20.8.13

Flores Raras

Há quase 20 anos, fui “apresentado” por um amigo à poeta americana Elizabeth Bishop através do livro “Flores Raras e Banalíssimas”, de Carmem Oliveira. Até então, jamais ouvira falar de Bishop ou da sua companheira, a brasileira Lota Soares ou sequer imaginava que no Rio de Janeiro dos anos 50 duas mulheres tão importantes para a poesia e a arquitetura pudessem ter vivido uma relação de amor tão intensa por quase duas décadas.

A partir da leitura do livro, fiquei fã de ambas. Em seguida, comprei o livro “Uma Arte”, em que a Cia das Letras publicava, em mais de 700 páginas, parte da enorme correspondência da poeta. São registros preciosos e precisos da visão de uma estrangeira sensível do Brasil dos anos 50 e 60, período em que Elizabeth Bishop viveu por aqui, entre Rio de Janeiro e Ouro Preto. Li as sete centenas de páginas como se estivesse recebendo as cartas de uma amiga, pois passei a admirar enormemente aquela mulher que ganhou todos os maiores prêmios da literatura americana, incluindo o prestigiado Pulitzer. Quando a atriz Regina Braga encenou o monólogo Um Porto Para Elizabeth Bishop, lá estava eu nas primeiras fileiras do TCA para reverenciá-la.

Todos esses longos parágrafos introdutórios são para explicar porque aguardei por quase 20 anos que alguém filmasse essa belíssima história, levando para mais pessoas a vida dessas duas mulheres já que o Brasil não lhes dá o devido valor. Uma mulher extremamente forte, Lota, e outra incrivelmente frágil, Elizabeth, ambas vivendo no auge das suas potencialidades, crescendo juntas graças ao seu amor.

O pouco conhecimento no Brasil sobre ambas se deve, provavelmente, ao fato de Lota ser mais conhecida (e talvez nem tanto quanto mereceria) no Rio de Janeiro, por ter sido a idealizadora, realizadora e defensora do impressionante Parque do Aterro do Flamengo; e por Bishop ser mais conhecida por quem gosta de poesia.

O diretor Bruno Barreto, com seu filme: Flores Raras, traz a história de amor das duas mulheres para um público maior, já que livro e poesia, urbanismo e teatro não são tão populares no Brasil quanto cinema.

Li de um crítico que o filme é um tanto acadêmico com tomadas e ângulos pouco inspirados e muito sóbrios. De fato, Bruno Barreto não ousou nos enquadramentos, mas isso não diminui a beleza do filme. Esse mesmo crítico afirma que a película lembra propaganda da Embratur ao mostrar o Rio que estamos acostumados a ver, com a praia de Copacabana ao som de uma música da Bossa Nova. Fiquei atento à tal cena. Trata-se de praticamente um quase frame de segundos mostrando Copacabana em ângulo aberto quando já se passava mais de 40 minutos do filme e não mais se vê outra vez. Sobre a Bossa Nova, afinal qual o estilo musical e a praia eram símbolos internacionais do Rio de Janeiro naquela época?

Outra crítica que li é quanto à forma como Glória Pires interpretou Lota: como uma lésbica machona. Outra falha do crítico, pois a verdadeira Lota era ainda mais masculinizada do que Glória Pires a interpretou e não seria uma mulher delicada que enfrentaria de igual para igual um político experiente como o governador Carlos Lacerda, e homens como o paisagista Burle Marx, que trabalhou sob o tacão de Lota que nem arquiteta formada era.

Glória Pires e Miranda Otto estão muito bem nos seus papéis. As cenas de sexo entre ambas são elegantes sem perder o erotismo e o filme consegue mostrar bem a extrema timidez de Bishop, sua relação intensa com a poesia (levava meses e até anos para concluir um poema) e sua carga de problemas com o alcoolismo, a asma, o trauma da orfandade e a depressão.

De fato, não vemos um filme muito arrojado podendo até ser conservador em alguns pontos, mas vale à pena pela beleza da história contada.

Chamo a atenção para o início do filme, quando a poeta lê para seu melhor amigo, o também poeta americano Robert Lowell, ainda em Nova Yorque, o até então incompleto poema Uma Arte (A arte de perder não é nenhum mistério/tantas coisas contém em si o acidente/de perdê-las, que perder não é nada sério./Perca um pouco a cada dia. Aceite austero,/a chave perdida, a hora gasta bestamente./A arte de perder não é nenhum mistério./Depois perca mais rápido, com mais critério:/lugares, nomes, a escala subsequente/da viagem não feita. Nada disso é sério./Perdi o relógio de mamãe. Ah! E nem quero/lembrar a perda de três casas excelentes./A arte de perder não é nenhum mistério./Perdi duas cidades lindas. Um império/que era meu, dois rios, e mais um continente./Tenho saudade deles. Mas não é nada sério./Mesmo perder você ( a voz, o ar etéreo, que eu amo)/não muda nada. Pois é evidente/que a arte de perder não chega a ser um mistério/por muito que pareça (escreve) muito sério.)

No final, vemos Elizabeth ler o final do mesmo célebre poema para o mesmo melhor amigo, no mesmo banco do Central Park, após todos os tumultuados anos vividos no Brasil quando foi muito amada e amou demais, já reconhecida e multipremiada. Um fechamento perfeito para um final de um ciclo, de uma história, retratando quanto tempo ela demorava para terminar um poema, quantas perdas viveu e ainda conseguiu, mesmo com toda a sua enorme fragilidade, sobreviver graças ao seu talento e o seu amor à poesia.


6 comments:

  1. Goulart,
    Você sabe que sou sua fã. Obrigada pela dica do filme.
    Um grande abraço,
    Márcia

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  2. Ao final do texto me esqueci completamente de quem o escrevia, do meu amigo, e porque tinha começado a lê-lo. Suponho que isso seja muito bom. E eu ainda nem li o livro, não vi o filme, algo que providenciarei imediatamente.

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  3. leve... como as flores!
    Adorei o artigo !

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  4. Fiquei ainda mais interessado em ver o filme depois do seu artigo, apesar do spoiler. Rsrs. Parabéns por nos brindar com este belo texto e está bela dica.

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  5. Parabéns. Muito bom seu artigo.Estou curiosa para assistir ao filme, principalmente, pela discussão de um tema tão polêmico em nossa sociedade.

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