13.8.06

Abaixo o "Carioca"


Em tempos de boçalidades políticas, o que se pode fazer se não se acha uma rima para Endlösung, o que se faz se a vastidão do pequeno mundo não acompanha a vastidão do coração? o que se faz? dança um tango argentino ? toma uma cachaça? e se o estômago rejeita o álcool? adeus improváveis vapores azuis de absinto. Só resta tomar um porre de café.
Mas então você, após ler a Folha, um masoquismo ritual diário que aprendeu ao assistir a "Um Homem Chamado Cavalo", já não está lá no seu melhor humor e sua pobre alma resolveu não aceitar desaforos naquele dia.
Será encontrado já saindo do cinema. Ali já terá xingado de canalha o canalha que deixou o celular ligado e atendeu durante a sessão. O filme não era um filme definitivo...afinal o que aconteceu com os filmes definitivos? nunca mais um filme definitivo...nunca mais um em que se possa dizer: disse tudo!
Mas o café o esperava e pelo menos ali haveria alguma redenção possível. Se há um território sagrado no seu humilde, ma non troppo, parecer é aquele que se instala ao redor de uma xícara de expresso. Ali se reúne uma legião de fiéis do sagrado coffea arábica em tom de voz baixo compungido. Falam a mesma língua entorpecida de cafeína. Há os que se fazem acompanhar do cigarro, não chega a ser um cisma, talvez apenas uma variação litúrgica.
O café será uma fuga breve, uma paz fugaz, àquela altura suficiente para acalmar a indócil alma, esse pote até aqui de mágoas com severinos, lulas e boçais ao celular...o inferno são mesmo os outros, Jean Paul.. mas já não importa o que o mundo faz de você, nem o que você faz com o que o mundo fez de você...não importa nada...ninguém é mesmo cidadão.
Você está no recinto sagrado, um lugar onde crê estar a salvo dessa gente, você sabe de quem falamos. Os outros! Até que você pede à mocinha do café:
—"Um expresso não muito forte"
Aqui uma pausa para explicação. Você já tem experiência com a gente que trabalha nesse tipo de emprego. Se você quer um suco com pouco açúcar eles o entupirão de açúcar porque não acreditam que você não seja como eles. Sabedor dessa característica, se você quer um suco sem açúcar algum não adianta deixar isso claro e pedir um suco sem açúcar algum pois eles ainda colocarão algum pensando que seu paladar é como o deles.
No caso do café expresso lidamos com a mesma escória. Não é porque você adora café que tenha que tomá-lo como pasta cremosa de borra em pó. Você quer apenas um café expresso normal. Mas para consegui-lo você terá que deixar claro que quer um não muito forte, o que em português quer dizer um café expresso normal.
Acontece que você chegou há uns meses de São Paulo e por lá as mocinhas das cafeterias costumam chamar esse café de "carioca". Você pede:
—“Um expresso não muito forte —e elas perguntam de volta:
—“Um carioca?”
No começo você achou engraçado, você sabe que paulistas e cariocas tem essa rixa, mas você não é nem de um estado nem de outro e compreende a idiossincrasia das mocinhas das cafeterias....se bem que na décima vez aquilo já perdeu a graça...
E aqui está você na cidade da Bahia e vai pedir o mesmo café expresso não muito forte de sempre e a mocinha, com aquele inconfundível sotaque baiano lhe devolve com expressão bovina crente que está arrasando:
—"Um carioca"?
Você pensa logo no seu presidente...a bílis sobe até suas narinas, você lembra do canalha do celular no cinema...você olha para os lados para ter certeza de que os pontos geográficos que definem os limites da Bahia estão ainda ali e se pergunta onde essa infeliz pensa que está?
Você repete, fingindo que está ignorando a lúpen e pronunciando bem as sílabas para que ela compreenda que está pisando em campo minado:
—"Um ex-pres-so-não-mui-to-for-te!"
—Ah, um carioca! —repete ela, virando o rosto para a "colega", antes de ver as faíscas dos seus olhos.
Então essa praga chegou aqui! Você já havia até se acostumado com o hábito infecto dos atendentes de responderem ao seu pedido de expresso com a pergunta já banalizada pelo abuso
—"Puro ou com leite?"
Se você cobrasse uma multa para cada vez que você ouviu essa heresia poderia pagar a dívida externa. Você não se preocupa mais apesar de nunca ter se acostumado, pois um expresso sempre é puro, leite é como água sanitária no café. Mas agora terá que aguentar a invasão dos "cariocas"
Se ela dissesse para a "colega": "solta um carioca", você compreenderia ser um jargão, alienígena, tudo bem, mas algo para consumo interno da classe dela. Mas quando ela devolve a pergunta a você o que de fato quer é lhe mostrar que está antenada com a nova tendência oriunda da terra da garoa e que vocês dois dividem esse conhecimento, vocês seriam, nisso, iguais. Só faltou ela dar uma piscadela de cumplicidade.
Isso deve ter começado com algum paulista de férias viciado em café. Essa praga contaminou várias cafeterias de Salvador. Você viveu tal dissabor em cafés de shoppings, de livrarias, de cinemas...a praga está solta. Você já consegue até ver o tal paulista indo vezes seguidas naquele café, sempre pedindo o mesmo "carioca". A atendente baiana já fez "amizade" com ele, você sabe como baiano é interativo. Da 4ª vez que o paulista chegou lá a mocinha desinibida já foi logo perguntando metidinha: "um carioca?"
Mas agora você fechou a cara e perguntou para ela:
—"Por que carioca?"
Ela não esperava aquela reação. Você adora tirar baianos interativos do sério, eles são tão compenetrados na sua interatividade prezam muito a informalidade que se acham imunes a críticas. Ela amuou como sói acontecer quando não conseguem cumplicidade.
Agora você está feliz. Estragou a tarde de alguém...nem lembra mais do canalha do celular.

