

Ora, leitor, não seja amargo assim e deixe esse filme leve e suave te conquistar e você pode se divertir sem exigir a profundidade de um abismo ou a consistência de uma areia movediça. Deixe-se envolver nesse tal “pires” mas cheio de uma colorida, divertida e sonora película que pode até ter a consistência de uma gelatina de morango com chantilly, mas vai ser doce e agradável se você não for alérgico a amores reais ou imaginários.

A Pele que Habito


De Pedro Almodóvar já vi tudo. Até seu obscuro livro: “Fogo nas Entranhas” já li. Em todos os seus trabalhos há um tema predileto: as mulheres, esses seres misteriosos que aparentemente são originárias de um planeta diferente do planeta de onde vêm os homens. Pedro Almodóvar aponta para lá sua lente.
O problema começa a se complicar quando se sabe que orbitam nesse universo humano, espécimes de planetas menores, de onde se originam os transexuais, os bissexuais, os hermafroditas, os trangêneros, os crosdressers…um universo de possibilidades. E se o sabido doktor Freud, do alto do seu divã vienense, já se perguntava “Afinal, o que querem as mulheres?”
Dito isto, vamos à Pele que Habito, novo filme de Pedro Almodóvar. A película é baseada no livro Tarântula, de Thierry Jonquet, e dá para entender porque o espanhol escolheu adaptá-lo em vez de ser autor do próprio roteiro. É que os temas caros de Almodóvar estão todos por lá: traições, incesto, estupro, relações intrincadas, bizarrices…o universo almodovariano é uma salada um tanto colorida, e às vezes indigesta.
Talvez aqui ele tenha cometido vários pecados. Deixou sua zona de conforto, com sua multicolorida estética kitsch, o que não deixa de ser uma façanha quando se trata de alguém que tem uma marca reconhecida. O filme tem um lado sombrio que obscurece o que Almodóvar tem de mais marcante: o escracho e o humor, mesmo que seja o humor negro. Aqui vemos Antonio Banderas, como vimos poucas vezes, como um excelente ator (ele só atuou bem quando foi dirigido por Almodóvar, só fazendo bobagens depois de abandonar a tutela do mestre).
Aqui Banderas é um cirurgião plástico que, após o acidente de carro da esposa, cria uma pele artificial com a qual poderia tê-la salvo das trágicas queimaduras. Ele, finalmente, como Dr. Frankenstein, cruza todos os campos da ética e, com os avanços da ciência, desenvolve a tal pele usando um ser humano como cobaia. E este é apenas um dos seus crimes.
O filme avança e retrocede levando o espectador a adentrar o universo do médico-monstro. Infelizmente, a estética muito limpa foge da marca dos sucessos anteriores de Almodóvar e mesmo as cenas de sexo ficam muito aquém de ousadias sensuais de muitos filmes dele. Só para citar exemplos: o estupro em Kika (1993) ganha muito em coreografia sexual em relação ao estupro na Pele que Habito. E Banderas exibe sua nudez sem pudor seja em Ata-me (1990), seja em A Lei do Desejo (1987), mas aqui, pudicamente, se cobre com um cobertor. Almodóvar avança por um lado e recua por outro. Onde estão a coragem e a ousadia de sempre?
Há outros problemas como um vestido que surge após anos sem que se saiba como, alguns erros básicos de continuísmo, personagens que nada acrescentam à trama e que poderiam ser perfeitamente dispensáveis como, paradoxalmente a própria estrela Marisa Paredes (soberba em Tudo Sobre Minha Mãe) em um papel que se for espremido não tem nenhuma importância na trama, além de uma referência descarada e desnecessária ao carnaval da Bahia (Almodóvar é amigo de Caetano Veloso e não se cansa de homenagear o santamarense). A música, que sempre foi um ingrediente destacado dos filmes do diretor, perde bastante na escolha da cantora espanhola Ana Mena para interpretar, em português, a fraquinha canção Pelo Amor de Amar.
Uma falha enorme é o não desenvolvimento psicológico do personagem Vicente. Fundamental para a trama, a ausência do aprofundamento no universo do rapaz demonstra um descuido que parece ser proposital para que o espectador não tenha tempo de ter empatia suficiente com ele.
Mas o filme tem méritos e o principal deles é incomodar a plateia. Isso não é pouca coisa e nesse mister Almodóvar continua um craque. Pena que seu bisturi está menos afiado.