5 comments:

Anonymous said...

Amei seu blog, e arrisco um palpite: você ficará tão anti-social quanto eu.
Entre outras coisas, já não peço café expresso há um tempão. Ninguém sabe fazer aquilo! Todos, depois do primeiro que tomei na vida, que era delicioso, saem horríveis, intragáveis. E isso foi muuuiiitttoooo antes dessa história de carioca, que eu nem conhecia. Para você ver como impliquei antes.Meu problema não foi somente com o gosto intragável, mas o comportamento das moçoilas que nos atendem. Repulsivo!!
Mas o seu blog está ótimo!
Não sou de ler muitos blogs, apenas quando me pedem. Assim, de vez em quando volte a me pedir.

beijocas

Judith

Anonymous said...

Diferente dos filmes contemporâneos, os seus textos são sim DEFINITIVOS!!!
E na condição de "paulista abaianada...vai um carioca aí..."!!!

bjunhuuu

Anonymous said...

Realmente essa do carioca eu não sabia... mas sempre vou a algum café em Salvador, exceto aquele que vc me apresentou como sendo considerado o melhor, do qual quase fomos "enxotados" 19h30 e nunca mais voltei la...hi..hi..hi..
O final foi sublime, estou adorando essa de arrasar os "baianos interativos".

Anonymous said...

Lembra do café com pimenta no "camarão" da Pituba? Existem versões piores do que ser atendido pela "moiçola".

Anonymous said...

Seu blog é muito legal mesmo, mas deixa eu te explicar o caso do "carioca". O carioca é mesmo um espresso menos forte porque é adicionado água quente na xícara antes de colocar o espresso e é servido para clientes que não estão acostumados com o café forte. Mas tb concordo com o "abaixo o carioca" porque café bom tem que se tomar sem água mesmo, só aquela agua com gás antes para limpar a boca e poder degustar um bom café. Antes que vc possa me chamar de "moçoila" do café, sou uma barista, essa profissão nova do mercado e com mita paixão pelo café para explicar quem tá a fim de perguntar. Muitos abraços