Balada do Amor e do Ódio


A figura do palhaço sempre foi um arquétipo poderoso no cinema (assim como no teatro, na ópera e na arte em geral). Foi com essa espécie de obsessão em mente que o diretor espanhol Alex de La Iglesia dirigiu Balada do Amor e do Ódio, levando os prêmios de direção e roteiro no Festival de Veneza de 2010. O filme é o típico exemplo de cinema fantástico (no sentido do grotesco).


A história tem início na década de 30, durante a guerra civil espanhola, num ambiente de uma família circense cujo elenco é forçado pela milícia a lutar contra o governo. Logo a seguir vemos uma sequência ao mesmo tempo plasticamente bela, mas de uma estética bruta e suja, em que um palhaço, vestido de mulher, com cachos dourados e nariz vermelho empunha um facão e destroça os atacantes munidos de fuzis até ser dominado. Preso e condenado a trabalhos forçados, ele vê seu filho, o garoto Javier (o ator mirim é muito fraco) tentar seguir seus passos já que sonha ser também palhaço, como todos na sua família. Mas o pai, na cadeia, o aconselha a assumir o papel do palhaço triste já que jamais seria engraçado pois não tivera infância. Para ser feliz deveria buscar a vingança.

O filme dá um salto de mais de 30 anos e, sob a ditadura de Franco, vemos o garoto Javier, já um homem adulto, buscando um papel de palhaço triste num circo vagabundo, num ambiente semelhante àquele da sua infância, dominado pelo personagem grotesco, viril e violento do palhaço Sérgio, amante extremamente ciumento da trapezista Natália.

O título desse filme bem poderia ser: “Mulher de malandro é chave de cadeia!” Desde o momento em que Javier vê a moça, que é belíssima, notamos que dali não vai sair coisa boa. Os críticos identificam no amor dividido de Natália (paixão por um Sérgio violento e amor pelo calmo Javiercomo metáfora da própria Espanha, dividida entre fascistas e republicanos.

Impossível não se lembrar de Quentin Tarantino e Guillermo Del Toro em seus filmes mais trash (Pulp Fiction, Bastardos Inglórios e O Labirinto do Fauno). Em certo momento da narrativa percebe-se que o filme rompe todos os rótulos e o diretor claramente viaja na maionese. Passa de uma narrativa política a alegórica e em seguida ao cômico, ao grotesco puro e simples, ao gótico fantástico e termina em um anunciado final trágico. Nunca mais vou ver um palhaço sem esquecer das cenas desse filme.

21.9.11

Melancolia e A Árvore da Vida

No momento em que escrevo esse texto, os filmes Melancolia e A Árvore da Vida estão em cartaz em apenas três salas de cinema de Salvador. Não sei quanto tempo continuarão em cartaz. Acho difícil que permaneçam muito tempo, pois apesar de serem filmes de diretores famosos e polêmicos — Lars Von Trier e Terrence Malick — podem ser substituídos perfeitamente por um bom lexotan. E ambos estão ligados ao mesmo tema: a vida é uma Graça de Deus ou é um presente da própria Natureza?

Sou fã dos dois diretores. De Lars Von Trier sou macaco de auditório, admirador de todos os seus filmes desde que fui apresentado, em 1991, à experiência única da sua película “Europa”. Não perdi uma única aventura do polêmico cineasta que este ano perdeu a Palma de Ouro de Cannes por conta de sua proverbial língua e do seu imensurável ego, quando bateu boca com jornalistas em torno de uma piada de péssimo gosto envolvendo nazismo. Em sua filmografia, há verdadeiras joias como Ondas do Destino, Os Idiotas, Dançando no Escuro, Dogville, Manderley e Anticristo. Esse longo parágrafo é para dizer como fiquei triste por não ter gostado de Melancolia.

Acontece que Melancolia é resultante de uma crise depressiva na vida do diretor. O crítico e psicanalista Contardo Calligaris escreveu na Folha de São Paulo que a personagem Justine, de Kirsten Dunst (a referência à heroína homônima do Marques de Sade não é à toa) sofre de um mal que transborda o próprio sentimento dos melancólicos. Estes, na sua tragédia pessoal, podem até querer acabar com a própria vida, mas nenhum deles concebe, como a Justine de Trier, o fim da “vida” em si. Da existência da espécie humana. E é isso que o diretor parece querer mostrar com o seu ego de um cinismo monumental. “Se não dou a mínima para a humanidade, essa que se exploda”. E para tal, o enorme planeta Melancolia fará o serviço sujo se chocando com a Terra, como um iceberg abalroando o Titanic, e levando embora, num apocalipse hiperbólico, desde Guantánamo até a Capela Sixtina, desde Bangu I e Angra II até o Santo Sudário e a Esfinge de Gizé.

Belas imagens, sem dúvida, abrem a película, como é do feitio do talento inquestionável do diretor dinamarquês. Belíssimos oito minutos de um lirismo tão lindo que quase dói: um comercial do apocalipse em slow motion, como aponta em brilhante artigo o crítico Antônio Gonçalves Filho no Estadão.

Já A Árvore da Vida levou a Palma de Ouro de Cannes, uma premiação bastante questionada pois, entre os críticos, diz-se que o filme não está à altura dos trabalhos anteriores de Malick, como Terra de Ninguém, Cinzas no Paraíso e Além da Linha Vermelha. Fui para sua pré-estreia na sessão para jornalistas no Multiplex.

Se fosse analisá-lo como um todo, diria que não gostei dele. Falo como uma obra integral, apesar de seus pontos positivos, como a excelente cenografia, belíssimas interpretações dos atores (Brad Pitt e Sean Penn sempre excelentes), trilha sonora e fotografias primorosas. Mas vejo isso como um exemplo de que o todo pode ser inferior à soma das partes.

Há alguns anos li um comentário jocoso a respeito do que definiria um “filme de arte”. Isso me pereceu, naquela época, uma gozação infeliz, mas hoje eu concordo com a frase que é a seguinte: “Filme de arte é aquele que acaba de repente!”.

Esse filme é exatamente isso. Em vários momentos, você percebe que ele pode acabar a qualquer momento que isso não faria a menor diferença. E, de fato, ele acaba numa cena igual a várias outras. Muito bonita, mas igual em beleza a todas as outras. Além disso, há muito de uma coisa que costuma se criticar em cinema que é a tal reiteração, aquela inclusão desnecessária de cenas que nada acrescentam ao enredo ou à trama, mas apenas repetem o que já foi dito ou mostrado. Além disso, há uma irritante narrativa sussurrante. Para narrar qualquer coisa tem que ser sussurrando? E o filme também pressupõe que você vá embarcar no questionamento espiritual que ele desenvolve (desenvolve?) sobre Graça e Natureza, a primeira compreendida no sentido filosófico cristão.

A história não é amarrada, mas entremeada de inúmeras cenas plasticamente bonitas e que caberiam melhor em um documentário do National Geographic, imagens grandiloqüentes, do Big Bang, à criação do universo, das águas-vivas, dos dinossauros....Tudo com uma música altíssima emoldurando cada cena com uma grandiosidade que se não era pretensiosa, chegava muito perto disso. O final, com todo mundo numa praia, vivos e mortos, me deixou constrangido pela pieguice e pela breguice.

O filósofo Luiz Felipe Pondé, na Bravo, analisa os dois filmes e identifica na Graça, o encanto e seu conceito, ao lado de Deus, uma das maiores criações da filosofia ocidental. A Graça seria generosa e dá vida enquanto a Natureza é egoísta e escrava da fisiologia. Essa premissa, que julgo algo rasteira, me obriga a me identificar com a crítica de Isabela Boscov na Veja: “O diretor não tem algo menos superficial do que essa dicotomia filosoficamente discutível entre a indiferença da natureza e a generosidade do espírito — como se a espiritualidade humana não fosse, ela própria uma resposta à violência casual da natureza”.

O crítico da Folha Inácio Araújo gostou. Para ele o filme é uma saga familiar contada de forma não-linear, por fragmentos ou estilhaços de vida que se projetam no tempo. Afirma ele: “Esse filme dispensa maior erudição ou esforço intelectual para ser compreendido: ter uma alma já basta”. Pergunto eu: ter compreendido significa ter gostado? Minha alma compreendeu o filme, apesar dos meus esforços intelectuais para não achá-lo pretensioso. Mas, por favor, não exija demais da minha alma.